Freud, em permanente ebulição

José Andrés Rojo, em Madri
Desde 1º de janeiro, as obras de Sigmund Freud, o pai da psicanálise, ficaram livres de direitos autorais no mundo inteiro. Exceto na Espanha, onde devido a uma disposição transitória da lei de propriedade intelectual continuam vigentes até 2019. Na França a notícia mobilizou as editoras, e ao longo do ano serão traduzidos por diversos selos vários textos do fundador da psicanálise. Tal rapidez de reflexos indica que Freud continua conquistando leitores e que sua obra mantém seu virulento poder de agitar o debate intelectual?Sigmund Freud (1856-1939) veio questionar que o sujeito governasse sua vida com total autonomia, como se acreditava até então. Em condições normais, contou em "O Mal-estar da Cultura", o ego "se apresenta como algo independente, unitário, bem demarcado diante de todo o resto". Mas, acrescentou, esse ego se prolonga "para dentro, sem limites precisos, com uma entidade psíquica inconsciente que denominamos id, ao qual vem a servir de fachada". Por isso não sabemos grande coisa do que ocorre por essas zonas interiores, explicou, onde operam muitos desejos sexuais reprimidos.
Médico de formação, Freud investigou esses territórios obscuros para encontrar a maneira de curar determinados transtornos psicológicos. Daí surgiu uma nova escola, e sua correspondente terapia, a psicanálise. Mas o que fez principalmente esse brilhante senhor vienense foi mudar nossa maneira de entendermos a nós mesmos e ao mundo.
"Pode-se acreditar ou não na psicanálise, como se pode ser ou não marxista, entretanto as contribuições de Freud são indiscutíveis", comenta Antonio Valdecantos, um filósofo que ensina na Universidade Carlos 3º de Madri e que publicou há pouco tempo "La fábrica del bien" (ed. Síntesis). "Todo mundo sabe hoje que o ego não é transparente, nem está sempre disponível. Ninguém discute que haja zonas obscuras e que por mais liberdade que se possa ter nossa sexualidade continuará sendo opaca."
Carlos Gómez Sánchez, autor de "Freud y su obra: Génesis y constitución de la teoría psicoanalítica" (ed. Biblioteca Nueva), entende que o médico vienense soube vincular de maneira muito frutífera a sexualidade com a cultura, o desejo com a norma. Por isso considera que sua influência pode ser localizada em boa parte das referências intelectuais do século 20, começando pela fenomenologia e passando por Sartre, Fromm ou Bloch até chegar a Deleuze. "Há duas questões que me preocupam a propósito de seu legado", explica. "Em primeiro lugar, que não sejam levadas a sério suas contribuições e que sua obra se banalize e vulgarize. Ou, pelo contrário, que se entendam suas teorias como uma nova pedra filosofal, com o que a psicanálise poderá se transformar em uma péssima metafísica. Freud não é nenhum molho que sirva para enfeitar todos os pratos."
Em geral não há discussão: Freud é um clássico, faz parte do patrimônio intelectual de nosso tempo, dinamitou a maneira de entender o sujeito enquanto tentou tratou da força da libido.
Fernando Savater, em um artigo sobre o fundador da psicanálise, lembrou-se da definição que Chesterton deu em sua biografia de Dickens do que é um clássico: "Um rei do qual já se pode desertar, mas que não há modo de destronar". A citação veio a calhar, porque se alguém teve discípulos dispostos a questioná-lo foi Freud. Mas ninguém foi tão longe quanto ele na hora de mostrar o fundamental. É "invulnerável", escreveu Savater, apesar de ter sido muitas vezes traído. E anotou que a mais escandalosa dessas tradições foi a estilística. "É interessante, é detalhista, é pedagógico", dizia sobre Freud, "não renuncia às imagens nem as confunde com as explicações, pertence à cultura da sinceridade."
Continuam, portanto, vivos seus conceitos e sua lucidez na hora de diagnosticar nossas complicações. E sua terapia? Francisco Granados, que é analista há mais de 30 anos e dirige a revista da Associação Psicanalítica de Madri, responde no intervalo entre duas sessões. "O que podemos oferecer a quem nos consulta é a maneira de encontrar suas pulsões, seus medos, sua sexualidade, seus problemas na relação com os outros... mas a cura é algo que fica no ar: está em suas mãos seguir ou não o caminho proposto." Voltando a Freud, Granados insiste em um detalhe que nem sempre é valorizado em sua obra: que não há psicanálise se não for social. "Sem o outro não somos nada", afirma.
O escritor Andrés Barba, que ganhou com Javier Montes o Prêmio Anagrama de Ensaio com o livro "La ceremonia del porno", observa que, por mais permissiva que possa ser a sociedade atual na hora de difundir imagens sexuais, "a pornografia não resolve nada de nossa relação com os outros". "É um canal que nos permite o acesso a uma informação ilimitada sobre as práticas menos ortodoxas", diz, "mas não vai além."
Freud nos permitiu "ser conscientes de que existe uma série de processos que ocorrem de maneira soterrada, inconsciente, mas tanta consciência não consertou grande coisa". Abriu, isso sim, imensos caminhos para a literatura ao "transformar a nós mesmos em objeto de observação". Esse interesse continua aí. Será por isso que, como afirma Antonio Valdecantos, Freud continua sendo lido. E certamente será ainda mais, agora que em quase todo lugar sua obra ficou livre de direitos autorais.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
[El Pais, 30/01/2010]

Como foi a grande invasão

David Alandete
O ataque ao Google e outras 33 empresas americanas revela a infiltração de espiões em redes vitais para a segurança mundial

Os alarmes se acenderam na sede do Google em Mountain View, Califórnia, no início deste mês. Os engenheiros encarregados da segurança das redes da empresa tinham encontrado um vírus troiano. Mais um. Este, no entanto, era diferente dos outros. Havia se alojado nos servidores durante dias, trabalhando silenciosa e incansavelmente. Os espiões tiveram acesso à informação muito valiosa da companhia e à informação relativa às contas de vários usuários do Gmail, o serviço de correio eletrônico do Google.
O troiano, batizado de Hydraq, tinha penetrado nos servidores do Google de uma forma já quase rotineira: um link anexado a um e-mail. Essa mensagem foi recebida por apenas alguns funcionários, mas tratava-se de um grupo muito seleto, que tinha acesso a redes valiosas para a empresa. Os hackers sabiam perfeitamente quem estavam atacando e que portas queriam forçar para entrar no Google e roubar a informação secretamente.
Os espiões tinham enviado mensagens verossímeis, com assuntos e textos semelhantes aos que esses funcionários teriam recebido em um dia normal de trabalho, segundo comprovaram posteriormente empresas de segurança online como Symantec e McAfee. Depois, através de uma falha no Internet Explorer da Microsoft, os hackers teriam causado uma profunda brecha no Google. Quando um troiano desse tipo se instala no computador ou servidor, pode assumir o controle dele; pode acionar e apagar programas, criar privilégios, permitir acessos e, sobretudo, pode enviar informação para seus donos a milhares de quilômetros, à vontade.
Para os engenheiros do Google, o principal era saber para onde o Hydraq tinha enviado aquela informação. Os engenheiros determinaram que se comunicava com servidores de comando e controle que a empresa rastreou imediatamente, seis endereços com nomes como yahooo.8866.org ou ftp2.homeunix.com. Todos eles estão localizados em Taiwan. A grande maioria, cinco, era propriedade da empresa local Era Digital Media.
O que o Google descobriu naqueles servidores era preocupante. O ataque não tinha sido dirigido só à empresa da máquina de buscas mais famosa do mundo. Havia outras 33 companhias atacadas. Muitas delas vitais para a segurança dos EUA, como a empresa química Dow Chemical ou a produtora dos caças B-2 Spirit, Northrop Grumman, contratada pelo Pentágono.
A pedido de Washington, o governo de Taiwan investigou o assunto e chegou à conclusão de que esses endereços eram só uma rota de ataque. Os hackers os haviam ocupado e usado para canalizar a invasão. "Esses endereços IP e os servidores dos quais partiu o ataque e se enviaram aquelas mensagens eletrônicas, todos foram usados no passado por hackers associados ao governo chinês ou por agências que dependem diretamente dele", explica um investigador que trabalha para uma empresa de segurança que presta serviços para outras firmas atacadas e prefere se manter no anonimato. "Isto dá uma ideia de que o ataque veio do governo ou de gente associada ao governo chinês."
O Google informou às outras empresas e ao governo de Washington, alertando sobre o que poderia ser o maior caso de espionagem industrial e estratégica da história. No Departamento de Estado houve certo nervosismo, suficiente para que sua titular, Hillary Clinton, emitisse um comunicado e anunciasse, dias depois, o envio de uma nota de protesto diplomático a Pequim. No Pentágono, entretanto, poucos estranharam: suas agências de inteligência já tinham descoberto em abril do ano passado uma série de ataques semelhantes, que deixaram um rastro de troianos e códigos maliciosos na rede elétrica dos EUA, procedentes da Rússia e principalmente da China.
Aquele ataque foi descoberto semanas e até meses depois de os espiões terem se infiltrado nas redes. O dano já estava feito. Se tivessem desejado, os espiões poderiam ter desligado a eletricidade de regiões inteiras dos EUA, por exemplo. A secretária de Segurança Nacional, Janet Napolitano, disse que se sabia "há algum tempo" desse tipo de infiltração, mas recomendava que o país "ficasse alerta". A China, através de seu Ministério das Relações Exteriores, afirmou que não havia se infiltrado em nenhuma rede pública americana.
Desde os anos da Guerra Fria e das sofisticadas operações de espionagem realizadas por agentes secretos, os procedimentos podem ter mudado drasticamente. "Assim poderia estar sendo feita a espionagem do futuro", explica Rob Knake, analista de ciber-segurança no Conselho de Relações Internacionais de Washington.
"O governo chinês tem todas as capacidades necessárias para armar uma operação dessa escala, disso não há dúvida, embora por enquanto tudo sejam suposições. E tem os recursos humanos e a disciplina necessária para executá-lo, algo que uma organização privada não poderia fazer. Isso demonstra como se pode estar efetuando a espionagem entre nações. Trata-se de operações realizadas através da rede, com muito pouco custo para os que as fazem, e, se derem certo, elevados benefícios."
Na delicada ordem mundial cibernética, a China supera os EUA: sua comunidade de internautas atingiu 380 milhões de pessoas, contra pouco mais de 220 milhões nos EUA, segundo a consultoria Nielsen Online. Além disso, "na China existe uma população abundante de jovens que são muito dedicados à causa do governo", explica Cheng Li, diretor do Comitê Nacional de Relações entre China e EUA e analista do Instituto de Pesquisas Brookings de Washington. "Não podemos dizer que sejam maioria. Mas existem, e são jovens com elevados conhecimentos de informática e com sentimentos indubitavelmente nacionalistas. E para alguns deles uma operação assim seria um triunfo, uma medalha."
Aí está o grande debate: se a operação foi algo cometido por alguns hackers vagamente associados ao governo, como um atentado em rede inspirado pelo fervor patriótico, ou se a mão do governo de Pequim se encontrava efetivamente por trás da operação. A reação da diplomacia americana parece indicar o segundo, pois Washington chegou a anunciar o envio de um protesto diplomático a Pequim.
Em um discurso em Washington na quinta-feira passada, Hillary Clinton deixou claro que os EUA não vão tolerar outro ataque dessas características, com duras advertências: "Quanto ao terrorismo de determinados Estados e seus associados, estes devem saber que os EUA protegerão suas redes, e aqueles que interromperem o livre fluxo de informação para nossa sociedade e para qualquer outra são considerados um risco para a economia, para o governo e para a sociedade civil".
O tipo de informação que os espiões obtiveram parece confirmar que por trás de seu ataque havia algo mais que um simples roubo de dados comerciais. O próprio vice-presidente executivo e chefe do departamento jurídico do Google, David Drummond, telefonou para a ativista tibetana Tenzin Seldon, estudante na Universidade Stanford, para avisá-la de que sua conta do Gmail tinha sido infiltrada. Levaram seu computador portátil. Procuraram troianos, alguma brecha do exterior e não encontraram nada. Os espiões tinham acessado seu correio através de informação armazenada nos servidores do Google.
Segundo um relatório feito no ano passado pela Northrop Grumman para a Comissão Governamental de Assessoria em Economia e Segurança EUA-China, esse é o tipo de informação que o governo de Pequim procura: "As categorias de informação roubada não têm qualquer valor monetário, como números de cartões de crédito ou informação sobre contas bancárias, que são objeto de organizações cibercriminosas. Informação técnica de engenharia de defesa, informação relativa aos exércitos ou documentos de análise política dos governos não são material facilmente vendável pelos cibercriminosos, a não ser que haja um comprador que seja um Estado-nação".
Ao intuir que haveria uma motivação política por trás do ataque, a direção do Google organizou um ato conjunto de desafio ao governo chinês. Pediu às outras empresas que dessem a entender que estavam fartas, que exigissem novas regras do jogo. Mas as negociações não tiveram êxito. As outras empresas -não só Dow Chemical ou Northrop Grumman, mas também a empresa de segurança online Symantec, o Yahoo ou a Adobe- preferiram continuar fazendo negócios na China como sempre, sem irritar o governo.
A própria natureza das empresas afetadas explica por que o Google reagiu desse modo e as outras não. Segundo Ed Stroz, um ex-agente do FBI que agora é codiretor da prestigiosa empresa de segurança digital Stroz Friedberg, "essas empresas têm uma segurança fortíssima. Estamos falando, em alguns casos, de firmas de segurança que trabalham ou trabalharam para o Pentágono. Não têm só uma rede. Normalmente essas empresas contam com diversas redes que não estão conectadas entre si, para salvaguardar a informação".
As empresas deixam vazios entre suas redes para evitar roubo de informação. "Duvido que os hackers tenham chegado ao coração da informação de muitas dessas companhias. Mas o caso é outro se a empresa afetada se dedica a prover serviços aos usuários. Uma empresa concentrada em buscas ou em correio eletrônico como o Google deve ter mais informação em seus servidores gerais. Para elas, a interconexão e a rapidez são vitais. Foi assim que se chegou a obter dados sobre as contas de ativistas, e daí a reação do Google", acrescenta Stroz.
Um dos temores do Google é que os hackers tenham contado com ajuda interna. Ao saber do ataque, a empresa começou a investigar seus funcionários na China. "Minha impressão é que as empresas que localizam sua pesquisa e desenvolvimento na China e empregam cidadãos chineses para trabalhar em seu software provavelmente melhoraram a capacidade de infiltração em informática dos serviços de inteligência e segurança chineses", explica Larry Wortzel, um dos mais reputados especialistas em relações sino-americanas e membro da Comissão Governamental de Assessoria em Economia e Segurança EUA-China.
Afinal, esses são os riscos associados a entrar no maior mercado de Internet do mundo. As empresas ocidentais que buscam um benefício sabem a que se submetem: um mercado opaco, duras normas de censura e a possibilidade de vazamentos e ataques. Para o Google é um preço alto demais. Outras, como Microsoft e Yahoo, decidiram continuar jogando.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
[El Pais, 28/01/2010]

A nova guerra fria?
José Reinoso, em Pequim

"Caso Google" aumenta a tensão nas complexas relações China-EUA
O surpreendente anúncio do Google de que poderá encerrar seus negócios na China, em reação aos ataques cibernéticos sofridos por seus computadores e os e-mails de dissidentes do país asiático que utilizam seu serviço Gmail, provocou um novo foco de tensão nas complexas relações entre China e EUA.
No plano econômico, a crise deixou claras as dificuldades que as companhias estrangeiras enfrentam para trabalhar no mercado chinês -especialmente as que operam em um setor extremamente sensível como o da informática- e o impacto que a crescente ciberespionagem tem sobre a concorrência empresarial em um mundo cada vez mais globalizado. No plano político, o ciberataque atribuído à China é uma chamada de atenção para o crescente poder desse país e o aumento do uso da Internet como ferramenta de espionagem política e militar. A revelação do Google adquire uma dimensão especial devido à identidade de algumas das empresas americanas afetadas, como a Northrop Grumman, uma das maiores fabricantes de armas do mundo.
O governo de Pequim negou qualquer envolvimento no assunto e replicou à empresa californiana que se quiser trabalhar no país asiático terá de cumprir a lei. Refere-se ao anúncio feito pelo Google de que deixará de censurar as informações em sua máquina de buscas chinesa (algo que fazia desde que se instalou na China em 2006, para cumprir as exigências oficiais) e que se o governo não aceitar irá embora.
Com toda a certeza Pequim vai recusar essa exigência porque a censura na Internet -assim como nos jornais, rádio e televisão- é um dos elementos cruciais de seu sistema político de partido único. Mas tentará buscar uma solução, na mais pura tradição negociadora asiática. O abandono da China por parte de uma das empresas tecnológicas mais admiradas do mundo seria um novo revés para a imagem de um país que tem má reputação no Ocidente, e aplicaria um golpe na confiança empresarial estrangeira na China, quando os investimentos estrangeiros continuam sendo um dos principais motores de sua economia.
Por isso as autoridades chinesas estão tentando minimizar o impacto do caso. O vice-ministro das Relações Exteriores, He Yafei, disse na quinta-feira passada que o caso Google não deve ser "interpretado de modo exagerado" nem ligado às relações entre os dois países. Na semana passada Yao Jian, porta-voz do Ministério do Comércio, enfatizou que há muitas formas, que não explicou, de resolver a diferença. Mas insistiu em que todas as empresas estrangeiras, incluindo o Google, devem cumprir a lei; em outras palavras, aceitar a censura. "Qualquer decisão que a Google tomar não afetará as relações econômicas e comerciais entre China e EUA, porque ambas as partes têm muitas vias de comunicação e negociação", disse.
As autoridades de Washington não se mostram tão claras e afirmam que ainda é cedo para conhecer todas as consequências da crise. Há muito tempo estão preocupadas com os programas de ciberespionagem chineses. Um painel de assessores do Congresso afirmou em novembro que Pequim parecia ter aumentado o acesso a computadores americanos para obter informação útil para seus programas militares.
Chip Gregson, subsecretário de Defesa para Assuntos de Segurança na Ásia-Pacífico, afirmou que seu departamento está especialmente preocupado com os programas nuclear, espacial e ciberespacial da China, com quem, segundo disse, as relações são "complicadas" por seu duplo caráter de parceiro e concorrente.
Robert Willlard, almirante chefe das forças americanas no Pacífico, afirmou que a incerteza é um dos maiores obstáculos nas relações mútuas e denunciou o que chamou de inconsistência entre as declarações oficiais e a realidade, já que, segundo ele, por um lado Pequim diz que seu programa militar é só defensivo e que busca um ambiente harmonioso e pacífico no qual sua economia possa crescer e prosperar, mas por outro o Exército Popular de Libertação está aumentando a capacidade para projetar seu poder e suas forças assimétricas e convencionais.
A decisão do Google colocou em uma posição incômoda as outras empresas americanas que trabalham no setor de Internet na China. Mas por enquanto olharam para o outro lado. O Yahoo disse que "se alinha" com a posição de sua concorrente, sem dar mais detalhes, enquanto a Microsoft afirmou que não tem qualquer plano de abandonar esse suculento mercado. "Não entendo de que forma nos ajudaria, não entendo de que forma ajudaria a China", declarou Steve Ballmer, conselheiro delegado dessa empresa. "Todos os dias nos atacam de todas as partes do mundo, e creio que aos outros também. Não creio que tenha ocorrido nada fora do normal." Os ciberpiratas aproveitaram defeitos de segurança do navegador Internet Explorer da Microsoft para os ataques.
O Yahoo controla 40% da empresa proprietária do Alibaba, o maior site de comércio eletrônico da China, enquanto a empresa de Bill Gates possui numerosos interesses no país, que vão da venda de programas de informática a centros de pesquisa e desenvolvimento. Além disso, seu buscador Bing poderia se beneficiar da saída do Google, que detém 31% do mercado de máquinas de busca. A empresa local Baidu, com uma cota de 63%, lidera o setor, que atingiu US$ 1 bilhão em 2009.
As multinacionais estrangeiras aceitaram há muito tempo as restrições governamentais em troca de uma parte do mercado chinês, imenso e em alta. E não só no setor de Internet, onde devem cooperar com a censura. Desde a indústria de automóveis até a de comidas rápidas, as empresas às vezes se viram obrigadas a seguir as sugestões ou imposições oficiais sobre a escolha do sócio local. Poucas falam disso claramente por temor de represálias. O negócio tem primazia.
Mas Pequim não é imune às pressões. No último verão renunciou à obrigatoriedade anunciada anteriormente de que todos os computadores vendidos na China fossem estejam equipados com um programa de filtro de Internet. E meses antes da oposição de Washington fez Pequim abandonar a exigência de que as empresas revelassem o funcionamento de sua tecnologia de segurança informática.
As tensões sobre o caso Google se acrescentam aos habituais atritos entre a maior e a quase segunda economia do mundo, que vão desde as queixas americanas pela supervalorização da moeda chinesa até as acusações de Pequim sobre protecionismo comercial americano, as diferenças sobre direitos humanos e a ira chinesa pela venda de armas americanas a Taiwan. Uma longa lista de contenciosos à qual a ciberespionagem acrescentou agora um novo e moderno elemento.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
[El Pais, 28/01/2010]

Céticos encenam "overdose" em massa de homeopatia na Inglaterra

da BBC Brasil
Um grupo de pessoas céticas com relação aos efeitos da homeopatia encenou uma "overdose" massiva de remédios homeopáticos em 13 cidades britânicas para denunciar a falta de provas científicas sobre a eficácia dos tratamentos e tentar provar a ineficiência dos medicamentos.
Os manifestantes tomaram frascos inteiros de remédios homeopáticos em frente a lojas de uma rede de farmácias nas cidades de Londres, Liverpool, Manchester, Edimburgo, Glasgow, entre outras.
O protesto foi organizado pelo grupo Sociedade Merseyside de Céticos (MSS, na sigla em inglês).
Os manifestantes pediram à rede de drogarias Boots para interromper a venda de remédios homeopáticos em suas lojas, alegando que os mesmos são "um absurdo científico".
"Eu acredito que eles devam estar vendendo pílulas de açúcar para os doentes. A homeopatia não funciona melhor do que um placebo, Os remédios são tão diluídos que não há nada neles", afirmou Michael Marshall, porta-voz da MSS.

Mau gosto
A Sociedade de Homeopatas do Reino Unido classificou a demonstração como um "trote".
"Esse é um trote publicitário pouco aconselhável, de mau gosto, que não contribui em nada para o avanço do debate científico sobre a forma como a homeopatia funciona", disse a diretora da Sociedade, Paula Ross.
Segundo ela, os manifestantes não devem sofrer reações adversas por terem tomado uma grande quantidade de remédios homeopáticos.
Já o diretor de padrões profissionais da Boots afirmou que a rede segue as regras da indústria farmacêutica para a venda de homeopatia.
"A homeopatia é reconhecida pelo NHS (o sistema nacional de saúde britânico) e muitos profissionais da saúde e nossos clientes optam por usar remédios homeopáticos", disse.
De 2005 a 2009, o NHS, sistema nacional de saúde britânico, gastou cerca de 12 milhões de libras em tratamentos homeopáticos, segundo um levantamento encomendado pela rede de televisão Channel 4.

[FolhaOnLine, 30/01/2010]

A história das coisas

Embora se possa fazer algumas críticas (em particular por algumas simplicações), o vídeo merece ser visto e pensado.


2010 - Ano Joaquim Nabuco


"A história da escravidão africana na América é um abismo de degradação e miséria que se não pode sondar."

Diplomata, político, jornalista, reformador social, historiador, literato e, sobretudo, pensador, Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo nasceu em 19 de agosto de 1849 (Recife, PE) em faleceu em 17 de janeiro de 1910 (Washington, EUA).

Saiba mais...
Fundação Joaquim Nabuco

Academia Brasileira de Letras

Obras
Acesso gratuito a obras de Joaquim Nabuco no site Domínio Público.


Texto escolhido


O IDEAL ABOLICIONISTA

   Compare-se com o Brasil atual da escravidão o ideal de Pátria que nós, Abolicionistas, sustentamos: um país onde todos sejam livres; onde, atraída pela franqueza das nossas instituições e pela liberdade do nosso regímen, a imigração européia traga, sem cessar, para os trópicos uma corrente de sangue caucásico vivaz, enérgico e sadio, que possamos absorver sem perigo, em vez dessa onda chinesa, com que a grande propriedade aspira a viciar e corromper ainda mais a nossa raça; um país que de alguma forma trabalhe originalmente para a obra da humanidade e para o adiantamento da América do Sul.

   Essa é a justificação do movimento Abolicionista. Entre os que têm contribuído para ele e cedo ainda para distribuir menções honrosas, e o desejo de todos deve ser que o número dos operários da undécima hora seja tal que se torne impossível, mais tarde, fazer distinções pessoais. Os nossos adversários precisam, para combater a idéia nova, de encará-la em indivíduos, cujas qualidades nada têm que ver com o problema que eles discutem. Por isso mesmo, nós devemos combater em toda a parte tendo princípios, e não nomes, inscritos em nossa bandeira. Nenhum de nós pode aspirar à glória pessoal, porque não há glória no fim do século XIX em homens educados nas idéias e na cultura intelectual de uma época tão adiantada como a nossa, pedirem a emancipação de escravos. Se alguns dentre nós tiverem o poder de tocar a imaginação e o sentimento do povo de forma a despertá-lo da sua letargia, esses devem lembrar-se de que não subiram à posição notória que ocupam senão pela escada de simpatias da mocidade, dos operários, dos escravos mesmos, e que foram impelidos pela vergonha nacional, a destacarem-se, ou como oradores, ou como jornalistas, ou como libertadores, sobre o fundo negro do seu próprio país mergulhado na escravidão. Por isso eles devem desejar que essa distinção cesse de sê-lo quanto antes. O que nos torna hoje salientes é tão-somente o luto da pátria: por mais talento, dedicação, entusiasmo e sacrifícios que os Abolicionistas estejam atualmente consumindo, o nosso mais ardente desejo deve ser que não fique sinal de tudo isso, e que a anistia do passado elimine até mesmo a recordação da luta em que estamos empenhados.

   A anistia, o esquecimento da escravidão; a reconciliação de todas as classes; a moralização de todos os interesses; a garantia da liberdade dos contratos; a ordem nascendo da cooperação voluntária de todos os membros da sociedade brasileira: essa é a base necessária para reformas que alteiam o terreno político em que esta existiu até hoje. O povo brasileiro necessita de outro ambiente, de desenvolver-se e crescer em meio inteiramente diverso.

   Nenhuma das grandes causas nacionais que produziram, como seus advogados, os maiores espíritos da humanidade, teve nunca melhores fundamentos do que a nossa. Torne-se cada brasileiro de coração um instrumento dela; aceitem os moços, desde que entrarem na vida civil, o compromisso de não negociar em carne humana; prefiram uma carreira obscura de trabalho honesto a acumular riqueza fazendo ouro dos sofrimentos inexprimíveis de outros homens; eduquem os seus filhos, eduquem-se a si mesmos, no amor da liberdade alheia, único meio de não ser a sua própria liberdade uma doação gratuita do Destino, e de adquirirem a consciência do que ela vale, e coragem para defendê-la. As posições entre nós desceram abaixo do nível do caráter; a maior utilidade que pode ter hoje o brasileiro, de valor intelectual e moral, é educar a opinião (feliz do que chega a poder guiá-la), dando um exemplo de indiferença diante de honras, distinções e títulos rebaixados, de cargos sem poder efetivo. Abandonem assim os que se sentem com força, inteligência e honradez bastante para servir à pátria do modo mais útil, essa mesquinha vereda da ambição política; entreguem-se de corpo e alma à tarefa de vulgarizar, por meio do jornal, do livro, da associação, da palavra, da escola, os princípios que tornam as nações modernas fortes, felizes e respeitadas; espalhem as sementes novas da liberdade por todo o território coberto das sementes do dragão; e logo esse passado, a cujo esboroamento assistimos, abrirá espaço a uma ordem de coisas fundadas sobre uma concepção completamente diversa dos deveres, quanto à vida, à propriedade, à pessoa, à família, à honra, aos direitos dos seus semelhantes, do indivíduo para com a nação, quanto à liberdade individual, à civilização, à igual proteção a todos, ao adiantamento social realizado, para com a humanidade que lhe dá o interesse e participação - e de fato o entrega tacitamente à guarda de cada um - em todo esse patrimônio da nossa espécie.

   Abolicionistas são todos os que confiam num Brasil sem escravos; os que predizem os milagres do trabalho livre, os que sofrem a escravidão como uma vassalagem odiosa imposta por alguns, e no interesse de alguns, à nação toda, os que já sufocaram nesse ar mefítico, que escravos e senhores respiram livremente; os que não acreditam que o brasileiro, perdida a escravidão, se deite para morrer, como o romano do tempo dos Césares, porque perdera a liberdade.

   Isso quer dizer que nós vamos ao encontro dos supremos interesses da nossa pátria, da sua civilização, do futuro a que ela tem direito, da missão a que a chama o seu lugar na América; mas, entre nós e os que se acham atravessados no seu caminho, quem há de vencer? É esse o próprio enigma do destino nacional do Brasil. A escravidão infiltrou-lhe o fanatismo nas veias, e, por isso, ele nada faz para arrancar a direção daquele destino às forças cegas e indiferentes que o estão, silenciosamente, encaminhando.
(O abolicionismo, 1883.)

Presidente argentina ordena abertura de arquivos da ditadura

6/01/2010 - 14h11

BUENOS AIRES, 6 JAN (ANSA) - A presidente da Argentina, Cristina Kirchner, assinou um decreto no qual se ordena a abertura dos arquivos relacionados à atuação das Forças Armadas durante a ditadura militar que governou o país entre 1973 e 1986.
O dispositivo, que leva o número 4/2010 e também as firmas dos ministros da Justiça, Julio Alak, e da Defesa, Nilda Garré, foi publicado no Diário Oficial da nação nesta quarta-feira.
Por meio dele, o governo argentino retirou a classificação "de segurança" das informações que dizem respeito ao período.
Desta forma, o decreto determina a abertura de "toda aquela informação e documentação vinculada à atuação das Forças Armadas" entre 1976 e 1983, salvo aquela relacionada ao "conflito bélico do Atlântico Sul [Guerra das Malvinas] e a qualquer outro conflito de caráter interestatal".
A assinatura e publicação da medida respondem a solicitações do Tribunal Federal número 1 quanto a uma causa sobre o centro de detenção clandestino "La Cacha", em La Plata.
A iniciativa, prossegue o texto, também se vincula à retomada de processos por violações dos direitos humanos cometidas durante a ditadura, o que se tornou possível após a anulação das chamadas leis de impunidade - Obediência Devida e Ponto Final -, ocorrida durante a gestão do ex-presidente Néstor Kirchner (2003-2007).
Segundo o decreto, a reabertura destes casos requer "uma grande quantidade de informação e documentação relacionada à atuação das Forças Armadas". Ainda de acordo com o texto, a não divulgação dos documentos contraria a "política de Memória, Verdade e Justiça que o Estado argentino vem adotando desde 2003".
A ditadura argentina foi uma das mais violentas da região. Em apenas sete anos de regime, estima-se que cerca de 30 mil pessoas tenham desaparecido nas mãos de agentes da repressão, segundo entidades defensoras dos direitos humanos.
Nos últimos anos, comandantes das Forças Armadas, autoridades e agentes da repressão foram ao banco dos réus para responder por crimes de violações dos direitos humanos.

Após 50 anos, obra de Albert Camus permanece atual

Moacyr Scliar

Profundidade do pensamento e domínio da forma literária marcam produção do argelino, Nobel de literatura em 1957

Este 4 de janeiro assinala os 50 anos da morte de um dos escritores e intelectuais mais influentes do século 20: Albert Camus. Nascido em 1913 em Mondovi, Argélia, Camus era filho de um francês morto na Primeira Guerra e de uma descendente de espanhóis. Era, portanto, um "pied noir", "pé-negro", termo que designa a população de origem francesa que vivia na Argélia.
Sua infância, em Argel, foi pobre: trabalhou com o tio, tanoeiro, e a muito custo estudou. Cursou filosofia e doutorou-se com uma tese sobre Santo Agostinho. Poderia ter seguido a carreira docente, mas a tuberculose da qual sofria (como muitos artistas e intelectuais à época) agravou-se, impedindo-o de trabalhar na área.
Em 1939, mudou-se para a França e, em 1940, aderiu ao movimento da resistência contra a ocupação nazista. Ainda em 1940, fundou, com outros, a revista "Combat", da qual foi redator-chefe de 1944 a 1946. Simultaneamente, dava início à uma carreira literária que lhe valeria o Nobel de literatura em 1957. Na Argélia, publicara "O Avesso e o Direito" e "Bodas em Tipasa". Seguiram-se "O Estrangeiro", "A Peste", "O Mito de Sísifo" e "O Homem Revoltado". Também escreveu para o teatro "Calígula", "Os justos" e "O Estado de Sítio".

Mãos sujas
Em 1942, conheceu Jean-Paul Sartre, de quem foi amigo por dez anos e com quem manteve uma das polêmicas mais famosas do pensamento contemporâneo, vinculada às grandes transformações ocorridas após a Segunda Guerra.
Com a vitória da União Soviética no fronte oriental, o comunismo stalinista expandiu-se, tomando o poder em vários países. Porém, a entusiástica adesão de muitos intelectuais à Revolução Russa, de 1917, agora dava lugar à decepção, quando não à franca revolta, como mostram os depoimentos de Arthur Koestler, Ignazio Silone, Richard Wright, Louis Fischer e Stephen Spender em "O Deus que Falhou" (1949).
Koestler, autor de "O Zero e o Infinito", romance anti-stalinista, influenciou muito Camus. Sartre, mais velho que Camus e visto como o expoente maior do existencialismo, só se aproxima da política em 1941, mas, então, sua postura é bem mais rígida. Ele de certa forma justifica os excessos do stalinismo e do regime maoista sob o argumento de que política exige "mãos sujas" ( "Les Mains Sales", título da peça teatral claramente autobiográfica descrevendo os conflitos de um jovem intelectual burguês).
Antes sujar as mãos, diz o filósofo, do que ficar em cima do muro, uma questão, como vemos, muito atual. Ao mesmo tempo, Sartre manifestava-se contra o domínio francês na Argélia que havia desencadeado uma luta de libertação. Camus era a favor da independência, mas contra o terrorismo usado pela guerrilha. A polêmica entre os dois é descrita em "Camus e Sartre - O Fim de uma Amizade", de Ronald Aronson, publicado no Brasil pela Nova Fronteira (2007).

Jogo de futebol
Àquela altura, a reputação de Camus já estava consolidada e ele viajava pelo mundo inteiro. Veio ao Brasil, em 1949, e pediu para assistir a uma partida de futebol e deu conferências em várias cidades, apesar de sentir-se doente -pode ter havido uma reexacerbação da tuberculose.
Manoel Bandeira, que esteve com ele e também era tuberculoso, conta que falaram sobre a doença e outros temas com simplicidade: "Não havia nenhum vestígio dessa personagem odiosa que é a celebridade itinerante. Não parecia um homem de letras. Era um homem da rua, um simples homem".
A autenticidade, associada à profundidade do pensamento e ao domínio da forma literária, torna a obra de Albert Camus, morto em 1960 em um acidente de carro, sempre atual.

Algumas obras
"O Avesso e o Direito" (editora Record; R$ 32,90; 112 pág.)
"O Estado de Sítio" (editora Civilização Brasileira; R$ 27; 208 pág.)
"O Estrangeiro" (editora Record; R$ 32,90; 128 pág.)
"O Homem Revoltado" (editora Record; R$ 52,90; 352 pág.)
"O Mito de Sísifo" (editora Record; R$ 32,90; 160 pág.)
"A Peste" (edições BestBolso; R$ 17,90; 294 pág.)
"A Queda" (edições BestBolso; R$14,90; 112 pág.)

[Folha de São Paulo, 04/01/2010]

Um santo sob suspeita

Miguel Mora

Bento 16 promove a beatificação de Pio 12, um ultraconservador a quem os judeus atribuem "silêncios demais" diante do Holocausto e de ser morno diante do terror de Hitler. Menos polêmica gera o processo iniciado para elevar aos altares o pontífice João Paulo 2º

O hoje venerável Pio 12, Eugenio Maria Giuseppe Giovanni Pacelli (nascido em Roma em 1876, morto em Castelgandolfo em 1958), foi o chefe do catolicismo durante os anos mais convulsos do século 20, entre 1939 e 1958. Sua liderança à frente da Igreja Católica provoca ainda hoje uma enorme controvérsia histórica. Durante longos anos ele foi conhecido como "o papa de Hitler". Faziam-se notar sua germanofilia e seu extremo cuidado nas formas ao se opor ao regime nazista e ao extermínio judeu. Hoje, no Museu Yad Vashem de Jerusalém, uma placa recorda que Pio 12 calou-se demasiadas vezes diante do Holocausto.

Segundo outras fontes, entre 1941 e 1944 o papa e a Igreja Católica salvaram mais judeus da perseguição nazista do que qualquer outra pessoa ou instituição. Autores e políticos israelenses como Golda Meir afirmaram que pelo menos 860 mil judeus foram salvos pelo Vaticano. Historiadores posteriores replicaram que esses elogios eram só uma forma de conseguir que a Santa Sé reconhecesse o Estado de Israel.

Em 1963 "O Vigário", uma obra do dramaturgo alemão Rolf Hochhuth, retratou Pio 12 como um hipócrita que evitou intervir no Holocausto. O autor e a obra, cuja encenação durava cinco horas, nasceram na República Federal da Alemanha, mas continuam sendo atacados hoje como um panfleto marxista. Há pouco tempo uma revista católica italiana escreveu que as acusações partiam do bloco comunista e que foi a Rádio Moscou, em 2 de junho de 1945, a primeira a acusar Pacelli de ser o papa de Hitler.

Setores católicos lembram que o general Pacepa, chefe da Securitate romena, afirmou que tanto a obra de teatro como os ataques contra o papa foram fabricados pela KGB para desacreditar a Igreja durante a guerra fria. Como tantas vezes, Marx contra Deus.

Para neutralizar a lenda negra, Paulo 6º abriu em 1965 a causa para a canonização de Pacelli e permitiu o acesso aos arquivos dos anos anteriores à guerra. Em 2008, documentos desclassificados nos EUA, Argentina e Inglaterra mostraram que a coleção vaticana estava cheia de omissões cruciais.

Desde 1999, uma comissão judaico-católica formada por seis professores trabalha para tentar entender melhor os silêncios de Pacelli. O único resultado são 47 perguntas e a queixa do judeu Michael Marrus: o Vaticano torpedeia a investigação.

Os arquivos dos anos cruciais (1940-1945) continuam fechados. Mas Bento 16 pode tê-los visto. E parece crer firmemente na santidade de Pio 12. Ratzinger pensa que seu antecessor calou somente para não provocar demais Adolf Hitler e não piorar a situação dos judeus, uma palavra que aquele sempre evitou utilizar (em seu lugar usava o termo "não arianos").

Em junho passado a fundação Pave the Way para o entendimento entre religiões, dirigida pelo judeu Gary Krupp, anunciou que tem 2.300 novas páginas de documentos que demonstram que Pio 12 "trabalhou com diligência para salvar os judeus da tirania nazista". Há um mês a fundação pediu ao museu Yad Vashem que incluísse Pio 12 na lista dos Justos entre as Nações. Segundo Krupp, um documento alemão inédito prova que em setembro de 1943 o governo nazista idealizou um plano para sequestrar e matar Pacelli, e que este contou a seus cardeais que havia redigido sua carta de demissão porque temia sua morte iminente. O filantropo judeu acrescentou que Pio 12 ordenou que sua Cúria se deslocasse para um país neutro e escolhesse ali um novo papa.

A apaixonante polêmica está em seu ponto máximo. Por que Ratzinger decidiu agora beatificar o homem a quem o Museu do Holocausto ainda considera qualquer coisa menos um herói? Por que o fez ao mesmo tempo que acelerava a veloz beatificação do popular João Paulo 2º, o homem que segundo a Liga Contra a Difamação fez mais em 27 anos pela relação com os judeus do que ninguém jamais havia feito? Para que sejam beatos só falta o reconhecimento oficial de um milagre obrado por sua intercessão.

Ao comparar no tempo as "virtudes heróicas" de seus dois papas antecessores, um o mais criticado pelos rabinos, outro o mais amado - Wojtyla foi o primeiro a ir a Jerusalém e ali os chamou de "irmãos mais velhos" -, Ratzinger cumpre um objetivo muito simbólico, segundo escreveu Luigi Accattoli em "Il Corriere della Sera": "Afirma a continuidade do pontificado romano além da diversidade de suas figuras singulares".

A oposição judia à beatificação está hoje bem mais dividida que há dois anos e meio. Mas a ira não se aplacou. Sopram novos ventos de batalha entre católicos e judeus, e a visita de Ratzinger à sinagoga de Roma, prevista para 17 de janeiro, parece cheia de incertezas. Na quarta-feira passada, em uma tentativa de aplacar os protestos da comunidade judia, o Vaticano esclareceu que Pio 12 não será beatificado junto com João Paulo 2º. "As duas causas são totalmente independentes e não se pode prever que acabem de forma simultânea", explicou Federico Lombardi, porta-voz da Santa Sé. Além disso, disse, a assinatura do decreto das virtudes heróicas do discutido papa "refere-se apenas à relação de Pacelli com a fé, e não é uma avaliação do alcance histórico de suas decisões".

Os rabinos afirmam que só um conhecimento completo de Pio 12 pode solucionar a polêmica. Os dados conhecidos - cartas, discursos, fatos - tornam muito difícil pensar que Pio 12 fosse um santo. Mas parece claro que também não foi um cúmplice de Hitler. A imensa zona cinzenta intermediária mostra diversos matizes.

Depois da guerra, Pacelli contribuiu para a reconstrução da Europa e foi um furioso anticomunista contra a perseguição do catolicismo nos países da Cortina de Ferro. Antes da guerra manteve posições ultraconservadoras. Elogiou a vitória de Franco na Espanha, foi acrítico com o regime de Mussolini e mostrou uma atitude tolerante diante da ascensão de Hitler. Durante a guerra e o genocídio, seus silêncios e sua neutralidade, equidistante do nazismo, parecem menos explicáveis.

Pacelli nasceu em uma família romana aristocrata e muito religiosa. Estudou filosofia e teologia e foi ordenado sacerdote em 1899. Sua carreira no Vaticano foi meteórica: especializou-se em direito canônico, ocupou subsecretarias e secretarias, foi arcebispo da Capela Sistina, em 1920 foi nomeado núncio na Alemanha, onde ajudou a assinar a paz da Primeira Guerra Mundial, e em Munique conheceu a freira Pascalina Lehnert, sua assistente e confidente durante 41 anos.

Foi nomeado cardeal por Pio 11 em 1929 e depois acendeu a secretário de Estado. Em 1933 redigiu a concordata com a Alemanha de Hitler. Nos seis anos sucessivos protestou 55 vezes contra violações do Reichskonkordat e redigiu a encíclica "Mit Brennender sorge" (Com ansiedade ardente, 1937). O texto, que condenava o paganismo do nacional-socialismo, foi distribuída nas igrejas alemãs por um exército de motoristas no Domingo de Ramos. As represálias de Hitler, com julgamentos sumários de padres acusados de homossexualidade, contribuíram para que desde esse momento Pio 12 agisse com grande cautela.

Pacelli havia dito em 1937 que Hitler era um "esquilo imprevisível e uma má pessoa". Mas em 1938 convenceu Pio 11 a não condenar a Noite dos Cristais (a terrível Kristallnacht), em que foram assassinados dezenas de judeus e atacadas milhares de suas lojas. E confirmou suas supostas inclinações antissemitas quando a Hungria se preparava para aprovar as leis raciais. O cardeal lembrou que Cristo "selou os lábios dos judeus e estes rejeitam seu coração ainda hoje".

Sua experiência diplomática na Alemanha foi crucial para que fosse eleito papa, depois de um único dia de conclave em 2 de março de 1939, dia de seu 63º aniversário. Foi o primeiro secretário de Estado que chegou a papa desde Clemente 9º, em 1667.

Como teólogo foi renovador, atento à liturgia e à mística, mas também às ciências e à tecnologia incipiente. Assinou 41 encíclicas, nas quais se ocupou de quase tudo: animou a entender a tradição judia, defendeu a morte digna, as curas terminais e os direitos dos pacientes, tolerou o planejamento familiar baseado no ciclo menstrual, avalizou em parte a teoria da evolução e foi um fervente seguidor da Virgem Maria.

Politicamente, seu papado não foi menos conciliador. Dividido contra o nazismo e o comunismo, houve luzes e sombras contínuas. Em "Os Anos do Extermínio", o segundo volume de "O Terceiro Reich e os Judeus", que a editora Galaxia Gutemberg acaba de lançar, o historiador Saul Friedländer analisou a fundo a atitude do papa Pacelli diante do genocídio.

O livro, que ganhou o Prêmio Pulitzer em 2008, lembra que assim que foi eleito papa Pio 12 mostrou "uma posição ultraconservadora e um desejo inconfundível de aplacar a Alemanha", e deu sinais de seu agudo anticomunismo. Em meados de abril de 1939, em um programa de rádio, felicitou-se pelo fato de a população espanhola ter alcançado finalmente a paz e a vitória - de Franco, é claro -, acrescentando que a Espanha "mais uma vez tinha dado aos profetas do ateísmo materialista uma nobre prova de sua indestrutível fé católica".

"Contemplando toda a gama de crimes nazistas, a política do papa durante a primeira fase da guerra poderia ser definida como um exercício de conciliação seletiva", escreve Friedländer. Pacelli manteve Cesare Orsenigo, pró-nazista e antissemita, como núncio em Berlim, e anulou a excomunhão do movimento monárquico e antijudeu Ação Francesa.

A ambiguidade e a prudência, atributos muito romanos, marcaram sua atuação. Declarações genéricas contra o antissemitismo, ele fez várias. Mas quase sempre que lhe pediam uma condenação concreta da perseguição judia, olhava para o outro lado. "Em suas cartas de dezembro de 1940 ao cardeal Bertram, de Breslau, e ao bispo Preysing, de Berlim, Pio 12 expressou sua comoção pelo assassinato dos doentes mentais. Em ambos os casos, e além disso, entretanto, nada disse sobre a perseguição aos judeus", lembra Friedländer.

Seu lema parecia ser contentar a todos. Quando o marechal Pétain lhe perguntou se condenava as leis antissemitas, disse que a Igreja condenava o antissemitismo, mas não normas específicas. Nesse mesmo ano o Vaticano afirmou que os estatutos judeus de Vichy não contradiziam os ensinamentos da Igreja. Meses depois protestou contra as deportações de judeus franceses.

O livro de Friedländer conta que desde o início de 1942 as notícias do extermínio chegavam sem destituir o Vaticano pelas fontes mais diversas. Em 26 de setembro de 1942, escreve Friedländer, o embaixador americano, Myron C. Taylor, entregou uma nota ao secretário de Estado contando que os nazistas atiravam os judeus do gueto de Varsóvia para executá-los em massa em campos de concentração.

Pouco depois, o embaixador britânico no Vaticano, Francis d'Arcy Osborne, escreveu ao secretário de Estado que, "em vez de pensar unicamente no bombardeio de Roma, o Vaticano deveria considerar seus deveres com relação ao crime sem precedentes contra a humanidade que representa a campanha de extermínio dos judeus por parte de Hitler", lembra Friedländer. A resposta do Vaticano foi brutal: "O papa não pode condenar atrocidades particulares".

Em sua mensagem de Natal de 1942, Pacelli deixou uma frase que constitui o apogeu da polêmica, ao mencionar, bem no final, as "centenas de milhares de pessoas que, sem nenhuma culpa, às vezes só por sua nacionalidade ou sua raça, foram levadas à morte ou uma lenta extinção". O discurso denunciou o genocídio, mas não explicou a que genocídio se referia.

Em 30 de abril de 1943, Pio 12 escreveu a um bispo que lhe pediu ajuda que a "contenção" nas declarações ajudava "ad maiora mala vitanda" (a evitar males maiores). Pouco depois, 477 judeus foram escondidos no Vaticano e outros 4.238 se refugiaram em mosteiros e conventos; 80% dos judeus romanos se salvaram da deportação. Pesquisas recentes revelam que Pio 12 não ordenou diretamente o salvamento. A fundação Pave the Way responde que o fez de forma anônima por respeito à tradição judia.

Quando ele morreu, em outubro de 1958, o funeral causou a mais ampla concentração vista em Roma até a data. Seus conterrâneos o choraram como um herói em tempo de guerra. Agora Ratzinger decidiu levá-lo aos altares com seu espelho, Karol Wojtyla. Os judeus querem que antes sejam abertos os arquivos e explicados seus "silêncios demasiado grandes". "Não esquecemos as deportações dos judeus, e em particular do trem que em 16 de outubro de 1943 levou 1.021 deportados para Auschwitz da estação Tiburtina de Roma, diante do mutismo de Pio 12", disseram os rabinos.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

[El Pais, 03/01/2010]

A ecologia de Marx

Antes mesmo da concepção de sustentabiliade e das preocupações ambientais modernas, Marx já escrevia sobre a necessidade de cuidados com a natureza. Para ele, o homem é parte integrante dela. Entretanto esses conceitos dividem opiniões até hoje.

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