Freud, em permanente ebulição

José Andrés Rojo, em Madri
Desde 1º de janeiro, as obras de Sigmund Freud, o pai da psicanálise, ficaram livres de direitos autorais no mundo inteiro. Exceto na Espanha, onde devido a uma disposição transitória da lei de propriedade intelectual continuam vigentes até 2019. Na França a notícia mobilizou as editoras, e ao longo do ano serão traduzidos por diversos selos vários textos do fundador da psicanálise. Tal rapidez de reflexos indica que Freud continua conquistando leitores e que sua obra mantém seu virulento poder de agitar o debate intelectual?Sigmund Freud (1856-1939) veio questionar que o sujeito governasse sua vida com total autonomia, como se acreditava até então. Em condições normais, contou em "O Mal-estar da Cultura", o ego "se apresenta como algo independente, unitário, bem demarcado diante de todo o resto". Mas, acrescentou, esse ego se prolonga "para dentro, sem limites precisos, com uma entidade psíquica inconsciente que denominamos id, ao qual vem a servir de fachada". Por isso não sabemos grande coisa do que ocorre por essas zonas interiores, explicou, onde operam muitos desejos sexuais reprimidos.
Médico de formação, Freud investigou esses territórios obscuros para encontrar a maneira de curar determinados transtornos psicológicos. Daí surgiu uma nova escola, e sua correspondente terapia, a psicanálise. Mas o que fez principalmente esse brilhante senhor vienense foi mudar nossa maneira de entendermos a nós mesmos e ao mundo.
"Pode-se acreditar ou não na psicanálise, como se pode ser ou não marxista, entretanto as contribuições de Freud são indiscutíveis", comenta Antonio Valdecantos, um filósofo que ensina na Universidade Carlos 3º de Madri e que publicou há pouco tempo "La fábrica del bien" (ed. Síntesis). "Todo mundo sabe hoje que o ego não é transparente, nem está sempre disponível. Ninguém discute que haja zonas obscuras e que por mais liberdade que se possa ter nossa sexualidade continuará sendo opaca."
Carlos Gómez Sánchez, autor de "Freud y su obra: Génesis y constitución de la teoría psicoanalítica" (ed. Biblioteca Nueva), entende que o médico vienense soube vincular de maneira muito frutífera a sexualidade com a cultura, o desejo com a norma. Por isso considera que sua influência pode ser localizada em boa parte das referências intelectuais do século 20, começando pela fenomenologia e passando por Sartre, Fromm ou Bloch até chegar a Deleuze. "Há duas questões que me preocupam a propósito de seu legado", explica. "Em primeiro lugar, que não sejam levadas a sério suas contribuições e que sua obra se banalize e vulgarize. Ou, pelo contrário, que se entendam suas teorias como uma nova pedra filosofal, com o que a psicanálise poderá se transformar em uma péssima metafísica. Freud não é nenhum molho que sirva para enfeitar todos os pratos."
Em geral não há discussão: Freud é um clássico, faz parte do patrimônio intelectual de nosso tempo, dinamitou a maneira de entender o sujeito enquanto tentou tratou da força da libido.
Fernando Savater, em um artigo sobre o fundador da psicanálise, lembrou-se da definição que Chesterton deu em sua biografia de Dickens do que é um clássico: "Um rei do qual já se pode desertar, mas que não há modo de destronar". A citação veio a calhar, porque se alguém teve discípulos dispostos a questioná-lo foi Freud. Mas ninguém foi tão longe quanto ele na hora de mostrar o fundamental. É "invulnerável", escreveu Savater, apesar de ter sido muitas vezes traído. E anotou que a mais escandalosa dessas tradições foi a estilística. "É interessante, é detalhista, é pedagógico", dizia sobre Freud, "não renuncia às imagens nem as confunde com as explicações, pertence à cultura da sinceridade."
Continuam, portanto, vivos seus conceitos e sua lucidez na hora de diagnosticar nossas complicações. E sua terapia? Francisco Granados, que é analista há mais de 30 anos e dirige a revista da Associação Psicanalítica de Madri, responde no intervalo entre duas sessões. "O que podemos oferecer a quem nos consulta é a maneira de encontrar suas pulsões, seus medos, sua sexualidade, seus problemas na relação com os outros... mas a cura é algo que fica no ar: está em suas mãos seguir ou não o caminho proposto." Voltando a Freud, Granados insiste em um detalhe que nem sempre é valorizado em sua obra: que não há psicanálise se não for social. "Sem o outro não somos nada", afirma.
O escritor Andrés Barba, que ganhou com Javier Montes o Prêmio Anagrama de Ensaio com o livro "La ceremonia del porno", observa que, por mais permissiva que possa ser a sociedade atual na hora de difundir imagens sexuais, "a pornografia não resolve nada de nossa relação com os outros". "É um canal que nos permite o acesso a uma informação ilimitada sobre as práticas menos ortodoxas", diz, "mas não vai além."
Freud nos permitiu "ser conscientes de que existe uma série de processos que ocorrem de maneira soterrada, inconsciente, mas tanta consciência não consertou grande coisa". Abriu, isso sim, imensos caminhos para a literatura ao "transformar a nós mesmos em objeto de observação". Esse interesse continua aí. Será por isso que, como afirma Antonio Valdecantos, Freud continua sendo lido. E certamente será ainda mais, agora que em quase todo lugar sua obra ficou livre de direitos autorais.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
[El Pais, 30/01/2010]
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