Leis não fazem homens justos

Henry D. Thoreau escreveu Desobediência Civil para atacar a escravidão e a opressão dos governos

Leonardo Trevisan

Os usos da frase "o bom governo é o que governa menos" são diversos. Um convicto anarquista assinaria embaixo dessas palavras, embora um profundo neoconservador também o faria. Está aí uma boa confusão sobre o que é "idéia" de governo, envolvendo o autor dessa frase. No auge da contracultura dos anos 1960, os estudantes norte-americanos carregavam retratos de Henry David Thoreau e pediam "desobediência civil" contra a convocação para combater no Vietnã. Era uma correta escolha de ídolo.

Henry David Thoreau nasceu em 1817, em Concord, Massachusetts, e morreu em 1862. Estudou no Harvard College, escreveu muito, mas publicou só dois livros, um sobre sua cidade natal e Walden (ou A Vida na Floresta), um hino de respeito à Natureza. O que fez sua fama foi um pequeno ensaio, pouco mais que um folheto, Desobediência Civil, originalmente uma palestra feita em 1848. O motivo: o ineditismo de alguns conceitos, sendo o primeiro deles: "As leis nunca tornaram os homens mais justos", acompanhado da premissa de que a função dos governos é mostrar "como os homens podem ter sucesso em oprimir". O maior alvo da luta de Thoreau era enfrentar a escravidão, questão séria para a desenvolvida Região Norte dos EUA contra o latifundiário do Sul. O jornalista Andrew Kirk, em Desobediência Civil, de Thoreau, publicado pela Jorge Zahar Editor, retomou esse tema, reproduziu esse ensaio e reconstruiu o impacto histórico que Thoreau despertou em muita gente, de Gandhi a Martin Luther King.

É preciso lembrar que Desobediência Civil foi escrita no contexto da guerra contra o México, conflito muito impopular no Norte do país. Kirk repõe Thoreau no centro do debate até contra participação americana no Iraque, explorando a lógica da mentira que fabrica guerras. O conflito do México escondia os "bons negócios" com a expansão para o Oeste. Thoreau compra a briga, avançando na idéia de que em certos casos, "pagar impostos é permitir que o Estado cometa violências". Com um forte complemento: "Não há uma espécie de sangue derramado quando a consciência de um homem é ferida?" Vale lembrar que ele escreveu um ensaio em defesa de John Brown , o abolicionista enforcado por liderar um violento ataque a um arsenal na Virgínia, para armar uma insurreição de escravos. A visão que Thoreau tinha de Brown foi interpretada por muita gente como autorização para usar a violência em defesa de direitos civis desrespeitados.

O ponto central da "desobediência civil" era o não pagamento de impostos. O objetivo era criticar a Guerra do México e Thoreau rejeitou a autoridade da lei ao suspender o pagamento de seu imposto per capita. Ele passou apenas uma noite na cadeia, pois uma envergonhada tia pagou o imposto devido. Reza a lenda que Ralph Waldo Emerson, amigo e de certa forma tutor intelectual, visitou Thoreau na cadeia e teria perguntado "Por que você está aqui?" Recebeu como resposta: "Por que você não está aqui?" Kirk prefere apostar que a história é apócrifa, porém, como essa versão é bem melhor ou mais útil que os fatos para ajudar Thoreau, ela prosperou. Na verdade, o autor de Walden sempre falava em "resistência"; a palavra "desobediência" chegou muitos anos depois ao título de seu famoso ensaio.

Kirk apontou, com razão, que Thoreau buscava um "individualismo radical" e, nesse aspecto, ele queria mesmo era criar uma "cultura norte-americana própria", abrindo espaço para o comportamento ético na busca calvinista da salvação. Thoreau bateu forte ao dizer "primeiro homens, depois súditos", inclusive em relação ao Estado com práticas de fundamentalismo laissez-faire. No ensaio, ele é bem claro: "Nunca me recusei a pagar impostos referentes às estradas ou às escolas", concluindo: "Mas, me preocupo em rastrear os efeitos de minha submissão." Thoreau não queria a extinção do governo; o que desejava era "um governo imediatamente melhor". Porém, sem esconder o desapontamento, ele também percebe que "milhares se opõem à guerra, mas nada fazem".

Até 1920, nos EUA, Thoreau era apenas um autor amigo da Natureza. Kirk aponta alguns motivos para esse esquecimento, o primeiro deles a "percepção que se tinha de Thoreau". De fato, quem descobriu o "desobediente Thoreau" foram os socialistas ingleses, segundo Kirk "na luta contra o inimigo comum, o capitalismo". Em especial, os jornalistas londrinos Edward Carpenter e Henry Salt, este último responsável por uma bem cuidada reedição de textos de Thoreau, publicada em 1895. Provavelmente foi nessa edição que Gandhi, então estudante em Londres, conheceu Thoreau e sua desobediência civil.

É um fato que quase todos os "ismos", desde o começo do século 20, de um modo ou de outro, tentaram adotar Thoreau. Kirk, por sua vez, considera que seria difícil para um "homem tão devoto da solidão" como ele, por exemplo, aceitar uma barulhenta comunidade hippie dos anos 70 da Califórnia. Exageros à parte, o lago de Walden foi declarado em 1990 um "santuário", a casa de Thoreau vendida por US$ 3,2 milhões e uma indústria turística eficiente está instalada na área. Seria curioso saber o que Thoreau pensaria sobre o que foi feito, por obedientes pagadores de impostos, de seu lago tão venerado.

Leonardo Trevisan, jornalista e professor da PUC-SP, é autor de Educação e Trabalho

[O Estado de São Paulo, 28/09/2008]
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