Qual é a idéia mais perigosa na religião?

John Blake, em Atlanta

A religião é uma das forças mais potentes em questões humanas. Inspirou alguns dos momentos mais sublimes da história, mas também alguns de seus mais bárbaros.
A Inquisição, explosões de clínicas de aborto, ataques suicidas no Iraque - tudo isso tem raízes em alguma forma de ideologia religiosa.
Com isso em mente, fizemos a mesma pergunta a cinco pensadores religiosos de diferentes crenças: qual é a idéia mais perigosa na religião hoje? Seus comentários foram editados por questões de brevidade e clareza.

Violência em nome de Deus - Richard Land
"Concordo com o papa João Paulo II, que disse que há um santuário sagrado da alma para cada homem e mulher. Nenhum outro ser humano tem o direito de interferir coercivamente com esse santuário sagrado da alma. A idéia mais perigosa na religião é a idéia que a força coerciva, violenta, é permissível em nome de Deus - qualquer Deus."
"Você vê isso no islamismo radical. Observe que eu disse radical, não islamismo apenas. A maior parte das pessoas morrerá se essa idéia se espalhar. Ajudará a envenenar o poço do debate e discussão sobre questões que as pessoas discordam. É corrosiva ao discurso público dizer que, se você discordar de mim, vou matar você. Faz erodir a liberdade de expressão, a assembléia e a adoração."
Richard Land é presidente da Comissão de Ética e Liberdade Religiosa da Convenção Batista do Sul. Ele foi selecionado pela revista Times em 2005 como um dos 25 evangélicos mais influentes nos EUA

Siga as regras ou... - Wayne Dyer
"Carl Jung (autor e psicanalista) tinha uma frase. A paráfrase é: o principal problema da religião organizada é que o propósito da religião organizada é impedir as pessoas de terem a experiência direta de Deus. A religião é organizada em torno do princípio que a religião dará a experiência direta de Deus a você, desde que você se torne membro, siga as regras e contribua financeiramente."
"A coisa mais importante que um ser humano pode reconhecer é que já está conectado a Deus, e essa conexão não é algo que se pode entregar a outra pessoa ou organização. Uma das verdades do mundo físico é que você é como aquilo do que você veio. Se você se pergunta como é uma torta de maçã, é como a maçã de onde veio".
Wayne Dyer é um dos palestrantes de auto-ajuda mais populares do país. Ele é autor de 29 livros e apareceu freqüentemente em especiais da PBS

Minha religião está certa - Rabino Harold Kushner
"Há uma noção que diz que, para eu estar certo, todo mundo que discorda de mim está errado. Ela torna a cooperação entre religiões mais difícil. Se eu acredito nisso, tenho que acreditar que a religião dos outros não presta, é inválida."
"Você tem que entender que a religião não é sobre receber informações sobre Deus. Religião é sobre comunidade. O propósito primário não é nos levar ao céu, mas nos colocar em contato com as outras pessoas. Posso ter feroz lealdade a minha família sem denegrir a família dos outros. Posso ter feroz lealdade a minha religião sem denegrir a religião dos outros. Da mesma forma, meu vizinho pode dizer que sua esposa é a mulher mais maravilhosa do mundo. Posso tomar isso como declaração de amor, não como fato."
O rabino Harold Kushner é um dos pensadores judeus mais famosos do país. Ele é conhecido por seu livro campeão de vendas "Quando Coisas Ruins Acontecem às Pessoas Boas"

Converter outros para sua religião - Dr. Abdullahi Ahmed Na-Na'im
"Não acreditaria em uma religião, se não acreditasse que é melhor que as outras. A noção de superioridade e exclusividade é inerente à crença religiosa. Pode ser perigosa ou não."
"A idéia de trabalho missionário é muito carregada e perigosa, porque freqüentemente envolve simplesmente apresentar crenças para alguém aceitar ou rejeitar. Sempre está baseada em poder. Os que têm a capacidade de proselitismo são mais poderosos. Têm os recursos para estabelecer escolas, hospitais. O trabalho missionário não é neutro. Tem base no poder. Você não encontra muçulmanos saindo para fazer proselitismo nos EUA. Mas você encontra americanos indo para todo tipo de país muçulmano."
Dr. Abdullahi Ahmed Na-Na'im é acadêmico internacionalmente reconhecido do islã e de direitos humanos. Ele é professor da Universidade de Emory

Uma visão tribal de Deus - Deepak Chopra
"A idéia mais perigosa é: meu Deus é o único Deus verdadeiro e minha religião é a única verdadeira. Leva a brigas, divisões, terrorismo, preconceito, racismo e banhos de sangue."
"As noções religiosas são programadas em nossa consciência em uma idade muito tenra. Achamos que são verdade. É muito difícil deixar essa condição, mesmo diante do raciocínio intelectual, por causa do aprisionamento emocional a nossa condição. Lutamos com emoções quando nossas crenças são ameaçadas."
"Estamos em um ponto crítico em nossa evolução. Estamos começando a tomar consciência. Sabemos muito sobre a natureza. Temos uma boa idéia sobre o início do universo. Compreendemos em alguma extensão as leis da física, química e biologia. Ainda assim, para a vasta maioria das pessoas, apesar de termos telefones celulares e podermos fabricar bombas atômicas, nossa evolução psicológica e espiritual está em um nível muito tribal."
Deepak Chopra é diretor e co-fundador do Centro Chopra de Bem Estar em Carlsbad, Califórnia. Ele é autor e palestrante famoso por integrar a medicina Ocidental com tradições de cura natural do Oriente

Tradução: Deborah Weinberg

[Cox Newspapers, 30/06/2007]

Egípcios identificam múmia de rainha

Egípcios identificam múmia de rainhaDente solto achado em uma caixa de madeira revela que múmia indigente era de Hatshepsut, que reinou no século 15 a.C.
Soberana morreu aos 50 anos, obesa e com câncer; seu corpo é 1ª múmia de monarca identificada no país desde Tutancâmon


A múmia de uma mulher obesa, que tinha diabetes e morreu de câncer no fígado, foi identificada como sendo a da mais poderosa rainha do antigo Egito. A descoberta, considerada o achado do século no país, foi feita graças a um dente.
Zahi Hawass, chefe do Conselho Superior de Antigüidades do país, anunciou ontem em uma entrevista coletiva ter identificado uma múmia achada em 1903 no Vale dos Reis como a da rainha Hatshepsut, a grande monarca da 18ª Dinastia do Egito. Ele descreveu o achado como "o mais importante no Vale dos Reis desde a descoberta de Tutancâmon".
Hatshepsut subiu ao poder em 1479 a.C., após a morte de seu marido e meio-irmão Tutmés 2º. Seu enteado (filho do marido com uma concubina), Tutmés 3º, era muito jovem para assumir o trono, então a "primeira das mulheres nobres" (significado de seu nome) permaneceu como co-regente durante 22 anos.
Durante esse tempo, Hatshepsut se mostrou uma governante voluntariosa e ambiciosa, uma das maiores tocadoras de obras do Novo Império e a monarca que mais fez para que o Egito se tornasse o país rico que se tornaria depois, no reinado de Tutancâmon.
Quando morreu, com cerca de 50 anos, ela deixou um esplêndido templo mortuário -mas sua múmia não estava lá.Para frustração dos arqueólogos, as múmias reais egípcias freqüentemente eram removidas de suas tumbas originais e escondidas em locais discretos, para driblar saqueadores. Marcas que as identificassem freqüentemente se perdiam nesses transportes.
O britânico Howard Carter, que em 1922 descobriria o túmulo de Tutancâmon, chegou a achar a câmara mortuária de Hatshepsut, mas os dois sarcófagos dentro dela estavam vazios. O paradeiro do corpo da rainha permaneceu um dos maiores mistérios do Egito.
Sua identificação só aconteceu há dois meses, quando a equipe de Hawass realizou uma tomografia em uma caixa de madeira que trazia o nome da rainha. Dentro dela havia um fígado humano e um dente.O dente foi examinado pelo dentista Galal El-Beheri, da Universidade do Cairo, a pedido de Hawass. Ele descobriu que a peça se encaixava perfeitamente na raiz quebrada de um dente da múmia de uma mulher obesa, encontrada por Carter em 1903 numa tumba pequena e sem decoração no Vale dos Reis, a KV60.
A tumba continha duas múmias: uma num caixão com a inscrição "ama real" e outra sem identificação alguma.Em uma visita recente à KV60, Hawass examinou a múmia obesa. Seu braço esquerdo estava dobrado com a mão sobre o ombro. As unhas da mão esquerda estavam pintadas de vermelho, com contorno preto. Alguns egiptólogos, no passado, chegaram a suspeitar que a múmia obesa poderia ser de Hatshepsut. Mas havia nada menos que cinco múmias também suspeitas.
A prova veio depois que o Discovery Channel instou Hawass a usar tecnologia médica moderna na identificação da múmia -o que ele achava que não daria resultado- e bancou a instalação de um laboratório no Museu Egípcio, no Cairo.As seis múmias passaram por tomografias, bem como a caixa com o nome da rainha, encontrada em uma outra tumba.
"A caixa guardava a chave do enigma", disse Hawass. "Agora nós temos a prova científica de que esta é a múmia da rainha Hatshepsut", afirmou, citando principalmente o dente mas também análises preliminares de DNA que ligam a mulher obesa a Ahmés Nefertari, a matriarca da 18ª Dinastia.Egiptólogos que não trabalharam no projeto dizem que a evidência é fascinante, mas que ainda é cedo para afirmações tão contundentes.

[Folha de São Paulo, 29/06/2007]

Humanidade domesticou ecossistemas, afirma estudo

DA FRANCE PRESSE
Os seres humanos se espalharam tanto pelo planeta que acabaram por "domesticar" ecossistemas inteiros. Hoje, há poucas áreas do globo sem algum tipo de presença ou influência direta humana, dizem ambientalistas."A natureza intacta não existe", afirma Peter Kareiva, da ONG The Nature Conservancy. "Encarar essa realidade demanda uma mudança de foco na ciência ambiental", afirma, em artigo na revista "Science".Em 1995, por exemplo, apenas 17% da Terra permanecia verdadeiramente selvagem -sem assentamentos humanos, plantações, estradas ou luzes noturnas detectadas por satélite.Metade da superfície do globo é usada para a agropecuária; mais da metade de todas as florestas já desapareceu, e rotas marítimas cruzam os oceanos em várias direções (veja mapas acima).O número de represas é tão grande que hoje a quantidade de água armazenada artificialmente é quase seis vezes maior que a que corre livremente, aponta Kareiva.E cercar áreas naturais em forma de parques -rodeados por lixo, poluição e espécies exóticas- só ressalta a domesticação dos ambientes."A vida selvagem é mais comumente uma designação regulatória", diz o estudo.


[Folha de São Paulo, 29/06/2007]

Carlota Joaquina: a 'princesa do Brasil' revista

Historiadora reúne 145 cartas inéditas e diz que princesa "transgrediu o espaço permitido às mulheres de sua época"

Para professora da UFRJ, Carlota foi vítima da "historiografia liberal, masculina, que tem pouca tolerância com o contrário"


Devassa, má, intrigante, feiticeira, feia, vulgar, perversa, despótica, libidinosa, grosseira, depravada. Não há (poucas) palavras para descrever a mulher de d. João 6º. A personagem já ocupa um lugar claro no imaginário popular. E agora, se depender da historiadora Francisca Nogueira de Azevedo, esse "assassinato moral" que já dura 200 anos vai acabar por aqui. É o que ela tenta provar em "Carlota Joaquina - Cartas Inéditas" (Casa da Palavra), livro que integra o pacote comemorativo dos 200 anos da chegada da família real ao Brasil.
Ao reunir 145 cartas trocadas pela princesa do Brasil, a professora da UFRJ pretende definitivamente apagar a imagem que a atriz Marieta Severo deixou no filme "Carlota Joaquina - Princesa do Brazil", de Carla Camurati. Além das crônicas de Luiz Edmundo, uma das principais vozes antilusitanas do período joanino, a verve anticarlotista rolou solta no essencial "D. João 6º no Brasil" (Topbooks), de Oliveira Lima, e em biografias como "Carlota Joaquina, a Rainha Intrigante" (1949), do inglês Marcus Cheke, e "Carlota Joaquina, a Rainha Devassa", de João Felício dos Santos (1968).
Com a nova edição, a historiadora também avança em relação a seu livro anterior, "Carlota Joaquina na Corte do Brasil" (Civilização Brasileira, 2003), pintando agora um retrato mais humano e pessoal da mãe de d. Pedro 1º.
Para a professora, Carlota foi vítima da "historiografia liberal, masculina, que tem pouca tolerância com o contrário, especialmente em relação às mulheres". Para ela, "por temperamento e atitudes, Carlota transgrediu o espaço permitido às mulheres de sua época".
Isso não significa, porém, que o personagem não fosse difícil. "Ela era uma pessoa extremamente temperamental, a correspondência mostra isso", concede Azevedo.

Final do século 18
O livro chega às livrarias em outubro e colige a correspondência que vai do final do século 18, quando se inicia a crise entre as coroas ibéricas, aos últimos anos de estada de Carlota Joaquina no Rio de Janeiro. As cartas estão divididas em três grupos: particulares, de gabinete e políticas. No primeiro caso, mostram uma mãe amorosa e mulher afetuosa que não hesita em chamar o príncipe regente de "meu amor". No segundo bloco está a correspondência com o seu secretário José Presas, que revela o cotidiano da vida na corte.
Na última seção estão as sua primeiras investidas na esfera pública, ainda em Portugal, até o final de sua atuação na América. Os textos permitem, por exemplo, acompanhar o projeto "carlotista": torná-la regente da Espanha, sediando o governo no Vice-reino do rio da Prata. Pode-se identificar nos textos a resistência dos setores que apóiam ou não o projeto, como as estratégias do Gabinete do Príncipe Regente, principalmente do Conde de Linhares, e do embaixador inglês Lorde Strangford para impedir a consolidação do projeto. Para a organizadora do livro, os textos deixam claro a independência e habilidade de Carlota Joaquina no jogo político.

Outros amores
E as inúmeras histórias de adultério? Para a historiadora da UFRJ, até aí há controvérsias. "Mesmo com o Sidney Smith (comandante das tropas navais britânicas no Rio), com quem disseram que ela tinha tido um relacionamento, peguei várias cartas e nenhuma correspondência me parece suspeita nesse sentido", diz. "Agora, acredito que tenha tido outros amores, uma mulher exuberante como ela era. Mas era uma mulher muito ciosa da etiqueta, foi criada para ser rainha da Espanha, vinha de uma das cortes mais ilustradas da Europa naquele momento. Era muito bem preparada."
Em resumo, a professora acha que as cartas não corroboram a fama de ninfomaníaca da monarca: "Na esfera privada, é difícil conhecer detalhes de sua vida. Grande parte dos livros que lia eram de caráter religioso. Ela freqüentava a igreja, era muito preocupada com a etiqueta, com o papel dela enquanto rainha. Acredito que tenha tido um amante, mas essas coisas abertas, como libertinagem, acho que é um exagero".
Francisca Nogueira de Azevedo procura se inserir em uma tendência de reavaliar o papel histórico de grandes mulheres, à luz da historiografia de gênero. Como aconteceu na França com Maria Antonieta.
Mas Jean Marcel Carvalho França, professor de história na Universidade Estadual Paulista, em Franca (SP), é cauteloso com essa reabilitação: "O d. João 6º também foi penalizado, chamado de banana, idiota, porco, sem iniciativa... E ninguém discutiu se isso era uma posição antimasculina. Esse negócio da história do ponto de vista do gênero é muito complicado, às vezes todo mundo sofreu, mas pode-se achar que alguém sofreu sozinho", disse.
Jean Marcel acha que o leitor pode se surpreender com o tom afetuoso e carinhoso das cartas, que "dão a conhecer uma Carlota Joaquina que realmente não se conhece, uma pessoa delicada, com preocupações familiares, preocupada com os filhos, numa relação afetuosa com d. João 6º". A respeito da atuação política, ele considera que não há surpresas.
Poucos meses antes de se completarem 200 anos da viagem apressada (ou bem calculada, segundo alguns historiadores) da corte portuguesa, que mudou a história do Brasil, a imagem de d. João 6º aparentemente já está recuperada. Se Carlota também vai conseguir limpar sua imagem, só o leitor pode julgar. Para Jean Marcel, "ela odiou o Brasil. Isso as cartas não mudam".
(MARCOS STRECKER)
[Folha de São Paulo, 30/06/2007]

Charles Darwin, o agnóstico

Avesso a controvérsias públicas, ele viveu conflito entre sua formação cristã e suas descobertas científicas

Herton Escobar

Charles Darwin era um homem cauteloso. Por 20 anos ele manteve sua teoria da evolução em segredo, conduzindo experimentos em seu jardim e estudando a literatura científica para, já de antemão, tentar responder todas as dúvidas e críticas que inevitavelmente seriam lançadas sobre ela.

Estava convicto de suas conclusões, mas tinha plena consciência do impacto avassalador que sua tese teria sobre o pensamento científico e religioso da época. E queria estar preparado.

Além disso, era um pensador reservado, avesso a enfrentamentos públicos e bate-bocas de qualquer natureza. Tanto que, ao fazer a redação final de A Origem das Espécies, retirou propositalmente sua conclusão mais polêmica: de que o homem não era uma criatura divina, criada por Deus à sua imagem e semelhança, mas um animal orgânico, puramente material, e de descendência comum com gorilas, orangotangos e chimpanzés. Uma espécie altamente evoluída de macaco, para ser bem sincero.

De fato, Darwin não menciona o ser humano em nenhum momento do livro. Mas foi pouco para acolchoar o impacto. Assim que chegou às livrarias de Londres, em novembro de 1859, A Origem das Espécies explodiu como uma bomba atômica sobre a sociedade vitoriana do século 19, espalhando nuvens incendiárias de polêmica por todo o planeta. E o parentesco de homens e primatas, de qualquer maneira, virou semente da discórdia.

Começava, assim, “o primeiro debate científico internacional da história”, segundo a historiadora inglesa Janet Browne, da Universidade Harvard. A ciência passou a fornecer respostas para perguntas que, até então, eram respondidas apenas pela fé - algo que não caiu muito bem com os religiosos. “O fato era que Darwin parecia expulsar por completo o divino do mundo ocidental, pondo em dúvida tudo que até então se acreditava sobre a alma humana e nosso sentido de moralidade”, escreve Browne em seu último livro, A Origem das Espécies de Darwin, com lançamento previsto no Brasil para esta semana.

REVOLUÇÃO
Charles Darwin não foi o primeiro a escrever sobre evolução. Mas foi o primeiro a propor, de maneira convincente, um mecanismo puramente biológico capaz de explicar a origem e a diversidade de todas as formas de vida. Nada de espíritos, projetos, propósitos ou intervenção divina: apenas variações aleatórias e seleção natural. Biologia pura.

A inferência de que o homem evoluíra dos macacos era apenas um detalhe. “Por mais surpreendente que pareça, houve pouca oposição ao livro de Darwin sob a alegação de que ele contestava diretamente o relato da criação feito no Gênesis”, observa Browne. “Desde o Iluminismo, os estudos bíblicos estimulavam os cristãos a ver essas antigas histórias como poderosas metáforas, não como narrativas literais. O fundamentalismo bíblico é um problema moderno, não vitoriano.”

CRIACIONISMO
O renascimento do criacionismo e de outros movimentos antidarwinistas nos últimos anos é surpreendente. Principalmente nos Estados Unidos, onde quase metade da população não acredita na evolução, segundo uma pesquisa da revista Newsweek. Talvez nem Darwin pudesse prever que, 150 anos após a publicação de sua obra, o confronto entre criação e evolução continuaria a ferver nas manchetes, salas de aula e tribunais de Justiça.

A pauta do debate não mudou muito: se o homem não é nada mais mesmo do que um aglomerado de matéria orgânica, sem alma nem propósito, onde fica Deus? Como ficam os valores morais e as tradições familiares? Qual o propósito da vida? Como interpretar a Bíblia e outros textos sagrados? E hoje, que temos o conhecimento da biologia molecular e do genoma: será o ser humano nada mais do que um punhado de genes egoístas?

“As semelhanças são incríveis”, disse Browne, em entrevista exclusiva ao Estado do seu escritório no Centro de Ciências de Harvard. “As controvérsias são basicamente as mesmas.” Mas com uma diferença importante: a fé deixou de ser o único contraponto. Agora, mais do que nunca - talvez pela primeira vez -, criacionistas ortodoxos usam argumentos científicos para atacar o trabalho de Darwin, questionando metodologias e reinterpretando evidências na tentativa de apresentar a história da Bíblia como algo cientificamente comprovável.

“O mais interessante é que, agora, os críticos estão dizendo que a ciência está errada”, afirma Browne. “Quando Dar-win publicou A Origem das Espécies, a maioria das pessoas aceitava que suas informações estavam, muito provavelmente, corretas. O que elas criticavam eram as conclusões que ele desenhou a partir dessas informações. A teoria era rejeitada em bases teológicas, não científicas.”

Criacionistas modernos defendem que a Terra tem apenas 6 mil anos de idade (em vez de 4,5 bilhões), que dinossauros conviveram com seres humanos, e que as técnicas de datação usadas na geologia e na paleontologia estão erradas. No Estado americano do Kentucky há até um sofisticado Museu da Criação, de US$ 27 milhões, com dinossauros robóticos, planetário, cinema e uma reconstrução da Arca de Noé. Fósseis de animais extintos são apresentados como vítimas do Dilúvio - aqueles que não conseguiram um lugar no barco.

“O método científico está sendo atacado nos seus princípios mais básicos”, observa Browne. “Isso é muito difícil para os cientistas aceitarem.”

MORALIDADE
O novo criacionismo, segundo a historiadora, parece ser alimentado por uma sensação de perda de valores e tradições morais. “A sociedade moderna está repleta de dificuldades, pobreza, desamparo, e é provável que as pessoas com espírito religioso relacionem isso a um secularismo, uma perda de fé”, afirma Browne. “O ataque à evolução é um ataque à secularização.”

O cenário no qual Darwin produziu seu livro - a Europa do século 19 - era um mundo repleto de certezas, explica Browne. E a maioria dessas certezas era expressa por meio de crenças religiosas, que proporcionavam às pessoas uma razão para sua existência. “Aí veio Darwin e produziu um livro dizendo que os seres humanos eram apenas produtos naturais, que tudo dentro de nós, tudo que pensamos e fazemos, é simplesmente um resultado da natureza, que não há nenhuma dádiva de um poder sobrenatural. Isso era muito desconcertante.”

PRINCÍPIOS
Darwin não era ateu. Fez, inclusive, faculdade para ser pastor anglicano - depois de abandonar a Escola de Medicina de Edimburgo, para onde seu pai o havia enviado aos 16 anos de idade. Não tinha estômago para o trabalho de médico, e a carreira eclesiástica era uma alternativa honrosa aos olhos da família e da sociedade. Entrou para o Christ’s College, de Cambridge, e talvez tivesse virado pastor mesmo, não fosse por um convite que apareceu no meio do caminho para se juntar a uma certa expedição.

A missão do navio HMS Beagle era cartográfica: prospectar e mapear águas da América do Sul. O capitão, Robert FitzRoy, porém, queria levar alguém que também pudesse coletar espécimes e fazer estudos científicos ao longo do caminho. Darwin (que sempre se dedicou a colecionar besouros e às cadeiras de história natural mais do que à teologia ou medicina) foi indicado ao posto por seu professor de botânica, John Henslow.

Em dezembro de 1831, o jovem naturalista embarcou para uma odisséia marítima de cinco anos que o carregaria ao redor do mundo, com passagens pelo Brasil e, é claro, pelas Ilhas Galápagos do Equador.

CONFLITO
Darwin nunca se acostumou ao balanço do mar e passou praticamente toda a viagem nauseado. O maior redemoinho de todos, porém, estava em sua cabeça. Quanto mais aprendia sobre o mundo natural, mais Darwin questionava sua própria fé.

“Não há dúvida de que ele viveu um conflito”, afirma Browne. Quando se juntou ao Beagle, Darwin era um jovem que acreditava na Bíblia. Ao longo da viagem, entretanto, a Bíblia gradativamente perdeu significado para ele. Quando retornou da expedição e começou a trabalhar em sua teoria, Darwin foi forçado a reavaliar profundamente suas crenças.

Por fim, se proclamaria um agnóstico: termo cunhado pelo amigo Thomas Huxley para descrever alguém que não vê provas de Deus, mas não descarta completamente sua existência. “Quando escreveu A Origem das Espécies, Darwin abandonou completamente a idéia de um Criador que interferia ativamente no mundo natural. Ele tinha, sim, a sensação de que algo supernatural existia, mas seja lá o que fosse, esse deus não tinha influência sobre o mundo natural”, explica Browne.

DEMORA
Vários dos amigos de Darwin também eram agnósticos, ou até religiosos, e ele tomava grande cuidado em seu texto para não ofendê-los. Essa foi uma das razões, também, para o parto demorado de A Origem das Espécies.

Ninguém sabe quanto tempo mais ele levaria para publicar o livro, não fosse pela intervenção de um outro naturalista inglês, Alfred Russel Wallace. Em junho de 1858, Darwin foi surpreendido por uma carta na qual o colega descrevia uma teoria da evolução idêntica à sua. Sem saber da obra secreta de Darwin, Wallace havia descoberto a seleção natural por si só, enquanto pesquisava nas florestas do sudeste asiático. Como não tinha influência dentro da comunidade científica, resolveu enviar sua teoria a Darwin, em vez de alguma revista especializada. Queria saber o que o colega achava da idéia.

Darwin entrou em pânico. Após duas décadas de cuidadosas pesquisas, o pioneirismo de sua teoria estava seriamente ameaçado. Ele consultou seus dois amigos mais próximos, Joseph Hooker e Charles Lyell. A decisão foi escrever um texto misto, assinado por Darwin e Wallace, para apresentação na prestigiosa Sociedade Lineana de Londres. O manuscrito foi lido no dia 1º de julho de 1858, e não causou lá muito alvoroço.

Wallace só ficou sabendo três meses depois - tempo que levava para o correio chegar até a Indonésia. Há quem acredite que Darwin se aproveitou da situação, e que poderia até ter roubado idéias de Wallace para sua teoria. O próprio Wallace, porém, jamais reclamou de alguma coisa. Pelo contrário: “Ele ficou extremamente entusiasmado e os dois viraram bons amigos”, garante o especialista Andrew Berry, professor de biologia evolutiva de Harvard e especialista na história de Wallace. “Nunca houve uma gota de ciúmes ou descontentamento.”

“Darwin escrevia tudo que pensava e nunca jogava nada fora. Há evidências mais do que suficientes de que sua teoria estava completa naquele momento. Portanto, não havia motivo para plágio”, diz Berry.

LEGADO
A Origem das Espécies foi finalmente publicado em novembro de 1859. Charles Darwin virou um ícone instantâneo. Wallace, no final das contas, caiu no esquecimento.

“Temos de dar crédito ao grande livro de Darwin: fabuloso, detalhado e muito bem pensado”, observa Browne. Para ela, a história de A Origem das Espécies é, em muitos aspectos, a história do mundo moderno. Como diria o geneticista Theodore Dobzhansky em 1964, “nada na biologia faz sentido a não ser sob a luz da evolução”.

Fora dos laboratórios, as idéias evolutivas de Darwin infiltraram todas as expressões do pensamento humano, para o bem e para o mal. A seleção natural é usada para explicar tanto o desenvolvimento de espécies quanto a sobrevivência de empresas no mercado globalizado. A “lei do mais forte” já foi usada como bandeira para justificar expansões imperiais, guerras e genocídios. E a evolução, quando mal interpretada, já motivou preconceitos raciais de todos os tipos.

Darwin carregou o fardo e as glórias de sua obra por 23 anos, até sua morte em 1882. Ironicamente, o homem que desafiou a autoridade da Igreja foi enterrado com honras na sagrada Abadia de Westminster, aclamado como um gênio à altura de Isaac Newton.

“Considerando a ferocidade com que fui atacado pelos ortodoxos, parece risível que eu tenha outrora pretendido ser pastor”, escreveria o gênio em sua autobiografia.

[O Estado de São Paulo, 24/06/2007]

Uma guerra sem prisioneiros nem cadáveres

"Os taliban nunca se rendem", afirma comandante britânico na província rebelde de Helmand

O Chinook faz uma breve escala numa das bases britânicas da província de Helmand, no meio do nada. Nem mesmo desliga os rotores. Os soldados sobem e se acomodam como podem no corredor, sentados no chão ou sobre a carga, e a aeronave volta a decolar. Um helicóptero como esse foi derrubado pelos taliban no final de maio ao norte de Helmand. Felizmente, a maior parte dos mais de 24 passageiros que ele pode transportar já tinha desembarcado e houve só sete mortos.

Os comandantes militares da Otan afirmam que provavelmente foi atingido por um lança-granadas RPG e que a insurgência continua sem armas antiaéreas. Apesar disso, o Chinook se desloca em altitude muito baixa, quase tocando o topo das colinas, e quando sobe o faz de uma vez, enquanto lança bengalas para distrair os mísseis, caso haja.

Os veículos da 12ª Brigada de Infantaria Mecanizada do Exército de Sua Majestade são muito mais vulneráveis que os canadenses ou os americanos. Apenas uma leve blindagem sobre jipes e todo-terrenos cuja sujeira se mimetiza com a poeira do deserto. Quando se pergunta ao tenente-coronel Richard Westley por que o atirador não tem um escudo protetor, ele responde: "Esta é sua proteção" e mostra um fuzil 5.56 e uma metralhadora 7.62 montados sobre o chassis. Um soldado usa uma camiseta em que se lê: "Deus perdoe os taliban. Meu morteiro os encontrará".

A base avançada de operações (SOB) Price fica nas redondezas de Gyryshk, na margem do rio Helmand, que desce do maciço de Kohe Baba, uma derivação do Hindu Kush não distante de Cabul, e acaba tragado pelo deserto 300 quilômetros ao sul da cidade. Antes, porém, banha os mais férteis campos de papoulas do Afeganistão, que fazem de Helmand a primeira potência produtora de ópio do mundo. O que os britânicos chamam de "zona verde", em contraposição às terras áridas que ocupam a maior parte da província, também é o último grande santuário dos taliban. A "limpeza" dos cerca de 80 quilômetros que separam Gyryshk da represa de Kajaki se transformou no grande objetivo das forças da Otan durante a primavera e, segundo admitem seus responsáveis, ainda não foi terminada.

O tenente Aaron Browne, um norte-irlandês destacado na divisão de operações da 12ª Brigada, afirma que entre abril e maio suas tropas mataram cerca de 300 taliban. "Na verdade", corrige imediatamente, "temos documentadas 140 baixas, mas acreditamos que tenham sido o dobro, porque os comandantes taliban dão ordens estritas para que levem os corpos dos caídos".

Nesta guerra não há cadáveres - exceto o do mulá Dadulá, exposto publicamente em Kandahar e que as autoridades locais acabaram entregando a sua família depois de negociar com os taliban -, mas também não há prisioneiros. É o que diz Browne. "Os taliban nunca se rendem. Por isso capturamos muito poucos, só os que estão feridos e não podem ser evacuados. E os entregamos ao governo afegão". Browne fala dos taliban com respeito. Afirma que são bons combatentes e estão mais bem treinados e organizados. Cada grupo se reúne em torno de um líder, por isso seus membros se dispersam quando este desaparece - como os bandos de guerrilheiros da Guerra Civil espanhola. Em relação às armas, em sua maior parte são leves (AK-47, RPG) e de procedências diversas (foguetes tipo Katiusha russos ou chineses, minas iranianas).

A Otan, por sua vez, conta com carros de combate e blindados sobre correntes em Camp Bastion, um gigantesco depósito logístico na província de Helmand, e de caças Harrier F-16, helicópteros Chinook e Black Hawk e inclusive veículos não-tripulados Predator, em KAI, provavelmente a maior base no Afeganistão, no aeroporto de Kandahar.

Os responsáveis pela aliança ocidental distinguem dois tipos de taliban: os irredutíveis e os redutíveis. Entre os primeiros estão os fanáticos locais e estrangeiros, com vínculos ideológicos ou organizacionais com a Al Qaeda. Entre os "taliban moderados", se os dois termos não fossem antônimos, há de tudo: desde chefes de clãs que se sentem prejudicados na nova divisão de poder a membros do narcotráfico. E também "insurgentes", um termo ambíguo no qual há certo reconhecimento de legitimidade por parte da Otan.

A estratégia, segundo os comandantes, é eliminar os primeiros e tentar fazer pactos com os segundos, para isolar os que se negam a depor as armas. Ainda não se sabe como esse grupo poderia ser integrado ao novo governo afegão, mas há alguns sinais dessa política de pau e cenoura.

O mais evidente é que, enquanto as tropas da Otan expulsam os taliban aldeia a aldeia no vale de Sangin, com o objetivo de construir a estrada que permitirá pôr em funcionamento a represa de Kajaki, deixa intactos os campos de ópio. A Otan se limita a dizer que essa tarefa não é sua e olha para o outro lado, mas a verdade é que não quer atirar os agricultores nos braços dos taliban.

A prova de fogo dessa política está em Musa Qala. As forças britânicas se retiraram desse distrito a oeste de # Sangin sob a promessa dos chefes tribais de que não deixariam os taliban voltar. Mas os taliban voltaram, e continuam lá. Perguntado por que não ordena que suas tropas recuperem a localidade, o general Jacko Page, chefe da Otan no sul do Afeganistão, responde enigmático: "Estamos observando como de desenrolam os acontecimentos".

Como quase todos os dias, um comboio da 12ª Brigada percorreu na última sexta-feira o centro de Gyrysh. Os britânicos descem dos veículos e patrulham a pé. A população não parece hostil, fora a habitual algaravia das crianças. Mas o capitão Jeff Lee está nervoso e encurta o itinerário previsto. Jan Agha, vigia da prisão instalada em uma velha fortaleza em ruínas, explica o motivo: "Não é seguro andar por aí. Ontem houve um atentado suicida na cidade e há taliban na zona do mercado".

Lee esteve mobilizado no Iraque em outubro de 2004. Apesar de haver cada vez mais elementos comuns a ambos os conflitos, ele se mostra convencido de que a intervenção no Afeganistão acabará tendo sucesso, mesmo que seja preciso esperar dez anos. E a do Iraque? "Não tenho tanta certeza."

Miguel González, enviado especial a Gyryshk. Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

[El País, 21/06/2007]

Reino Unido quer proibir o uso de véus muçulmanos

Está cada vez mais comum ver as mulheres muçulmanas do Reino Unido levando os filhos às escolas ou andando pelas ruas cobertas, da cabeça aos pés, com vestes negras esvoaçantes que só contam com uma estreita abertura para os olhos.

E poucas coisas irritam tanto os britânicos quanto essa imagem, que é um teste dos limites de tolerância desta nação estridentemente secular. Muitas mulheres cobertas pelo véu de corpo inteiro dizem que são alvos de assédios. Ao mesmo tempo, crescem as iniciativas no sentido de impor legalmente uma proibição do uso do véu muçulmano de corpo inteiro, que é conhecido como 'niqab'.

Nos últimos 12 meses houve numerosos exemplos do problema: um juiz de imigração disse a uma advogada vestida com um niqab que ela não poderia representar uma cliente porque, segundo ele, não dava para escutar a voz dela sob o véu. Uma professora que usava o niqab foi mandada de volta para casa pela escola de uma província inglesa. Uma aluna que foi proibida de usar o niqab levou o caso à Justiça, e perdeu. De fato, as autoridades educacionais britânicas estão propondo uma proibição total do uso do véu nas escolas.

David Sexton, um colunista do jornal "The Evening Standard", escreveu recentemente que o Reino Unido tem sido "excessivamente condescendente" em relação ao véu. "Acho que tal vestimenta, no contexto de uma rua em Londres é, principalmente ridículo, e além do mais diretamente ofensivo", disse ele.

Embora o número de mulheres que usam o niqab tenha aumentado nos últimos anos, apenas uma pequena porcentagem dos dois milhões de mulheres muçulmanas no Reino Unidos cobre-se da cabeça aos pés. Mas é impossível precisar o número exato.

Algumas das mulheres, especialmente as jovens, que adotaram a vestimenta recentemente, admitem que o traje é uma expressão direta de identidade islâmica, que elas adotaram após o 11 de setembro de 2001, como forma de rebelião contra as políticas do governo Blair no Iraque e no Reino Unido.

"Para mim, não se trata apenas de uma roupa. É um ato de fé. É solidariedade", diz uma funcionária de 24 anos de uma companhia de radiodifusão em Londres, que só permitiu que o seu sobrenome, Al Shaikh, fosse publicado, alegando que deseja proteger a sua privacidade. "O 11 de setembro foi um toque de despertar para os muçulmanos jovens", diz ela.

Shaikh diz que às vezes é alvo de comentários rudes, incluindo uma ocasião em que uma mulher no local de trabalho lhe disse que ela não tinha o direito de estar ali. Shaik diz que pretende entrar com um processo contra a mulher.

Quando está na rua, ela ouve com freqüência comentários agressivos. "Há algumas semanas uma senhora me disse: 'Acho que você parece uma doida'. Eu respondi: 'Como é que você ousa dizer às pessoas como elas têm que se vestir?'. E fui embora. Às vezes sinto que tenho que responder. O islamismo nos ensina que temos que defender a nossa religião".

Outros muçulmanos acham o niqab censurável, um passo para trás para um grupo imigrante que está sob pressão após os ataques terroristas contra o sistema de transporte público de Londres em julho de 2005.

"Após os ataques do 7 de julho, este não é o momento para antagonizar os britânicos, apresentando os muçulmanos como algo de sinistro", argumenta Imran Ahmad, autor de 'Unimagined' (Inimaginável) -uma autobiografia que fala da experiência de ser criado como muçulmano na Grã-Bretanha- e diretor da organização Muçulmanos Britânicos Pela Democracia Secular.

"Esse véu passa uma imagem enorme de submissão. Acho extremamente ofensivo o fato de alguém desejar criar tais barreiras. É uma coisa retrógrada".

Desde que indivíduos do sul da Ásia começaram a vir para o Reino Unido em grande quantidade na década de 1960, um pequeno grupo de mulheres geralmente mais velhas e de pouca instrução passou a usar o niqab. A vestimenta é com freqüência vista como um sinal de submissão.

Um número muito maior de muçulmanas usa o hijab, um lenço que cobre total ou parcialmente os cabelos. Ao contrário do que ocorre na França, na Turquia e na Tunísia, onde as alunas das escolas governamentais e as funcionárias públicas são proibidas de cobrir o cabelo, as muçulmanas britânicas podem cobrir a cabeça, e até mesmo o corpo inteiro, com o niqab, em quase todos os lugares, pelo menos por ora.

Mas essa tolerância está diminuindo. Até mesmo algumas das mulheres que usam o niqab, como Faatema Mayata, psicóloga e professora de estudos religiosos de 24 anos de idade, acham que há limites. "Como é que você pode ensinar quando está ocultando a face?", questiona ela, sentada com uma xícara de chá na sua sala de estar em Blackburn, uma cidade no norte da Inglaterra, sem usar o niqab, já que está no ambiente doméstico.

Ela usa o niqab desde os 12 anos de idade, quando foi enviada pelos pais para um internato de meninas. Segundo ela, o niqab não é, conforme muitos britânicos parecem pensar, um sinal de extremismo. Para ela o niqab diz respeito à identidade. "Se seu me vestisse como uma ocidental poderia ser vista como hindu ou qualquer outra coisa", diz ela. "Mas desta forma me sinto confortável com o fato de a minha identidade ser a de uma mulher muçulmana".

Ninguém mais na família dela usa o niqab. O marido, Ibrahim Boodi, um assistente social, encara a questão com indiferença. "Se eu parasse de usá-lo hoje, ele não daria a mínima".

Quando está caminhando, ela diz que é muitas vezes parada por pessoas que lhe perguntam: "Por que é que você usa isso?". "Muita gente acha que sou vítima de opressão, que não falo inglês. Não me importo, eu tenho um cérebro".

Alguns comentaristas reclamam de que as mesquitas encorajam as mulheres a usar o véu, uma prática que segundo eles deveria ser impedida. Em uma recente sexta-feira de orações, um grupo de mulheres muçulmanas se aglomerava em uma pequena sala sem janelas no andar superior da mesquita de East London, uma das maiores da capital inglesa. Algumas delas usavam a vestimenta e falavam efusivamente a respeito dos motivos para ocultarem o corpo inteiro.

"Usar o niqab significa que você é bem avaliada e vai para o paraíso", disse Hodo Muse, uma somali de 19 anos de idade. "Todos os dias indivíduos me olham com rancor porque eu o uso, mas quando uma pessoa uma roupa por Alá, ela sente-se encorajada".

De Jane Perlez, em Londres. Tradução: UOL

[The NYT News Service,
22/06/2007]

Em um mundo em movimento, Cabo Verde tenta lidar com a migração global

Virtualmente todos os aspectos da migração global podem ser vistos neste minúsculo país do oeste da África, onde o número de pessoas que partiram se aproxima do número das que permaneceram e quase todos têm um parente próximo na Europa ou nos Estados Unidos.

O dinheiro dos emigrantes escora a economia. O voto dos emigrantes influencia a política. A partida dos emigrantes separa pais de filhos e a mais famosa canção da mais famosa cabo-verdiana venera a emoção nacional, "Sodade" (saudade). A conversa sobre oportunidades no exterior se mistura nas mesas de café daqui com relatos de documentos falsos e casamentos simulados.

A intensidade da experiência nacional torna este arquipélago árido na Galápagos da migração, um microcosmo de forças pressionando a política americana e refazendo sociedades por todo o globo.

Cerca de 200 milhões de pessoas vivem fora de seu país de origem e ajudam a sustentar um número tão grande ou maior nos países em desenvolvimento. Os migrantes enviaram para casa cerca de US$ 300 bilhões no ano passado -quase três vezes os orçamentos de ajuda internacional mundiais somados. Tais somas estão construindo casas, educando crianças e promovendo pequenas empresas, tornando a migração um ponto central na discussão sobre como ajudar os pobres do mundo. Um importante texto acadêmico chama esta a "Era da Migração".

Mas também é a era do alarme de imigração, com embarcações européias patrulhando as costas africanas para interceptar os contrabandistas de seres humanos e novas cercas sendo planejadas ao longo do Rio Grande. Os países que querem a força e inteligência dos imigrantes também querem mais controle das fronteiras. Muitos deles consideram os imigrantes ilegais uma ameaça à segurança, especialmente em uma era de terrorismo, e temem que uma imigração em grande escala, mesmo quando legal, pode minar salários, exigir serviços onerosos e sujeitar as identidades nacionais às fogueiras do conflito religioso e cultural.

O que está em jogo pode ser visto aqui em Mindelo, um semicírculo de colinas áridas com vista para o único sinal de vida natural, o mar atrativo. Em um país com pouca chuva e uma história de fome, a emigração começou como uma necessidade e se tornou parte do DNA cívico. Você pode jantar no Cafe Portugal, beber no Bar Argentina e caminhar pela avenida da Holanda.

Mas a Holanda agora exige que os imigrantes passem em uma prova de cultura e língua holandesa. Outros países aumentaram o preço dos pedidos de visto, desencorajam os candidatos ao exigirem que viagem para a capital cabo-verdiana, Praia, e impondo novas penas aos empregadores que contratam imigrantes ilegais.

Apesar de a Holanda ter sido por muito tempo o destino favorito para os habitantes desta ilha, uma canção cabo-verdiana atualmente alerta que "a Holanda pertence aos holandeses".

Cuidado
Porque eles podem fazer você voltar nadando.
E você voltará para casa com algas nos dentes

Mindelo, a segunda maior cidade de Cabo Verde, tem cerca de 63 mil habitantes e um número aproximadamente igual de variações do conto do emigrante.

No bairro de Monte Sessego na encosta, Maria Cruz, 70, sorri diante do jogo de móveis de sala de estar que seu filho enviou de Roterdã, Holanda. A caminho do aeroporto, Stenio da Luz dos Reis, 17, estuda holandês e espera se juntar à sua mãe na Holanda. Na praia, Orlando Cruz, 46, olha para mesas vazias. Ele caiu de uma escada em Nova Jersey, Estados Unidos, e usou o dinheiro do seguro para abrir um hotel e um restaurante, que no momento estão praticamente vazios.

Enquanto o barulho de construção enche sua casa inacabada, Evanilda Lopes, 27, fala livremente sobre os documentos falsos que lhe permitiram entrar na Holanda.

Enquanto corre para trocar seu medicamento para HIV, Manuel Gomes, 41s, é igualmente franco sobre os crimes que o fizeram ser deportado de Providence, Estados Unidos. Ele se mudou para lá quando era pequeno e cresceu nas ruas -vendendo drogas, roubando carros e casas. Agora, como centenas de outros deportados dos Estados Unidos, ele se vê um homem sem país, exilado para um mundo altamente estrangeiro apesar de ser seu lugar de nascimento.

"Você tem um cabo-verdiano aqui que cortaria seu próprio braço para poder voltar", disse Gomes, que vive em uma choupana de um cômodo sem água corrente ou eletricidade.

Se Cabo Verde é a Galápagos da migração, o doutor Jorgen Carling, um geógrafo norueguês, é seu Darwin. Uma estrela em ascensão no circuito acadêmico, Carling, 32, visitou Cabo Verde há dez anos, aprendeu sozinho o português crioulo, a língua local, e tem retornado desde então.

"Cabo Verde é uma vitrine das contradições e fricções da migração global", ele disse. "É uma transição bastante dramática -de ser tão dependente da emigração a tentar lidar com um mundo no qual as fronteiras estão se fechando."

Ele cita uma abundância de tensões. A migração reduz a pobreza. Mas ela aumenta a desigualdade entre os emigrantes e os demais em casa. A emigração pode expressar devoção familiar. Também pode atrapalhar os laços familiares.

E, apesar de a migração estar atualmente em níveis recordes, também é grande a frustração das pessoas que querem emigrar, mas não podem. Isso porque, à medida que a emigração aumenta, o desejo de experimentar suas recompensas econômicas cresce ainda mais.

"A migração provavelmente é mais importante para mais pessoas do que já foi", disse Carling, do Instituto Internacional de Pesquisa da Paz, um grupo sem fins lucrativos em Oslo. "Mas o que caracteriza o mundo atual também é o sentimento de imobilidade involuntária."

Esses conflitos podem ser vistos em um casa de blocos de concreto em uma colina árida, onde a migração une e divide quatro gerações. Aos 79 anos, a proprietária, Antônia Delgado, é velha o bastante para lembrar da fome e que passou décadas vivendo em um barraco feito de latões de óleo usados. Graças ao dinheiro que seu filho enviou da Holanda, ela tem quatro cômodos, luzes elétricas e abastecimento de água.

Mas ela não tem mais um filho. Ela parou de telefonar há mais de cinco anos e ela não sabe se ele está vivo. "Eu estou muito preocupada", ela disse. "Ele me ajudou tanto."

Agora ela conta com o dinheiro enviado por um segundo emigrante da família, sua neta Fátima, uma babá em Portugal. Ela envia para Antônia uma ajuda mensal de US$ 135, mas fez com que ela tivesse que criar o filho da neta, um menino de 11 anos sem os dois dentes da frente e com um sorriso irreprimível.

O menino, Steven Ramos, passa por complexidades paralelas. O salário de sua mãe compra material escolar, aulas de artes marciais e um ocasional DVD. Mas ela foi embora há cinco anos e voltou para casa apenas uma vez. O pai trabalha na Holanda e raramente telefona. Steven o chamou de "ingrote" -ingrato- escolhendo um termo cabo-verdiano para emigrantes que esquecem aqueles que ficaram para trás.

Apesar de a mãe de Steven agora ter uma permissão para trabalho, ela não conseguiu um visto para Steven, que passou sua infância pensando que a reunião seria iminente. Ele chorou quando a visita recente dela terminou, mas viu sua partida como a maioria dos cabo-verdianos, como algo natural, necessário e bom. "Eu chorei, mas não fiquei triste porque sabia que ela precisava ir", ele disse. "Ela foi para nos dar melhores condições."

Uma identidade associada à migração
Sem a migração, Cabo Verde não existiria. A cadeia de dez ilhas, a 620 km da costa do Senegal, era desabitada até o século 15, quando Portugal a colonizou com dois grupos de imigrantes -europeus e escravos africanos. Cabo Verde se tornou uma mistura crioula de ambos os continentes e um depósito de suprimentos para o comércio de escravos.

A emigração em massa teve início no final dos anos 1800, em baleeiros que levavam os cabo-verdianos para a Nova Inglaterra. Ela continuou após a Segunda Guerra Mundial, com os planos europeus de trabalhadores convidados, que buscavam mão-de-obra temporária, mas trouxeram pessoas de forma permanente.

Estes mesmos planos trouxeram os turcos para a Alemanha, os sul-asiáticos para o Reino Unido e os norte-africanos para a França, e, uma geração depois, muitos europeus permanecem preocupados com a continuidade dos conflitos culturais. "Nós pedimos trabalhadores, mas recebemos povos", é um famoso lamento europeu.

Cabo Verde ganhou a independência de Portugal em 1975, aproximadamente na mesma época em que os planos de trabalhadores temporários acabaram. Ainda assim, a emigração cabo-verdiana prosseguiu -legal (por meio das leis de reunificação de famílias) e ilegalmente (por meio de turistas que permanecem após a expiração dos vistos). Muitas pessoas daqui viajam com vistos de turismo, então procuram um cidadão europeu ou americano para casamento, freqüentemente algum descendente de cabo-verdiano.

A migração é tão central na identidade dos cabo-verdianos que eles freqüentemente se gabam do fato de o número de emigrantes ser maior do que o da população que permanece no país. Isto é tecnicamente verdadeiro, disse Carling, apenas quando se conta os emigrantes e seus descendentes. Por tal padrão, ele estima a existência de 460 mil cabo-verdianos nas ilhas e 500 mil no exterior, incluindo 265 mil nos Estados Unidos.

"Sodade", o sucesso de Cesária Évora, uma moradora de Mindelo e vencedora do prêmio Grammy, transmite a "saudade, saudade, saudade de minha ilha".

Alguns estudiosos argumentam que os migrantes formam uma parcela recorde da população mundial, apesar de que os dados deficientes tornam difícil comparações históricas. Apesar do atual alarme, a migração provavelmente aumentará. As economias ricas com força de trabalho que está envelhecendo precisam de mão-de-obra. Os trabalhadores nos países pobres precisam de empregos. É difícil impedir que as fronteiras sejam cruzadas e as recompensas da mudança nunca foram tão grandes. O aumento salarial médio que aguarda os atuais migrantes não qualificados, em termos corrigidos pela inflação, é aproximadamente duas vezes maior do que os obtidos pelos migrantes há um século, durante o último grande período de migração global.

Os economistas geralmente argumentam que a migração ajuda as economias ricas a crescer, ao suprir a mão-de-obra necessária, apesar de alguns trabalhadores domésticos com baixa qualificação poderem sofrer reduções salariais devido ao aumento da concorrência.

Desde o início, Cabo Verde abraçou seus emigrantes -como parentes, investidores, lobistas por ajuda estrangeira, válvulas de segurança para o crescimento populacional e no final como eleitores. Com a ajuda dos emigrantes, Cabo Verde dobrou sua renda per capita desde 1990, para cerca de US$ 2.100, um valor alto para os padrões africanos. As remessas de dinheiro para casa correspondem a 12% do produto interno bruto e já foram duas vezes mais altas. Os emigrantes elegem seus próprios representantes na Assembléia Nacional.

Mas os especialistas em desenvolvimento estão divididos quanto aos efeitos da migração. As remessas de dinheiro alimentam e fornecem moradia aos pobres, assim como os emigrantes às vezes voltam com novos contatos de negócios e idéias.

Mas a emigração também pode drenar o talento dos países e promover a dependência, entre indivíduos e governos. Nenhum país saiu da pobreza apenas por meio da emigração. Apesar do progresso econômico aqui, o índice de desemprego paira acima de 20% e o setor que mais cresce, o turismo, é dominado por empregos com má remuneração.

Apesar de Carling admirar a capacidade de Cabo Verde de se reinventar como um país além de suas fronteiras, ele também vê problemas com a constante ênfase nas partidas. Elas podem enfraquecer os relacionamentos, encurtar a duração de casamentos e promover indiferença entre estudantes e trabalhadores. "A possibilidade de dependência das remessas de dinheiro -e da perspectiva de ir para o exterior algum dia- pode alienar a pessoa do ambiente", disse.

Enquanto os cabo-verdianos lutam para partir, outros estão imigrando. Esta também é uma característica da era da migração -a maioria dos países que enviam emigrantes também recebe imigrantes, ressaltando quanto o fenômeno é universal. Quase metade dos migrantes de países pobres se mudam para outros países pobres.

Mindelo, na ilha de São Vicente, está cheia de lojistas chineses em busca de novos mercados e mascates do oeste da África que fogem de países devastados pela guerra e por miséria pior. Muitos esperam se mudar para as Ilhas Canárias, que fazem parte da Espanha, a bordo de embarcações perigosas de contrabando, em jornadas que matam centenas, se não milhares, a cada ano.

"Isto é vida e morte", disse Emmanuel Kofi Cathline, um mascate local que partiu de Gana há 17 anos e já ganhou dinheiro ajudando emigrantes a marcarem as jornadas ilegais. Apesar de ações policiais o terem tirado do ramo, ele permanece leal ao que poderia ser chamado de necessidade global dos migrantes. "Se um lugar não é bom, se mude", disse. "Vá para outro lugar!"

Teste de otimismo
Apesar das crescentes barreiras, muitos cabo-verdianos permanecem confiantes de que partirão. Stenio da Luz dos Reis, o adolescente que está estudando holandês, atendeu a porta com grande otimismo: camiseta e bermuda laranja -você consegue imaginar qual é a cor nacional holandesa?- com a palavra "Holanda" escrita em suas costas.

Sua mãe partiu para a Holanda há seis anos, para trabalhar como empregada, e suas irmãs mais novas acabaram de se juntar a ela. Por ter passado dos 16 anos, Stenio ficou para trás, com um manual contendo cem perguntas em holandês.

Trinta aparecerão em uma prova. A 62ª é sobre se é importante aprender holandês rapidamente. (É.) A 59ª pergunta se bater na esposa é permitido. (Não é.)

Stenio paga US$ 70 por mês por um professor e prestará o exame em Dakar, que fica a duas horas de avião. Mas ele não se queixa. "É bom", ele disse sobre a prova. "Assim chegamos lá tendo uma idéia de como é." Além disso, ele acrescentou, "é o país deles".

Do outro lado da cidade, Evanilda Lopes, 27, tem mais experiência e menos otimismo. Uma mulher cheia de estilo com lantejoulas em sua camiseta e mechas loiras em seu cabelo, ela foi criada com relatos de moda e conforto de seus irmãos mais velhos na Europa. Ela abandonou a escola aos 17 anos e passou cinco anos buscando um visto de turismo, que chegou apenas depois de ter inventado uma conta bancária e um emprego fictícios. "Era a única forma de poder ir", disse.

As coisas azedaram na Holanda. Sua tia arrumou três holandeses com os quais poderia se casar, mas Evanilda os rejeitou. O clima na casa ficou hostil. Evanilda foi morar com um encanador holandês e eles tiveram um filho chamado Giovanni. Pessoas que vivem juntas na Holanda têm direitos de residência, mas quando o relacionamento acabou, também chegou ao fim sua permissão para ficar.

Ela voltou para casa no ano passado carregada dos bens de luxo que foi para a Europa para encontrar -cintos, bolsas, sandálias, perfume. Ela os vendeu nas ruas e ganhou dinheiro suficiente para começar a construir uma casa para ela e Giovanni, 5, que acabou de chegar a um país que não conhece.

Evanilda chama sua estadia na Holanda tanto de bênção como de maldição. "Eu era jovem, não sabia que a vida era tão difícil", ela disse. Com uma casa inacabada e planos pela metade, ela tem seus pés em uma costa, sua cabeça em outra e sua inocência perdida em algum ponto no meio do caminho.

Jason DeParte, em Mindelo, Cabo Verde. Tradução: George El Khouri Andolfato

[The New York Times, 24/06/2007]

CIA revelará parte de atividades ilegais

Material conhecido como "jóias da família" registra envolvimento da agência em tentativas de assassinatos de líderes
Fidel, Lumumba, Trujillo e general chileno estão na lista, que inclui experiências com civis, vigilância de jornalistas e escutas ilegais

SÉRGIO DÁVILA, DE WASHINGTON

A CIA tornará pública na semana que vem parte de documentos que comprovam atividades ilegais exercidas pela agência de inteligência norte-americana nos anos 50, 60 e 70. Entre elas, estão o planejamento ou tentativa de assassinatos de líderes como o ditador cubano Fidel Castro, monitoramento, vigilância, abertura de correspondência e/ou escuta ilegal de cidadãos norte-americanos, como a atriz e ativista Jane Fonda, e experimentos não-voluntários com drogas em civis.
O anúncio foi feito anteontem pelo atual diretor da agência, Michael Hayden, e é resultado de décadas de pressão de entidades de direitos civis, pesquisadores, acadêmicos e jornalistas. São 693 páginas de material previamente sigiloso, conhecido internamente como "jóias da família", e 11 mil páginas de registros de operações de inteligência ligadas à ex-União Soviética e à China e a relação entre os dois países.
Ontem, o National Security Archive, ligado à Universidade George Washington, na capital norte-americana, antecipou-se à agência e colocou parte dos documentos no ar.

"Esqueletos"
O que mais chama a atenção é uma lista de "esqueletos" relatada em 1975 pelo então diretor da CIA, William Colby, ao então presidente Gerald Ford, motivada por um texto do repórter Seymour Hersh no jornal "The New York Times".
Ford temia que a revelação das atividades ilegais da agência pudesse fazer com que ele tivesse o mesmo destino de seu antecessor, Richard Nixon, que renunciara no ano anterior.
Entre os "esqueletos", está a participação em tentativas de assassinato de Fidel, com o envolvimento "direto" de Robert Kennedy, enquanto ele era secretário de Justiça, segundo relato também tornado público de Henry Kissinger, então secretário de Estado dos EUA.
Mas não só: de acordo com relato de seu diretor à época, a agência planejou o assassinato de "alguns líderes estrangeiros", entre eles o africano anticolonialista e breve premiê do Congo Patrice Lumumba (1925-1961) e o ditador Rafael Trujillo (1891-1961), da República Dominicana -mas não teve "nada a ver" com o assassinato do primeiro, que acabaria efetivamente ocorrendo, e "apenas uma tênue conexão" com os assassinos do segundo.
Participou também do plano de assassinar o general e comandante chefe do Exército chileno René Schneider, morto em 1970 por um grupo de extremistas de direita que, com a ação, pretendiam impedir a posse do socialista Salvador Allende (1908-73). O diretor da CIA falou com o presidente no dia 3 de janeiro de 1975.
No dia seguinte, também em encontro com Ford, transcrições mostram a preocupação de Kissinger com depoimentos no Congresso sobre investigações de atividades golpistas no Chile da companhia telefônica norte-americana ITT durante o governo Allende. "Isso [os depoimentos] é só a ponta do iceberg", disse ele a Ford.
Colby também se referiu ao problema chileno no encontro anterior. "Há ainda um outro problema que pode causar muita confusão: depois da investigação ITT-Chile pelo Congresso, houve acusações de que nossos testemunhos não foram muito "kosher" [termo para comidas preparadas segundo a religião judaica usado nos EUA como gíria para "honesto"]".
O diretor segue: "Não creio que tenha havido atividade criminosa, mas houve um certo "andar na corda bamba". Há uma velha regra segundo a qual, para proteger fontes e informações, você pode distorcer um pouco as coisas", conclui.
Além de monitoramento ilegal de jornalistas críticos ao governo, infiltração em grupos de ativistas, abertura de correspondência de cidadãos norte-americanos de e para a ex-União Soviética e a China, há testes bancados pela agência com cidadãos norte-americanos "não-voluntários", "incluindo reação a certas drogas".
Ao anunciar a liberação dos arquivos anteontem, Hayden, da CIA resumiria seu conteúdo com a frase: "A maioria é desabonadora, mas faz parte da história da CIA". Para o diretor do National Security Archive, Thomas Blanton, é um começo.

[Folha de São Paulo, 23/06/2007]

As duas vidas do imperador

Biografias de César, escritas pelo latino Suetônio e o grego Plutarco, alternam censura e louvor ao líder romano

PAULA DA CUNHA CORRÊA

Vidas de César" traz ao leitor duas biografias do imperador romano, uma pelo latino Suetônio, a outra pelo grego Plutarco, em acuradas traduções (bilíngües).
As biografias de Plutarco (cerca de 50-120) e Suetônio (cerca de 70-130) inserem-se na tradição latina de coletâneas biográficas como as "Imagines" de Varrão (116-27 a.C.) e os "Homens Ilustres" de Cornélio Nepos (100-24 a.C.), obra inovadora na qual uma série de figuras memoráveis recebe tratamento sistemático: para cada romano, o autor oferece a biografia de um estrangeiro comparável.
Nas "Vidas Paralelas", Plutarco desenvolve esse modelo ao compor, também aos pares, biografias de personagens gregas e romanas. Assim, a biografia de Júlio César se espelha na de Alexandre, o Grande.
Essas duas "Vidas" de César nos chegaram sem os parágrafos iniciais, que tratavam, provavelmente, dos primeiros anos do futuro imperador. A narrativa de Suetônio começa quando, aos 16 anos, César perde e pai; a de Plutarco, com as hostilidades entre Sila e o jovem César.

Assassinato teatral
Ambas narram a sua carreira política e a conquista do império até o assassinato teatral no Senado e a "divinização" pós-morte de César sob forma de cometa (Suetônio) ou por ser caro aos deuses (Plutarco).
Notáveis, porém, são as diferenças entre as duas biografias, salientadas pela sua publicação conjunta neste volume que torna a comparação inevitável.
Suetônio alinhava inúmeras citações e referências tão eruditas quanto minuciosas, compiladas graças a seu ofício como administrador das bibliotecas públicas e dos arquivos imperiais de Trajano e chefe da secretaria do príncipe no governo de Adriano.
Biografias de César, escritas pelo latino Suetônio e o grego Plutarco, alternam censura e louvor ao imperador romano César
Se o ritual fúnebre (o encômio ao morto e a inscrição que registrava o nome, feitos e cargos por ele exercidos, guardada pelos familiares) constitui o embrião do gênero biográfico romano, a narrativa de Suetônio está distante de suas origens.
Pois, apesar de louvar César por sua oratória, clemência e comando militar, entre virtudes e vícios, o biógrafo confere relevo aos últimos.
Escarafuncha toda sorte de documentação para expor detalhadamente os mais embaraçosos aspectos pessoais de César, como o homossexualismo passivo, que motivou o apelido "Rainha da Bitínia" e o seguinte bordão, entoado pelos soldados que o escoltavam no desfile triunfal da Gália:
"César submeteu as Gálias, Nicomedes submeteu César:
Aqui triunfa agora César que submeteu as Gálias,
Não triunfa Nicomedes que submeteu César."
Objeto de censura, conforme Suetônio e suas fontes, são também os métodos empregados por César para a conquista e a manutenção do poder.
Espetáculos e banquetes nababescos, duplicação dos soldos das legiões visando a fidelidade das tropas e o apoio popular, "conchavos para ser dispensado das leis", saque de cidades aliadas, rapinas e sacrilégios, desvio de ouro do Capitólio, tráfico de influência, concessão de favores...
Com a permuta dos nomes próprios, pensaríamos estar lendo crônicas contemporâneas, não fosse a extraordinária bravura de César, entre outras virtudes, como o seu estímulo a médicos e professores, que o distinguem dos ilustres governantes atuais.

Exaltação
Se a biografia de Plutarco peca por imprecisões factuais, tornando-se presa fácil para historiadores positivistas do século 19, a sua dicção é elevada e a urdidura narrativa mais fina e dramática que a de Suetônio.
O moralista grego fecha os olhos para grande parte dos vícios, compondo antes um encômio a César, exaltado como modelo paradigmático de comandante e imperador.
Além de alegar parcos conhecimentos da língua latina, Plutarco não tinha acesso à vasta documentação consultada por Suetônio. Mas, caso a tivesse em mãos, certamente não faria dela o mesmo uso, porque a sua biografia é mais filosófica do que histórica, voltada particularmente para questões éticas.
"Foi para os outros que comecei a escrever as "Vidas", mas vejo que persevero e afeiçôo-me também a elas já em benefício próprio, servindo-me da investigação ("historía') como um espelho no qual busco de algum modo adornar e ajustar a minha vida em conformidade com as virtudes daqueles (homens). Pois assemelha-se antes ao convívio quando, ao receber e entreter cada objeto da investigação como um convidado, contemplamos "o porte e as qualidades" para eleger de suas ações o mais importante e belo de se conhecer. "Ah, que graça maior que esta receberias", mais eficaz para a correção do caráter?"

PAULA DA CUNHA CORRÊA é professora de língua e literatura grega na USP e autora de "Armas e Varões - A Guerra na Lírica de Arquíloco" (Edunesp).
VIDAS DE CÉSAR. Autores: Suetônio e Plutarco. Tradução: Antônio da Silveira Mendonça e Isis Borges Belchior da Fonseca. Editora: Estação Liberdade

[Folha de São Paulo, 17/06/2007]

Um assunto de homens

Obra pioneira defende que a homossexualidade na Grécia Antiga decorreu da vida militar e da segregação social das mulheres

PEDRO PAULO A. FUNARI

Há quase 30 anos, o classicista britânico Kenneth Dover [1920] publicava este que viria a se tornar um clássico.
Antes que o tema das relações de gênero se espraiasse entre os historiadores, antes de Michel Foucault [1926-84] publicar sua monumental "História da Sexualidade" [ed. Graal], um estudioso das letras gregas ousava tratar desse tema tabu.
Dover já se havia notabilizado, em 1960, no estudo da ordem das palavras em grego antigo! Continuou a dedicar-se, nos anos seguintes, a temas literários.
Foi com a publicação do volume sobre a homossexualidade, em 1978, que seu nome transcendeu os departamentos de letras clássicas para atingir uma popularidade talvez inesperada pelo próprio autor.
No explodir das identidades sexuais, a partir da década de 1960, este livro veio preencher uma lacuna, ao mostrar como a sexualidade antiga era diferente da moderna.
Dover não faz uso de teorias para abordar o tema. Não se aventura nas leituras antropológicas das diferenças de costumes entre os povos nem se atreve a adotar uma perspectiva teórica.
Procura, ao invés disso, esmiuçar as fontes antigas, tanto literárias quanto arqueológicas, na ânsia de descrever, da maneira mais exaustiva possível, como os gregos mantinham relações sexuais com pessoas do mesmo sexo.
Por isso mesmo, resigna-se a tratar pouco das mulheres.

Erudito e acessível
Ressalta que a arqueologia fornece informações que não são mera ilustração da literatura, mas que pinturas e inscrições constituem fontes independentes. Apesar de erudito, pleno de análises do vocabulário grego, a leitura é agradável e acessível.
A tese central é a de que o eros (desejo) se exercia numa oposição entre o que deseja ("erastés") e o que é desejado ("erômenos"), termos que se aplicavam para um homem e uma mulher ou entre duas pessoas do mesmo sexo.
Aliás, Dover lembra que todas as palavras para o amor e para a sexualidade tinham essa função independentemente do sexo dos envolvidos.
Identifica o que deseja como o que penetra e o desejado com o que é penetrado e considera que os gregos nada objetavam a um homem que fosse ativo, mas não aceitavam que fosse passivo senão quando criança ou adolescente. Mesmo nesse caso, pensa que os gregos não admitiam que um jovem tomasse a iniciativa do sexo passivo.
Se isso ocorresse, o homem submisso seria punido pela cidade, por falta de controle sobre si mesmo ("húbris").
A penetração era sempre positiva para o homem, ser penetrado era aceito, sempre que fosse um jovem a ser educado por um adulto e sem a sua iniciativa. De onde viria tal tolerância -para usar uma palavra empregada por Dover- para com as relações de homens com homens?
Aventa a hipótese de que isso estivesse ligado à segregação das mulheres e à vida militar masculina. Satisfaria uma necessidade de relações pessoais com uma intensidade que não era encontrada no casamento.
Como resistem esses argumentos, após décadas de teoria de relações de gênero? Um dos pilares da argumentação de Dover consiste na censura da cidade grega ao desejo por parte do jovem passivo, mas no postscriptum de 1989, publicado ao final do livro, ele admite que subestimou as evidências.
A questão central, contudo, é outra.
Dover parte do conceito antigo de respeito à norma ("nomos"), como se as pessoas, na Grécia Antiga ou em qualquer época e sociedade, respeitassem ou tivessem como horizonte para seus comportamentos as regras.
Essa perspectiva, chamada hoje de normativa, tem sido muito criticada, pois considera que tudo que saia da norma é um desvio de comportamento e que a sociedade é homogênea. Se aceitarmos que os comportamentos sociais são muito mais variados do que quaisquer normas (e que as normas são contraditórias!), tudo fica mais matizado.
Essas são ponderações posteriores à publicação da obra e não podem ser dela cobradas. O seu mérito maior foi reunir uma documentação volumosa, e, por isso mesmo, o livro continua uma referência.

PEDRO PAULO A. FUNARI é professor titular de história antiga na Universidade Estadual de Campinas (SP).
HOMOSSEXUALIDADE NA GRÉCIA ANTIGA. Autor: Kenneth Dover. Tradução: Luís S. Krausz. Editora: Nova Alexandria

[Folha de São Paulo, 17/06/2007]

Trabalhadores sem terra

O historiador Le Roy Ladurie traça um amplo painel da vida dos camponeses franceses ao longo de cinco séculos, até 1789

EVALDO CABRAL DE MELLO

Para o leitor de língua francesa, a "História dos Camponeses Franceses - Da Peste Negra à Revolução", que acaba de aparecer em tradução brasileira, não constitui propriamente uma novidade.
O primeiro volume corresponde ao capítulo redigido por Le Roy Ladurie para o primeiro volume da "Histoire Économique et Sociale de la France" [História Econômica e Social da França, PUF], que Fernand Braudel e Ernest Labrousse dirigiram e publicaram em 1970.
O segundo volume é basicamente a contribuição de Le Roy Ladurie ao segundo tomo da "Histoire de la France Rurale" [História da França Rural], que Georges Duby e Armand Wallon organizaram para as Éditions du Seuil em 1975.
Em 2002, Le Roy Ladurie restaurou a unidade entre os dois trabalhos originalmente concebidos para que constituíssem um único livro, como o que agora se apresenta.
Destarte, esse historiador normando, figura representativa da terceira geração dos "Annales", fecha o círculo de uma extensa obra iniciada em 1966 com a publicação de "Les Paysans du Languedoc" [Os Camponeses do Languedoc], que aplicou ao quadro dessa região francesa o modelo neomalthusiano do grande ciclo agrário formulado por Wilhelm Abel, Michael Postan e Édouard Perroy, longos ciclos de uma história quase imóvel, pontuados por rupturas do equilíbrio população-subsistência.

Ciclos agrários
A "História dos Camponeses Franceses" é a aplicação desse modelo ao conjunto da história rural francesa entre a Grande Peste e a Grande Revolução [1789].
Grosso modo, ao longo desses cinco séculos, sucedem-se dois grandes ciclos agrários: a Peste Negra interrompe o crescimento agrícola que vinha da média Idade Média (séculos 11 a 13) e atira a França, como toda a Europa Ocidental, numa longa crise demográfica e econômica da qual ela só começou a recuperar-se a partir de meados do século 15, assim mesmo de maneira hesitante e geograficamente díspar.
Cem anos depois, na segunda metade do século 16 e na primeira do 17, a recuperação do que o autor chama de "Renascimento rústico" perdeu o fôlego, e a França passou, da segunda metade do 17 até por volta de 1720, por outra fase duradoura de estagnação no campo, da qual só escaparia no decurso do século 18, com o crescimento rural que atingirá o pico em meados do século 19.
O mérito de Le Roy Ladurie consiste em afinar essa narrativa, introduzindo no âmbito desses grandes ciclos a distinção entre as flutuações de primeira, de segunda e de terceira ordens, que, no meio rural, nos lembra a trindade braudeliana da estrutura, da conjuntura e do evento.
O neomalthusianismo do modelo é assim um malthusianismo [doutrina do economista britânico Thomas Robert Malthus segundo a qual o controle da natalidade é necessário para evitar a miséria decorrente da desproporção entre o aumento da população e os dos seus meios de subsistência] mitigado.
Em primeiro lugar, ele se aplicaria, ao menos na Europa Ocidental, apenas ao Antigo Regime, não tendo a generalidade inexorável que lhe atribuiu o grande economista britânico.
Ademais, a repetição do ciclo, com sua fatalidade de dízima periódica, é temperada por um elemento de linearidade ou, antes, de avanços cumulativos, de vez que, após o século 16, já não haveria retornos catastróficos como o de meados do 14.
A partir do Renascimento, a França já não passará pelas flutuações de primeira ordem. Sua população pode variar, de 1560 a 1720, acima ou abaixo do teto de 20 milhões de almas, mas já não voltará a cair em 50%, como no período seguinte à Peste Negra.
Ela atingiu um patamar em torno do qual as oscilações podem ser descritas em termos das flutuações de segunda ordem.

Várias ordens
São nelas que Le Roy Ladurie concentra sua análise, tanto mais que já estão razoavelmente estudadas as de primeira ordem como também as de terceira ordem -que se reduzem a crises de subsistência e a epidemias, de breve duração, de um ou alguns anos, gerando conseqüências demográficas bem menos graves que as flutuações de segunda ordem.
Tanto no campo quanto na economia nacional, o principal ator da história rural da França moderna foram essas flutuações de segunda ordem, que se caracterizam por durações mínimas de um a dois decênios e máximas de três e quatro decênios.
As perdas demográficas tornam-se assim menores relativamente à devastação de meados do século 14, podendo alcançar em caso extremo um décimo da população.
Entre 1550 e 1720, o país sofreu três dessas flutuações, correspondentes às guerras de religião da segunda metade do século 16; à Guerra dos 30 Anos e à Fronda, guerra civil dos derradeiros anos 1640 e dos primeiros 1650; e às duas últimas décadas do reinado de Luís 14 (1695-1715).
Destarte, é por meio dessas flutuações de segunda ordem que intervêm as conjunturas políticas e militares, modificando por sua vez o modelo estritamente malthusiano do equilíbrio entre população e subsistência.
Escusado aduzir que a síntese com que Le Roy Ladurie fecha a obra iniciada 40 anos antes com "Os Camponeses do Languedoc" não seria possível sem a infra-estrutura, digamos assim, de pesquisas regionais que surgiram na segunda metade do século 20, como as de Jean Jaquard sobre a região da Île-de-France, de René Baehrel sobre a baixa Provença, de Guy Bois sobre a Normandia, para citar apenas algumas das principais.
A elas, caberia acrescentar os próprios ensaios de Le Roy Ladurie reunidos nos volumes de "Le Territoire de l"Historien" [O Território do Historiador], nos quais versa aspectos concretos da história rural francesa.
Como assinala o autor, "como sempre, uma série de monografias locais é muito mais esclarecedora do que as generalidades construídas muito mais tarde".
São esses trabalhos que revelam estruturas microrregionais que, devidamente comparadas, permitem descortinar, não sem controvérsias de especialistas, os grandes ritmos da história rural francesa, sem passar pelo estudo sistemático, região por região -o que seria inviável em termos da documentação disponível, sempre desigual e heterogênea.

Técnica pontilhista
A técnica historiográfica de Le Roy Ladurie é assim, neste livro, essencialmente pontilhista, para tomar emprestado um conceito de história da pintura.
O autor, um virtuoso da utilização da amostragem, procede por pinceladas rápidas, mas nem por isso assistemáticas, na tentativa de chegar a uma visão de conjunto.
O uso da documentação de natureza serial (sobretudo dízimos da produção agrícola ou assentos de batismo e óbito) completa-se com o recurso às fontes não-seriais, singulares, mas que registram o cotidiano rural, como o diário de Gilles de Gouberville, pequeno fidalgo do Contentin, no século 16, ou a biografia do pai, camponês da baixa Borgonha, redigida por Restif de La Bretonne, em fins do século 18.
Foi esse tipo de fonte que, aliás, permitiu a Le Roy Ladurie integrar à história propriamente rural, com seu forte travo economicista, as dimensões etnográficas e antropológicas da vida do campo, presentes também na "História dos Camponeses Franceses".

Sucessos de livraria
Mas essas dimensões já foram exploradas em profundidade numa série de livros que, inclusive, se tornaram sucessos de livraria sem comprometimento da qualidade historiográfica, como "Montaillou" [Companhia das Letras], a reconstituição do cotidiano de uma aldeia dos Pireneus Orientais no início do século 14, e "O Carnaval de Romans" [Companhia das Letras], a narrativa de uma festividade que degenerou em sangrento acerto de contas entre os grupos sociais de uma cidadezinha da Dromme, sem esquecer "L'Argent, l"Amour et la Mort en Pays d'Oc" [O Dinheiro, o Amor e a Morte na França Occitânica, ed. Seuil], "La Sorcière de Jasmin" [A Feiticeira de Jasmin, ed. Seuil] ou "Le Siècle des Platter" [O Século dos Platter, Fayard].
Não se conclua, porém, que a história rural, mesmo investigada nessa perspectiva interdisciplinar, esgotou a inacreditável laboriosidade do autor: o Antigo Regime francês, ele também o abordou por meio de uma síntese magistral e do ensaio em que traçou, guiado pelas memórias do duque de Saint-Simon, "Saint-Simon ou le Système de la Cour" [Saint-Simon ou o Sistema da Corte, Fayard], isto é, o funcionamento de Versalhes sob Luís 14 e durante a regência do duque de Orléans.

EVALDO CABRAL DE MELLO é historiador, autor de, entre outros, Nassau - Governador do Brasil Holandês (Companhia das Letras) e O Negócio do Brasil (ed. Topbooks).

HISTÓRIA DOS CAMPONESES FRANCESES -DA PESTE NEGRA À REVOLUÇÃO
Autor: Emmanuel Le Roy Ladurie. Tradução: Marcos de Castro. Editora: Record


[Folha de São Paulo, 17/06/2007]

Saramago - O uivo de um pessimista combativo

Escritor pede uma crítica da atual democracia

José Andrés Rojo

Alto e magro, com sua branca palidez, José Saramago (nascido em Azinhaga, Portugal, em 1922) disse neta quinta-feira (14/6) que é preciso perder a paciência e demonstrá-lo diante de um mundo que está correndo para o abismo, que é incapaz de questionar as limitações de uma democracia governada pelos ricos e onde a esquerda é cada vez mais "idiota". "Uivemos!", ele pediu na Torre de Don Borja, recuperando a frase do "Livro das Vozes" ("Uivemos, disse o cachorro") que precede seu romance "Ensaios sobre a Lucidez".

"Não deixo de me fazer sempre a mais banal das perguntas", havia dito pouco antes. "O que é que estou fazendo aqui? Não estou buscando uma finalidade, não espero que me examinem e que me aprovem ou não. Pergunto-me se aproveitei o tempo, em quê o desperdicei. Não somos nada mais que um monte de cheios e vazios, e vivemos com uma terrível má consciência. É que sabemos que não deveríamos viver assim. O mundo é um horror; a vida, um desastre. Mas não percebemos que tudo pode mudar. É preciso mudar a vida. Se não mudarmos de vida, não mudaremos a vida."

Pouco depois, o escritor português ligava o triturador. "Agora o cidadão serve para votar, e depois até logo!" E passa os quatro anos seguintes recolhido, sem participar do andamento das coisas, fora do jogo. Tudo se reduz, no máximo, a trocar um governo por outro. "O mundo democrático é dirigido por organismos que não são democráticos", comentou depois, e referiu-se a diversas organizações internacionais. Então chegou a hora de uivar, foi essa sua conclusão.

"Estamos no fim de uma civilização", a que surgiu do Iluminismo, da Enciclopédia e da Revolução Francesa está indo para o buraco. E referiu-se veladamente à Polônia ao indicar que chegará o dia em que os cidadãos europeus escolherão nas urnas um regime fascista. A escritora colombiana Laura Restrepo havia definido Saramago em sua intervenção, aludindo ao que diz um de seus personagens, como "um cético do tipo radical".

O autor de "O Ano da Morte de Ricardo Reis", "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" e "A Balsa de Pedra", entre outros, e prêmio Nobel de Literatura em 1988, encerrou ontem o encontro internacional de literatura ibero-americana Lições e Mestres, que também celebrou em sua primeira edição as obras de Carlos Fuentes e Juan Goytisolo. A filosofia do encontro foi a proximidade.

A Fundação Santillana e a Universidade Internacional Menéndez Pelayo propuseram para as sessões uma espécie de café literário, montado na Torre de Don Borja, e ali, ao redor de pequenas mesas, sentaram-se escritores e críticos, editores e professores, jornalistas e tradutores. Estiveram, entre outros, Julio Ortega, José María Pérez Gay, Héctor Aguilar Camín, Sergio Ramírez, Carmen Iglesias, José María Ridao, Linda Levine, Juan Francisco Ferré e Carlos Reis.

Este último celebrou na obra de Saramago - que foi apresentada neta quinta pela vice-reitora da UIMP, Virginia Maquieira - sua capacidade de subverter as imagens estabelecidas. Ontem também falaram autores como Nino Judice, que indicou que em sua obra a ficção se transforma em história, ou como Fernando Iwasaki, que comentou que Saramago soube refletir em seus livros "a natureza social da condição humana".

Mas foi Laura Restrepo a encarregada de elogiar a obra de Saramago. "Esse é o odor do ser humano, nos indica a obra de Saramago", disse, "anda por aqui, segue-o, tomou este atalho, esse é o odor que desprende, essa é a cor de sua aura, essa a ferocidade de sua luta...". E reconheceu que Maria, do "Evangelho Segundo Jesus Cristo", é o personagem que lhe toca mais fundo: não a Madona que tem o menino nos braços, mas a Pietá, a mulher que sustenta o filho morto. Essa homenagem a todas as mães que, como tantas colombianas, "dão a vida a seus filhos para entregá-los à morte". E quase no final comentou que a obra de Saramago sussurra: "Isto é entre você e mim". E acrescentou que as histórias que ele conta tratam "no fundo somente de você, que lê isto, e de mim, que o escrevo". O resto são palavras.

[El Pais, 15/06/2007 - Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves]

Todas as faces de Frida

O Museu de Belas Artes da Cidade do México inaugura a maior exposição dedicada à pintora nos cem anos de seu nascimento

Sara Brito

Cem anos? Em 1981, uma equipe de televisão alemã-oriental chegou ao México para fazer um documentário de meia hora sobre a artista mexicana, mulher do pintor Diego Rivera. Em busca de novidades para temperar sua reportagem, Gislind Nabakowsky e Peter Nicolai entrevistaram Isabel Campos, amiga e colega de escola de Frida. Nascida em 1906, Isabel comentou que Frida era um ano mais moça que ela, contradizendo a data de nascimento até então considerada correta. Os jornalistas, surpresos, procuraram sua certidão e, de fato, Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderón tinha nascido em 7 de julho de 1907. Se tivéssemos escutado Frida Kahlo, hoje ninguém falaria de seu centenário.

Não haveria grandes exposições no México e nos EUA, nem estariam sendo revelados com tanta pompa seus arquivos particulares da Casa Azul. Seria preciso esperar mais três anos. Mas Kahlo nunca se cansou de dizer que nasceu com a revolução mexicana, em 1910. "Frida enfeitava a verdade, a inventava, a extraía, mas nunca a evitou", lembra Raquel Tibol em seu livro "Frida Kahlo en su Luz Más Íntima" (Lumen). A artista sempre quis ser a menina nascida de um México novo, marxista e revolucionário.

O peso que a política teve na vida de Frida - apesar de não se manifestar diretamente em seus quadros, exceto alguns precoces como "O Caminhão" ou "Auto-Retrato na Fronteira de EUA e México"- é precisamente um dos eixos da enorme exposição que preparou para seu centenário o Museu de Belas Artes da Cidade do México, de hoje até 19 de agosto. Maior inclusive que a antológica feita pela Tate Modern de Londres em 2005. "Frida Kahlo, 1907-2007 - Homenagem Nacional" é a primeira leitura com aspirações analítica e global da poliédrica - e mediática - figura da mulher mais cotada no febril mundo da arte. "É mais uma mostra analítica que uma revisão cronológica de seus quadros; tentamos ver Frida em seu contexto histórico e social", explica um dos curadores e neto de Diego Rivera, Juan Coronel.

Em oito salas do Palácio de Belas Artes (onde o visitante também pode ver os impressionantes murais de Rivera ou de David Alfaro Siqueiros), e através de 65 óleos, 45 desenhos, 11 aquarelas e cinco gravuras, mais cerca de 50 cartas e cem fotografias, mostra uma Frida que não só pintava sobre si mesma -e que Breton quis incluir entre os surrealistas-, como também, o que se lê em uma de suas cartas, organizou uma arrecadação de fundos para o lado republicano na Guerra Civil espanhola.

Não só foi pintora de óleos, mas escritora, amante da caligrafia japonesa e amante -apaixonada- de Diego Rivera. "Frida tinha muitas dimensões, e aqui se mostra um retrato mais completo dela e de seu tempo", afirma Cristina Kahlo, sobrinha-neta da artista e curadora da seção fotográfica da mostra.

Exatamente, a fotografia surge como uma chave da exposição. Não só na sala dedicada a mostrar Frida retratada por grandes fotógrafos, como Manuel Alvárez Bravo ou Nicholas Murray (que foi um de seus amantes); ou em outra que mostra Frida em ambiente informal e familiar, vestida de homem na adolescência; mas que também ressalta a influência que a fotografia teve em sua pintura. Seu pai, Guillermo Kahlo, fotógrafo para quem ela posou desde menina, marcou essa maneira de se auto-retratar e retratar aos outros que a transformou em ícone. E muito rentável, embora a polêmica acompanhe cada novo produto que sai com a marca registrada Frida Kahlo.

Quando a herdeira da imagem e assinatura da artista mexicana registrou o nome de sua tia, não sabia a confusão que ia armar. Isolda Pinedo Kahlo lançou sob licença óculos, bonecas e um sutiã, e em 2005 deu o passo que criou uma sociedade que promete fazer ouro com a imagem da artista: a Frida Kahlo Corporation. Algo que Carlos Philips Olmedo, diretor dos museus Frida Kahlo, Dolores Olmedo e Anahuacalli, qualifica de "agressão". "Vão lançar tênis, coisa que Frida nunca usou!"

Pouco se fala na exposição do que todos falaram até cansar: dessa Frida sofrida, maltratada pela poliomielite, pelo acidente que a destroçou e pelas múltiplas operações. Frida fala aqui sobre humor e paixão pela vida. Além de quadros chaves, como "As Duas Fridas", são exibidas pela primeira vez no México obras impactantes como "O Suicídio de Dorothy Hale", "O Retrato de Diego e Frida" ou "Menina com Máscara".

Mas a coisa não pára aí. O México preparou artilharia pesada em um ano em que também se comemoram os 50 anos da morte de Diego Rivera. Espera-se que em setembro sejam publicados os 56 mil documentos tirados de caixas e armários nos últimos três anos. Entre eles, mais de 2.500 fotos, cerca de 53 desenhos totalmente inéditos de Kahlo, esboços de Rivera e muitos outros documentos. O tesouro que qualquer biógrafo desejaria. "Isso nos dará muita informação sobre o casal e ajudará a complementar o que já sabemos sobre Frida", comenta Carlos Philips Olmedo, diretor dos museus dos artistas. Em julho virá o primeiro bocado dessa descoberta na exposição que prepara a Casa Azul Museu Frida Kahlo.

E há mais. O Fórum De Monterrey prepara para agosto outra mostra de Frida no Museu Marco, com a coleção completa do Museu Dolores Olmedo. Obras de teatro, reedições de livros, pequenas exposições em outros pontos do México colocarão Frida na boca de todos até que chegue a vez de Rivera. O outono será a época das grandes exposições do pintor, que também ocupará o Palácio de Belas Artes com uma grande antologia de seus murais.

A expectativa só faz aumentar o mito que esse casal ambíguo e fascinante quis criar em vida. E que assim se apodera de 2007. "Eles sabiam que seriam esse casal quase mitológico", diz Juan Coronel, que não hesita em classificá-los como os primeiros artistas pop da história.

[El País, 17/06/2007 -
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves]