Fortuna e imprevidência

Crença cega na sorte permanece um dos traços marcantes do caráter brasileiro

Por Jean Marcel Carvalho França
Portugueses e brasileiros têm uma lastimável inclinação a crer cegamente no fado, na fortuna, e a depositar pouquíssimas esperanças na planificação. O fatalista de lá, no entanto, carrega consigo a incômoda percepção de que a fortuna vai quase sempre colocá-lo em situações difíceis, diante das quais nada há a fazer a não ser se conformar. O daqui, ao contrário, tem a firme convicção de que a boa fortuna se enamorou dele, de que “Deus é brasileiro”, e de que, com a sorte que temos e que sempre tivemos, tudo se arranjará para melhor, sem necessidade de muito previdência ou de muito esforço. [clique aqui para ler]

Morte aos Impostos! Viva o Rei!

Contra as pesadas taxações o Brasil colônia foi sacudido por contestações. As revoltas, curiosamente, apelavam ao Rei, que deveria proteger das injustiças seus súditos distantes. [clique aqui para ler]
Luciano Figueiredo

A bolsa ou a vida

Clóvis Rossi
A Bolsa de Valores zerou este ano, até agora, as perdas sofridas a partir de outubro, auge da crise. O emprego nem remotamente. O rendimento dos salários tampouco: além de continuar medíocre como é há séculos, ainda retrocedeu algo mais.
Não obstante, há festa no arraial. Sinal de que estamos de volta ao espírito pré-crise: o que importa é a felicidade do capital. A vida, bom, a vida a gente toca como Deus manda, como diria o caboclo no seu conformismo também secular, afogado nas águas ou torrando ao sol das secas impenitentes.
Não é só no Brasil. Na Espanha, por exemplo, a Bolsa, este ano, está em território positivo. Mas, no ano até abril, o número de postos de trabalho decepados bateu em 1,1 milhão, à base portanto de 100 mil por mês, arredondando.
Não obstante, a ministra da Economia, Elena Salgado, vê uma luz no fim do túnel e é capaz de jurar que não se trata de trem vindo em sentido contrário, frase que já deveria ter caído em desuso.
Com isso, a gritaria a respeito da falência do capitalismo selvagem, a pregação quase missionária em favor de uma nova arquitetura financeira global capaz de mitigar os efeitos perversos da jogatina -está indo tudo para o saco.
Tanto que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva chama de "trambique" as apostas em derivativos, que afundaram a Sadia. Mas o BNDES, banco público, põe dinheiro para ajudar na compra da empresa supostamente "trambiqueira" pela Perdigão, compra tratada com o codinome de fusão.
Se é trambique, como diz Lula, deveria ser regulado pelo governo, e não incentivado via BNDES, não?
Menos mal que pelo menos Barack Obama já soltou seu plano para regular justamente os tramb... ops, derivativos. Sei não, mas desse jeito os EUA correm o risco de saírem mais sólidos que outros da crise que criaram.

[Folha de São Paulo, 24/05/2009]

Valsa desafinada

"Salvadores e Sobreviventes" acusa as agências humanitárias de tentar impor uma agenda de recolonização na África

WILLIAM J. DOBSON
Desde que a violência eclodiu em Darfur, no oeste do Sudão, seis anos atrás, 300 mil pessoas já morreram e mais de 2,5 milhões foram forçadas a abandonar suas casas. Essa destruição já foi atribuída ao presidente do Sudão, Omar al Bashir; aos grupos rebeldes que em 2003 lançaram uma insurgência contra Cartum (capital do Sudão); às milícias Janjaweed, que têm o apoio do governo; às Nações Unidas e à União Africana, que demoraram em agir, e à comunidade internacional, que não intervém.
Agora, de acordo com Mahmood Mamdani (em "Saviors and Survivors", Salvadores e Sobreviventes, ed. Verso, 528 págs., 17,99, R$ 58), devemos acrescentar mais um grupo a essa lista: humanitários que lideram a campanha para pôr fim à violência.
Mamdani é professor de ciência política e antropologia na Universidade Columbia. Em "Salvadores e Sobreviventes", ele toma como alvo a organização Save Darfur e outros grupos ocidentais de defesa semelhantes, pelo papel que exercem no Sudão.

Distorção
A Save Darfur é atualmente o maior grupo de defesa de base sediado nos EUA e focado em Darfur. Fundada em 2004, é uma coalizão de mais de 180 grupos religiosos, políticos e de defesa dos direitos humanos.
"Os ativistas da Save Darfur empregam técnicas de política de protesto contra seu próprio governo e ignoram os especialistas que afirmam que eles apenas complicam a história com tantos detalhes que acabam deixando passar em branco a questão principal", diz. Mas acusa o movimento de algo pior do que simplesmente pregar sermões moralizadores vazios. A Save Darfur, argumenta Mamdani, é a mais nova potência colonial num longo histórico de abusos coloniais.
Seu chamado por justiça no Sudão "é, na realidade, um slogan que mascara uma agenda de recolonização da África".
Mamdani tem razão em destacar que o colonialismo britânico agravou as divisões étnicas e raciais. Mas ele permite que o ultraje que sente diante dos crimes coloniais eclipse as atrocidades recentes do regime atual. A raiz do argumento de Mamdani é o desconforto profundo que ele sente com as mudanças recentes nos assuntos internacionais, que, diz ele, erodiram os direitos soberanos de um Estado em favor das normas humanitárias.
Desde que a Guerra Fria chegou ao fim, há um consenso internacional crescente de que um governo não pode usar sua soberania como escudo enquanto comete atrocidades contra sua própria população.
Mas, na visão de Mamdani, essa nova ordem humanitária encerra seus próprios perigos. Ele argumenta que as populações são reduzidas a tutelados da comunidade internacional, em lugar de cidadãos com seus direitos próprios.

Entender o contexto
Mamdani vê o humanitarismo como nada mais que a desculpa mais nova para a intervenção injusta de Estados poderosos nos assuntos dos menos poderosos. Para ele, o colonialismo britânico é mais responsável que Cartum pelas mortes em massa que ocorrem em Darfur hoje. É fato que o colonialismo exerceu efeito pernicioso no Sudão.
Mas é um acinte ao bom senso -e à opinião de especialistas- argumentar que a administração colonial de mais de 50 anos atrás seria mais culpada pelo que aconteceu em Darfur do que um regime governista que armou os agressores.
Mesmo assim, a Save Darfur e grupos semelhantes farão bem em não ignorar este livro. Os grupos ocidentais de ajuda e defesa de causas, embora em alguns casos tenham sido eficientes em mobilizar a opinião pública em seus países de origem, em muitos casos têm demorado mais a compreender os ambientes pós-coloniais.
Se quiserem acalmar os temores daqueles que procuram ajudar, precisam fazer mais para explicar às populações locais o "contexto" de seus próprios objetivos e metas. Se não o fizerem, seu trabalho se tornará vítima da "atitude de desdém" daqueles que se propõem a escrever livros como este.

A íntegra deste texto saiu no "Financial Times". Tradução de Clara Allain.


[Folha de São Paulo, 24/05/2009]

Malandros Utópicos

Entre a idealização do estrangeiro e a glorificação do modo de vida nacional, brasileiro circula entre a esperança de mudança e a realidade das mazelas políticas e sociais
Renato Mezan
A "aurora da vida", evocada num poema famoso de Casimiro de Abreu, esteve em evidência nos últimos dias, porém deslocada para um pouquinho mais tarde: três notícias se referiam a crianças de nove anos, e, embora ligadas a assuntos bem diversos, todas provocaram alguma celeuma. A primeira foi a declaração do jogador Ronaldo sobre os motivos pelos quais prefere que seu filho cresça em Madri: "Vejo aqui crianças da idade dele com um palavreado adolescente, palavrões até. [Meu filho de nove anos] é uma criança doce, educada, praticamente um europeu. (...) Prefiro que tenha amiguinhos europeus, sem a malandragem dos amiguinhos brasileiros."
"O nível mental das pessoas que assistem à TV no Brasil é por volta dos nove anos", julga o ator e dramaturgo Miguel Falabella. "Um jovem francês lê 200 vezes mais que um brasileiro. Tem piadas e diálogos que as pessoas não entendem, porque não têm a informação." O terceiro fato foi a escolha de um livro em quadrinhos para os alunos da terceira série do ensino fundamental (oito a nove anos) da rede pública paulista, criticada porque algumas histórias contêm palavrões e alusões de natureza sexual.

Fato e opiniões
Por sua vez, vendo nela só moralismo e hipocrisia quanto à realidade vivida pelas crianças dessa idade, alguns reprovaram a retirada do título da lista fornecida aos estudantes... Que pensar de tal coincidência? Em primeiro lugar, que se trata disso mesmo -uma coincidência, ou seja, algo fortuito, que poderia não ter ocorrido dessa forma.
Se a falha quanto ao livro tivesse sido descoberta uma semana antes ou se Falabella tivesse situado o nível intelectual dos telespectadores na faixa dos seis ou dos 11 anos, não se veria vínculo nenhum entre as três coisas.
Além disso, a última é um fato, enquanto as duas primeiras são opiniões; fato, aliás, com o qual a Secretaria de Educação de São Paulo lidou de modo adequado, reconhecendo o erro e tomando as providências que se esperariam.
Realmente, a obra não é apropriada para crianças. O autor de uma das histórias, Caco Galhardo [quadrinista da Folha], explicou que pretendia apenas "tirar sarro" de uma mesa-redonda de futebol.
"Quem a selecionou não leu o livro", declarou. É difícil não concordar com o cartunista, mas nem por isso se vão proibir os quadrinhos para adultos ou condenar as editoras que os publicam. O que ocorreu foi negligência por parte de um funcionário do terceiro escalão, rapidamente reparada por seus superiores. Ponto final. A frase de Miguel Falabella se coloca em outro contexto: a péssima educação oferecida pelo Estado aos pequenos brasileiros, cuja consequência óbvia é o baixo nível intelectual da nossa população.
De fato, os jovens europeus leem mais que os do Brasil -embora lá também se ouçam queixas de que a escola pública vem piorando ano a ano. O padrão abominável da televisão nacional tampouco contribui para minorar o problema, mas isso não se deve a um vício de natureza do meio: depende dos responsáveis pela programação escolherem bons roteiros e os produzirem com critério.
Prova de que pode existir vida inteligente na televisão (e não só nos canais ditos culturais) é a qualidade dos diálogos da série "House" assim como o desempenho dos atores e a excelência da pesquisa técnica que subsidia cada episódio -e se poderiam citar outros (raros) exemplos.

"Doce" e "educado"
Restam os comentários de Ronaldo. A idealização que equipara "europeu" a "doce" e "educado" terá algum fundamento?
Talvez o tenha na experiência do jogador: não conheço o suficiente da sua biografia para avaliar isso, mas posso imaginar que no Velho Mundo o filho de um atleta pago a peso de ouro circulasse num ambiente bem menos perigoso e violento do que aquele que cercava seu pai na zona norte do Rio.
Os brasileiros costumamos nos deslumbrar com algumas características da vida na Europa que contrastam agudamente com nosso cotidiano: civilidade, limpeza das ruas, eficiência nos serviços públicos, organização em geral. Na mesma entrevista, Ronaldo se refere ao mundo do futebol e cita aspectos em que os europeus nos superam. Sem masoquismos desnecessários, não vejo mal em reconhecer que determinadas condições são melhores lá do que aqui, mas também é verdade que "doce" e "educado" nem sempre rimam com "europeu".
Ou alguém ignora que o velho continente foi palco de inúmeras guerras, perseguições religiosas e políticas, discriminações, fogueiras, torturas e crueldades? E os conquistadores que de lá partiram se mostraram tudo, menos doces para com os índios, africanos e asiáticos com os quais as navegações (e depois o colonialismo) os puseram em contato. Isso dito, convém evitar a idealização inversa, que conduziria a glorificar a brasilidade e fechar os olhos para as mazelas do nosso país.
Outro tema em foco nas últimas semanas o comprova: a reação oposta diante dos desmandos dos políticos no Brasil e na Inglaterra.
Enquanto o presidente da Câmara dos Comuns, Michael Martin, se viu forçado a renunciar devido às pilantragens dos seus colegas, temers e sarneys agem de modo a convalidar o que disse o deputado Sergio Moraes (PTB-RS), cuja frase imortal ("estou pouco me lixando para a opinião pública") deveria adornar o estandarte do Congresso, do mesmo modo que "ordem e progresso" figura na bandeira nacional.

Truculência
E não é apenas Sua Excrescência que assim pensa. O Estado brasileiro tem uma tradição de truculência e malandragem na relação com os governados.
Com demasiada frequência, seus funcionários consideram natural que o dinheiro dos impostos financie privilégios indecentes para eles, para suas famílias e para seus apadrinhados; a cultura do "todos fazem" e do "deixa disso" impregna muitos setores da sociedade civil, inclusive o das concessionárias de serviços públicos e das empresas em geral.
É o que sabem todos quantos já tentaram falar com os SACs (serviços de afronta ao consumidor), hipocritamente colocados atrás de muralhas telefônicas cujo objetivo evidente é fazer com que o reclamante desista da sua pretensão. A conclusão é que as afirmações de Ronaldo e Falabella, embora generalizadoras demais, contêm algo de verdadeiro -e quem sabe por isso incomodaram tanto. Não é preciso endossá-las por completo; se servirem como alerta, terão contribuído para nos tornar mais veementes na defesa dos nossos direitos.
Afinal, às vezes as aves que lá gorjeiam são mesmo mais afinadas que as de cá.

RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica de SP. Escreve na seção "Autores", do Mais!.


[Folha de São Paulo, 24/05/2009]

Os europeus que ajudaram Hitler no Holocausto

Georg Bönisch, Jan Friedmann, Cordula Meyer, Michael Sontheimer, Klaus Wiegrefe

Os alemães são responsáveis pelo assassinato em escala industrial de 6 milhões de judeus. Mas, surpreendentemente, o conluio de outros países europeus no Holocausto recebeu pouca atenção até há pouco tempo. O julgamento de John Demjanjuk deverá projetar luz sobre os estrangeiros que ajudaram Hitler.
Ele já esteve na Alemanha antes, neste país de criminosos. Tinha 25 anos na época e seu nome de batismo era Ivan, e não John — ainda não.
Ivan Demjanjuk serviu como guarda no campo de concentração de Flossenburg até pouco depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Ele foi transferido para lá do campo da morte das SS em Sobibor, na atual Polônia. Era ucraniano, e um "travniki", um dos 5.000 homens que ajudaram o regime nazista da Alemanha a cometer o crime do milênio - o assassinato de todos os judeus da Europa, a "solução final".
Ele fez parte do esquema, embora fosse uma peça muito pequena no vasto maquinário do crime. Ivan Demjanjuk ficou na Alemanha do pós-guerra durante sete anos antes de emigrar para os EUA em 1952 com sua mulher e filha a bordo do General Haan. Quando chegou lá, trocou o nome para John. Estava terminado seu tempo como suposto DP, ou "displaced person" (pessoa deslocada), como os vencedores anglo-americanos chamavam as pessoas que ficaram sem teto na guerra.
O DP Demjanjuk tinha vivido nas cidades de Landshut e Regensburg, no sul da Alemanha, onde trabalhou para o exército americano. Mudou-se para Ulm, Ellwangen, Bad Reichenhall e finalmente para Feldafing, junto ao lago Starnberg. Feldafing pertence à área coberta pelo tribunal distrital de Munique, e por isso Demjanjuk está detido na prisão de Stadelheim, em Munique, desde que foi deportado dos EUA, na semana passada. Sua cela mede 24 metros quadrados - extraordinariamente espaçosa para os padrões habituais de prisões.

Último grande julgamento nazista na Alemanha
Ele enfrenta acusações de ajudar e apoiar o assassinato de pelo menos 29 mil judeus em Sobibor. O julgamento poderá começar no final do verão, desde que Demjanjuk, hoje com 90 anos, seja considerado capaz de suportá-lo. Testemunhas serão chamadas a depor, mas nenhuma delas poderá identificá-lo. A única evidência está nos arquivos, mas é forte. Por duas vezes, em 1949 e 1979, o ex-travniki Ignat Danilchenko, hoje morto, afirmou que Demjanjuk foi um "guarda experiente e eficiente" que levou judeus para as câmaras de gás — "que era um trabalho cotidiano".
Demjanjuk negou a acusação totalmente. Ele diz que nunca esteve em Flossenburg ou em Sobibor, e nunca empurrou pessoas para as câmaras de gás. O ex-americano adotou a mesma tática de negação de muitos outros réus julgados por crimes de guerra desde 1945.
Mas já está claro que este último grande julgamento nazista na Alemanha será profundamente extraordinário, porque pela primeira vez colocará réus estrangeiros sob os refletores da mídia mundial.
São homens que até agora receberam, surpreendentemente, muito pouca atenção - policiais ucranianos e a polícia auxiliar da Letônia, soldados romenos ou trabalhadores ferroviários húngaros, agricultores poloneses, tabeliães holandeses, prefeitos franceses, ministros noruegueses, soldados italianos - todos participaram do Holocausto na Alemanha.
Especialistas como Dieter Pohl, do Instituto Alemão de História Contemporânea, estimam que mais de 200 mil não-alemães - quase o mesmo número de alemães e austríacos - "prepararam, praticaram e ajudaram em atos de assassinato". E com frequência eles foram tão impiedosos quanto os carrascos de Hitler.
Só para dar um exemplo, em 27 de junho de 1941, um coronel da equipe do Grupo do Exército Norte da Alemanha na cidade lituana de Kaunas passou por um posto de gasolina cercado por uma multidão. Ouviu gritos de bravo e aplausos, mães erguiam seus filhos para que enxergassem melhor. O oficial se aproximou e mais tarde descreveu o que havia visto. "No pátio de concreto havia um homem louro de cerca de 25 anos, de altura mediana, que estava descansando apoiado em um bastão de madeira grosso como seu braço e que chegava até seu peito. A seus pés havia 15 ou 20 pessoas mortas ou agonizantes. Uma mangueira jorrava água, levando o sangue para um ralo".
O soldado continuou: "Alguns passos atrás desse homem estavam cerca de 20 homens que - guardados por vários civis armados - esperavam sua terrível execução em silenciosa submissão. Chamado com um gesto rude, o próximo se adiantou em silêncio e foi (...) espancado até a morte com o bastão de madeira, e cada golpe era acompanhado de gritos entusiasmados da plateia".

Orgia de assassinatos como cerimônia nacional
Quando todos estavam mortos no chão, o assassino louro subiu no monte de cadáveres e tocou acordeão. Sua plateia cantou o hino lituano como se a orgia de assassinatos fosse uma cerimônia nacional.
Como semelhante coisa pôde acontecer? Há muito tempo essa pergunta não é dirigida somente aos alemães - cuja responsabilidade principal pelo horror é indiscutível -, mas também aos perpetradores de todos os países.
O que levou o ditador romeno Ion Antonescu e seus generais, soldados, funcionários públicos e agricultores a assassinar 200 mil judeus (e talvez até o dobro disso) "por sua própria decisão", como diz o historiador Armin Heinen? Por que os esquadrões da morte no Báltico cometeram assassinatos sob ordens de alemães na Letônia, Lituânia, Belarus e Ucrânia? E por que os Einsatzgruppen alemães - "grupos de intervenção" paramilitares operados pelas SS - tiveram tal facilidade para incentivar a população não-judia a cometer massacres entre Varsóvia e Minsk?
É totalmente indiscutível que o Holocausto nunca teria acontecido sem Hitler, o chefe das SS, Heinrich Himmler, e muitos, muitos outros alemães. Mas também é verdade "que os alemães por si sós não teriam conseguido efetuar o assassinato de milhões de judeus europeus", diz o historiador Michael Wild, estabelecido em Hamburgo.
É uma ideia da qual muitos sobreviventes nunca duvidaram. Quando a Associação de Sobreviventes Judeus Lituanos se reuniu em Munique em 1947, aprovou uma resolução com um título inconfundível: "Sobre a culpa de grande parte da população lituana pelo assassinato dos judeus lituanos".
No Terceiro Reich, com sua burocracia azeitada, havia registros abrangentes da população judia. Mas nos territórios conquistados pelo exército alemão os asseclas de Hitler precisavam de informação, como a que foi fornecida na Holanda pelos tabeliães, cujos funcionários tiveram muito trabalho para compilar um "Registro de Judeus" preciso.
E como as SS e a polícia poderiam rastrear judeus nas cidades do Leste Europeu, com sua ampla mistura de grupos étnicos, sem o apoio da população local? Poucos alemães seriam capazes de "reconhecer um judeu em uma multidão", lembra Thomas Blatt, um sobrevivente de Sobibor que pretende depor no julgamento de Demjanjuk.
Na época, Blatt era um menino louro e tentou se passar por cristão em sua casa na cidade de Izbica, na Polônia. Ele não usava a estrela amarela e tentava parecer confiante quando encontrava a polícia uniformizada. Mas foi traído várias vezes - os alemães pagavam por informações sobre a localização de judeus - e sempre escapou, com muita sorte.

Denúncias eram comuns
As denúncias eram tão comuns na Polônia que havia um termo especial para os informantes pagos - "Szmalcowniki", que antes designava uma cerca. Em muitos casos os delatores conheciam suas vítimas. E enquanto os franceses, holandeses ou belgas podiam se entregar à ilusão de que tudo acabaria bem para os judeus deportados de Paris, Roterdã ou Bruxelas para o leste, as populações do Leste Europeu sabiam o que aguardava os judeus em Auschwitz ou Treblinka.
É claro que se podem encontrar muitos exemplos inversos. Um alto oficial do Einsatzgruppe C, responsável pelo assassinato de mais de 100 mil pessoas, queixou-se de que os ucranianos não tinham "um antissemitismo acentuado, com base em motivos raciais ou ideológicos". O oficial escreveu que "há uma falta de liderança e de ímpeto espiritual para a perseguição dos judeus".
O historiador Feliks Tych estima que cerca de 125 mil poloneses salvaram judeus sem receber dinheiro por seus serviços. É claro que os criminosos sempre constituíram uma pequena porcentagem de suas respectivas populações. Mas os alemães contavam com essa minoria. As SS, a polícia e o exército não tinham efetivos suficientes para vasculhar as amplas áreas onde a liderança nazista pretendia matar todas as pessoas de origem judaica.
Nos 4.000 quilômetros que vão da Bretanha, no oeste da França, ao Cáucaso, os nazistas estavam ocupados em caçar suas vítimas, deportá-las para campos de extermínio ou locais de assassinato próximos, evitar fugas, cavar valas comuns e realizar seu sangrento trabalho.
É claro que somente Hitler e seu círculo ou o exército poderiam ter detido o Holocausto. Mas isto não invalida o argumento de que sem a ajuda de estrangeiros, milhares ou mesmo milhões dos cerca de 6 milhões de judeus assassinados poderiam ter sobrevivido.
Nos campos da morte do Leste Europeu havia até dez ajudantes locais para cada policial alemão. A proporção é semelhante nos campos de extermínio. Não em Auschwitz, que era conduzido quase inteiramente por alemães, mas em Belzec (600 mil mortos), Treblinka (900 mil mortos) ou no Sobibor de Demjanjuk. Lá, um punhado de membros das SS era auxiliado por cerca de 120 "travniki".
Sem eles, os alemães nunca teriam conseguido matar 250 mil judeus em Sobibor, diz o ex-prisioneiro Blatt. Eram os travniki que guardavam o campo, conduziam todos os judeus dos vagões de trem e caminhões quando chegavam ao campo e os agrediam para que entrassem nas câmaras de gás.

O Holocausto foi um projeto europeu?
Um número tão absurdo de vítimas levanta perguntas perturbadoras, e o historiador de Berlim Götz Aly já começou a fazer algumas anos atrás: a chamada "solução final" seria na verdade um "projeto europeu que não pode ser explicado somente pelas circunstâncias específicas da história alemã"?
Ainda não há um veredicto final sobre as dimensões europeias do Holocausto. Os franceses e italianos começaram tarde - quando a maioria dos criminosos já estava morta - a tratar de forma abrangente essa parte de sua história. Outros, como os ucranianos e lituanos, ainda se arrastam; ou, em alguns casos, apenas começaram, como na Romênia, na Hungria e na Polônia.
Desde 1945 os países invadidos e arrasados pelos exércitos de Hitler se consideraram vítimas - o que sem dúvida foram, com seu enorme número de mortos. Isso torna ainda mais doloroso admitir que muitos compatriotas ajudaram os criminosos alemães.
Na Letônia, a ajuda local foi maior que em qualquer outro lugar. Segundo o historiador americano Raul Hilberg, os letões tiveram a maior proporção de ajudantes nazistas. Os dinamarqueses estão na outra ponta da escala. Quando a deportação dos judeus da Dinamarca estava prestes a começar, em 1943, grande parte da população ajudou os judeus a escapar para a Suécia ou os escondeu. Cerca de 98% dos 7.500 judeus da Dinamarca sobreviveram à Segunda Guerra Mundial. Em comparação, apenas 9% dos judeus holandeses sobreviveram.
O Holocausto representa o ponto baixo não apenas da história alemã, mas também da europeia, como afirma o historiador Aly?
Há evidências que contestam a noção amplamente aceita de que os criminosos estrangeiros foram obrigados a ajudar os alemães a cometer os assassinatos. É verdade que os ajudantes locais arriscavam a vida quando se recusavam a ajudar os ocupantes alemães. Isso se aplicava às unidades policiais e aos funcionários públicos na Europa Ocidental ocupada, assim como à polícia auxiliar recém-formada no Leste. Mas também é verdade que em muitos lugares as pessoas se ofereciam para servir aos alemães ou participaram de crimes sem ser obrigadas a isso.
Também há a alegação muitas vezes repetida de que os governos de países aliados a Hitler não tinham opção senão entregar os cidadãos judeus aos alemães. Isso também não é verdade. Os países dos Bálcãs, em particular, rapidamente entenderam como a "solução da questão judia" era importante para Hitler e seus diplomatas - e tentaram obter o maior preço possível por sua cumplicidade.
Também há motivos para duvidar da suposição de que os auxiliares eram sádicos patológicos. Se isso fosse verdade, deveria ser fácil identificá-los, por exemplo, no grupo de 50 lituanos que serviram sob o comando do SS Obersturmbannführer (tenente-coronel) Joachim Hamann. Os homens percorriam aldeias até cinco vezes por semana para assassinar judeus, e acabaram matando 60 mil pessoas. Bastava algumas caixas de vodca para animá-los. À noite, a tropa voltava para Kaunas e se gabava de seus crimes no refeitório.
Nenhum dos lituanos havia sido criminoso antes. Eles eram "total e absolutamente normais", acredita o historiador Knut Stang. Em quase toda parte depois da guerra os assassinos retornaram a suas vidas habituais, como se nada tivesse acontecido. Demjanjuk também era um cidadão correto. Em Cleveland, Ohio, onde vivia, era considerado um bom colega e vizinho simpático.
É a mesma coisa com os criminosos alemães. Não há um tipo de assassino identificável - é uma conclusão perturbadora a que chegaram os historiadores. Os assassinos incluíam católicos e protestantes, europeus meridionais de sangue quente e frios bálticos, extremistas de direita obcecados ou burocratas insensíveis, acadêmicos refinados ou caipiras violentos.
Entre eles estava Viktor Arajs (1910-1988), um advogado culto de uma família de agricultores letões que comandou uma unidade de mais de mil homens que percorreu a Europa Oriental assassinando em nome dos nazistas. Ou o romeno Generaru, filho de um general e comandante do gueto de Bersad, na Ucrânia, que mandou amarrar uma de suas vítimas a uma motocicleta e a arrastou até a morte.

Antissemitismo assolava a Europa
E o antissemitismo? Na década de 1930 o antissemitismo cresceu em toda a Europa porque a comoção após a Primeira Guerra Mundial e a crise econômica global haviam abalado as pessoas. No Leste Europeu, a tendência a considerar os judeus como bodes expiatórios e tentar excluí-los do mercado de trabalho era especialmente forte. Na Hungria, os judeus foram banidos de cargos públicos no final dos anos 1930, e proibidos de trabalhar em muitas profissões. A Romênia adotou voluntariamente as Leis de Nuremberg, racistas e antissemitas, da Alemanha nazista. Na Polônia, muitas universidades restringiram o acesso de estudantes judeus.
A extensão do ódio aos judeus também se reflete no fato de que após o fim da guerra, em 1945, turbas na Polônia mataram pelo menos 600, e talvez milhares, de sobreviventes do Holocausto. No entanto, o excesso de nacionalismo parece ter sido o fator mais importante, pelo menos no Leste Europeu. Lá, muitos sonhavam com uma nação-estado livre de minorias. Nesse sentido, os judeus eram simplesmente um dos vários grupos de que as pessoas queriam se livrar. Com o avanço da Segunda Guerra, os croatas não apenas mataram judeus, mas também um número muito maior de sérvios. Os poloneses e lituanos se matavam entre si. A Romênia liquidou ciganos e ucranianos.
É difícil determinar o que motivou as pessoas a matar. Muitas vezes o nacionalismo ou o antissemitismo eram simples desculpas. Durante a guerra, ninguém passava fome na Alemanha, mas as condições de vida no Leste Europeu eram miseráveis. "Para os alemães, 300 judeus significavam 300 inimigos da humanidade. Para os lituanos significavam 300 pares de calças e 300 pares de botas", diz uma testemunha. Era cobiça em nível pessoal. Mas também aparecia em nível coletivo. Na França, 96% das empresas "arianizadas" permaneceram nas mãos de franceses. O governo húngaro usou os bens expropriados dos judeus para ampliar seu sistema de aposentadorias e reduzir a inflação.

Bodes expiatórios para crimes de soviéticos
A vingança imaginária também teve uma participação. Os massacres da população da Polônia contra os judeus em 1941 se basearam na suposição de que os judeus formavam uma espécie de base para o regime soviético, porque os comunistas de origem judia foram por algum tempo muito representativos na burocracia soviética. Em consequência, muitas pessoas culpavam os judeus pelos crimes cometidos durante a ocupação soviética do leste da Polônia entre 1939 e 1941.
A polícia secreta de Stálin, a NKWD, mandou fuzilar ou deportar para os "gulags" os adversários reais e supostos do regime nos países bálticos, no leste da Polônia e na Ucrânia. Com o avanço das tropas alemãs, os soviéticos deixaram para trás uma sociedade profundamente traumatizada entre o Báltico e os Cárpatos - e muitas covas coletivas.
Hitler não tinha decidido todos os detalhes do Holocausto desde o início, supondo que conseguiria expulsar todos os judeus de sua esfera de influência depois de uma rápida vitória contra a União Soviética. Mas o avanço alemão contra a URSS começou a vacilar no outono de 1941, o que levantou o problema do que fazer com as pessoas amontoadas nos guetos, especialmente na Polônia. Muitos Gauleiter, oficiais das SS e altos administradores pediam que seus territórios fosse "judenfrei" ("livre de judeus"), o que significava liquidá-los. A construção dos campos de extermínio começou por Belzec, depois Sobibor, depois Treblinka.

Curso de treinamento rápido em Holocausto
Foi um programa de matança gigantesco, em que a maioria dos judeus da Polônia, 1,75 milhão de pessoas, foram assassinados. Os SS preferiam recrutar seus ajudantes entre os ucranianos ou alemães étnicos nos campos de prisioneiros de guerra, onde soldados do Exército Vermelho como Demjanjuk enfrentavam a opção de matar para os alemães ou morrer de fome.
Mais tarde, números cada vez maiores de voluntários da Ucrânia ocidental e da Galícia [sudeste da Polônia] aderiram à unidade. Os homens tinham de assinar uma declaração de que nunca haviam pertencido a um grupo comunista e não tinham ancestrais judeus.
Depois eram levados para Travniki, no distrito de Lublin no sudeste da Polônia, onde eram treinados na profissão mortífera no local de uma antiga fábrica de açúcar. Em meados de 1943 cerca de 3.700 homens estavam estacionados em Travniki. O treinamento para o Holocausto levava várias semanas. Os homens das SS mostravam aos recrutas como realizar batidas e guardar os prisioneiros, muitas vezes usando sujeitos vivos. Então a unidade ia até uma cidade próxima e espancava moradores judeus e os arrancava de suas casas. Execuções eram realizadas em uma floresta próxima, provavelmente para garantir que os recrutas eram leais.
No início, os travniki foram usados para guardar propriedades e evitar o saque de depósitos de suprimentos. Depois seus amos alemães os enviaram para esvaziar os guetos em Lviv e Lublin, onde foram impiedosos na captura de suas vítimas judias. Finalmente eles foram postos para trabalhar em turnos de oito horas no campo de extermínio. "Todo mundo se colocava onde era necessário", lembrou um oficial das SS. Tudo funcionava "como um relógio".
Historiadores estimam que um terço dos travniki escapou, apesar da punição que sofreriam se fossem apanhados. Alguns foram executados por desobediência. E os outros? Por que não tentaram escapar da máquina mortífera? Por que Demjanjuk não tentou? Ele teria sido corrompido pela sensação de ter "obtido um poder total sobre os outros", como afirma o historiador Pohl? Seria a perspectiva do saque? Em Belzec e Sobibor os travniki se envolveram em um comércio animado com os habitantes das aldeias vizinhas, e lhes pagavam com objetos que haviam subtraído dos prisioneiros.
Talvez houvesse outra coisa, algo ainda mais perturbador que muitas pessoas têm no fundo de sua psique: acatar ordens das autoridades, mesmo contrariando sua consciência. A obediência total e irrestrita.

Ajuda de fora no monstruoso projeto assassino
As tropas alemãs não tiveram toda a Europa continental sob suas armas na mesma medida. Fora do Terceiro Reich e dos territórios ocupados, os alemães precisaram da ajuda de governos estrangeiros em seu projeto assassino monstruoso - no oeste assim como no sul e sudeste da Europa.
Seu apoio foi mais forte entre os eslovacos e os croatas, a quem Hitler deu estados próprios. Os croatas fascistas do regime Ustasha montaram seus próprios campos de concentração onde os judeus foram mortos "de febre tifóide, fome, tiros, tortura, afogamento, punhaladas e golpes de martelo na cabeça", segundo o historiador Hilberg. A maioria dos judeus da Croácia foi morta por croatas.
O antissemitismo não estava tão enraizado na Itália e foi ordenado pelo estado em consideração aos alemães. Um comandante militar italiano em Mostar (atual Bósnia) se recusou a expulsar os judeus de suas casas porque essas operações "não estavam de acordo com a honra do exército italiano". Esse não foi o único caso. Mas está claro que o governo fantoche de Benito Mussolini de 1943 participou avidamente da perseguição aos judeus. Mais de 9 mil judeus italianos foram deportados para a morte.
Cerca de 29 mil judeus da Bélgica foram assassinados, muitos deles denunciados em troca de dinheiro. Denúncias também aconteceram na Holanda e na França. As autoridades locais obedientemente abriram caminho para a deportação dos judeus e mais tarde disseram que não suspeitavam do destino que os aguardava. Essa desculpa foi usada por asseclas, oportunistas e burocratas - uma categoria de criminosos que foi negada por muito tempo após a guerra na França, enquanto o país tentava construir o mito de que toda a população francesa se envolvera na heroica Resistência.
A França ficou dividida em duas. As tropas de Hitler tinham ocupado três quintos do país, mas o sul continuou desocupado até novembro de 1942 e foi governado por um regime de direita baseado em Vichy que colaborou com os alemães.

Quantos foram traídos?
A primeira grande captura de judeus ocorreu em meados de julho de 1942 na Paris ocupada, quando quase 13 mil judeus que não tinham passaporte francês foram tirados de suas casas pela polícia local. Pelo menos dois terços dos judeus deportados da França eram estrangeiros. Os restantes consistiam em cidadãos franceses naturalizados e crianças nascidas na França filhas de judeus apátridas. A polícia "expressou repetidamente o desejo" de que as crianças também fossem deportadas, anotou um oficial das SS em julho de 1942. Quase todos os deportados acabaram em Auschwitz.
Ao todo, quase 76 mil judeus foram deportados da França e somente 3% deles sobreviveram ao Holocausto. Não se sabe quantos foram delatados pela população local. Na Holanda há um número que dá um indício da extensão das denúncias. O país tinha uma autoridade que caçava judeus em nome dos nazistas e que listava as propriedades de judeus que estavam escondidos ou já tinham sido deportados.
O "departamento de registro de bens domésticos" pagava 7,50 florins por judeu que fosse localizado - cerca de 40 euros em valores atuais. O jornalista holandês Ad van Liempt analisou registros históricos e estimou que somente entre março e junho de 1943 mais de 6.800 judeus foram identificados dessa forma, e que pelo menos 54 pessoas participaram dessa caçada uma ou várias vezes. "A maioria delas fez dessa sua ocupação principal durante meses", ele diz.
O chefe da unidade era um mecânico de carros chamado Wim Henneicke, que evidentemente tinha boas conexões no submundo de Amsterdã. Ele montou uma extensa rede de informantes que lhe diziam onde havia judeus escondidos. Cerca de 100 mil judeus da Holanda foram assassinados em campos de concentração, uma proporção muito maior que na Bélgica ou na França.
No entanto, em comparação com a França, os colaboradores holandeses foram rapidamente punidos depois da guerra. Cerca de 16 mil foram julgados até 1951, e quase todos, condenados.
Demjanjuk é uma categoria diferente de criminoso. Ele não é um colaborador ou um caçador de cabeças, nem um policial ou o tipo que contribuiu para o Holocausto longe da matança real. Ele estava em cena, dizem os promotores em seu mandado de prisão minucioso.

O mundo terrível dos auxiliares do Holocausto
Nos próximos dias médicos vão decidir se e por quanto tempo o último capanga de Hitler em Sobibor pode ser julgado. O governo alemão quer que ele enfrente o tribunal. "Devemos isso às vítimas do Holocausto", disse o vice-chanceler Frank-Walter Steinmeier.
Os que sofreram nos campos sob travniki como Demjanjuk não têm qualquer desejo de vingança quando falam sobre isso hoje. O psicanalista americano Jack Terry, que esteve preso no campo de concentração de Flossenburg quando Demjanjuk era guarda lá, diz que bastaria que Demjanjuk "tivesse de passar apenas um dia trancado em sua cela".
O sobrevivente de Sobibor Thomas Blatt diz que "não se importa que ele vá para a prisão; o julgamento é importante para mim. Eu quero a verdade".
Demjanjuk poderá dar informações sobre Sobibor - e sobre o terrível mundo dos ajudantes do Holocausto.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

[Der Spiegel, 24/05/2009]

Curta: Cartas da Mãe

Cartas da Mãe é uma crônica sobre o Brasil dos últimos 30 anos contada através das cartas que o cartunista Henfil (1944/1988) escreveu para sua mãe, Dona Maria. Estas cartas, publicadas em livros e jornais, são lidas pelo ator e diretor Antônio Abujamra enquanto desfilam imagens do Brasil contemporâneo. Política, cultura, amigos e amor são alguns dos temas que elas evocam, criando um diálogo entre o passado recente do Brasil e nossa situação atual. Artistas, políticos e amigos de Henfil, entre eles o atual Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, o escritor Luis Fernando Veríssimo, os cartunistas Angeli e Laerte e o jornalista Zuenir Ventura, falam sobre a trajetória do cartunista dos anos da ditadura militar até sua morte. Animações inéditas de seus cartuns complementam o documentário.

Direção: Fernando Kinas, Marina Willer
2003, 28 min


Detroit: The Troubled City

As part of his work on the effects of foreclosures in America, Bruce Gilden recently traveled to Detroit, Michigan. What he found was a desolate landscape where the subprime mortgage crisis is the latest blow hitting the "troubled city" already on its way to collapse and insurrection.
Bruce Gilden

Os animados cemitérios medievais

As necrópoles já foram um bom lugar para morar, namorar, jogar bola, dançar, comer, beber e fazer compras. A vida social entre túmulos chegou a tal nível de efervescência que a Igreja passou a legislar sobre o uso do espaço
por Séverine Fargette-Vissière

Darwin no Brasil

O cientista da Teoria da Evolução foi impiedoso e sarcástico com o País que conheceu em 1832. "Ignorantes, covardes e indolentes ao extremo". Assim definiu os brasileiros em seu diário
Por Almyr Gajardoni

Desglobalização

A recessão mundial ressuscita práticas protecionistas, como o Buy American, e fortalece comportamentos xenófobos...
Por Marcia Pinheiro

Chávez nacionaliza todas as empresas ligadas ao petróleo

O governo venezuelano deve 10 bilhões de euros às companhias que pretende expropriar

Maye Primera, em Caracas

As lanchas, os estaleiros, o abastecimento de água, vapor e gás para os poços. Todos os bens e serviços que tenham conexão com a exploração de petróleo começaram a ser desapropriados na última sexta-feira na Venezuela.
O presidente Hugo Chávez promulgou uma lei que reserva ao Estado todas as atividades ligadas à produção de hidrocarbonetos e prometeu que começaria a aplicá-la imediatamente. "Amanhã começamos a recuperar bens e ativos que hoje passam a ser do Estado, de propriedade social. (...) Amanhã estaremos no lago de Maracaibo dando o primeiro passo", disse Chávez. E foi o que fez.
Às 12:30 de sexta-feira, o comandante-presidente Chávez capitaneou a tomada de uma das frotas de lanchas que operam no lago - a principal bacia petrolífera do país - e que foi transmitida de forma obrigatória por todas as rádios e redes de televisão do país. "Hoje é um ato de libertação", disse em tom solene ao timoneiro e a sua tripulação. "Até hoje esta lancha era de um particular. Agora conduza-a com consciência de que esta lancha é de todo o povo, e que o povo o nomeou capitão."
Mais que a compra por parte do Estado dos bens e serviços que antes pertenciam a terceiros, Chávez disse que a nova lei representa o começo de uma "batalha naval libertadora" que começou nas águas "inimigas" do lago de Maracaibo - jurisdição do Estado de Zulia, governado há nove anos pela oposição. O ministro da Energia e presidente da estatal Petróleos de Venezuela (PDVSA), Rafael Ramírez, calculou que só no lago de Maracaibo passarão às mãos do Estado 39 terminais e docas, cinco diques estaleiros, 300 lanchas, 30 rebocadores, 30 barcos de carga e 61 lanchas. O governo também absorverá em seu nome mais de 8 mil trabalhadores que até o momento prestavam serviços às empresas contratadas.
Outro inimigo que o governo venezuelano procura abater através dessa lei é a potencial ameaça por parte das empresas contratadas de paralisar suas atividades e, em consequência, a produção de petróleo do país, como medida de protesto pela falta de pagamentos.
Segundo números da agência Dow Jones, no final de 2008 a PDVSA devia a essas empresas cerca de € 10 bilhões; por isso algumas delas consideravam retirar suas embarcações e equipamentos até que recebessem por seus serviços. Só com a empresa Williams Companies, dedicada à produção de gás natural no leste venezuelano, a PDVSA tem uma dívida de € 180 milhões. Todos esses credores são agora suscetíveis de ser desapropriados.
A lei permite que o governo compense as empresas expropriadas com bônus da dívida pública, em vez de efetivo, anule contratos preexistentes e ordene a ocupação preventiva de instalações.


Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

[El Pais, 09/05/2009]

Gripe suína mede a desigualdade mundial

Países em desenvolvimento sofrerão mais a pandemia

Javier Lafuente, em Madri

Algo se propagou em todo o mundo muito mais depressa do que o vírus H1N1: as dúvidas, as incógnitas de todo tipo. Uma delas é saber se o mundo está preparado para uma pandemia. Em geral, acontecerá o óbvio: os países ricos encaram melhor esta crise. No entanto, o caso do México e, em menor medida, por enquanto, de algumas economias poderosas da Ásia, evidenciam que é preciso aprofundar-se muito em melhorar a cultura sanitária nas áreas de maior desigualdade.
O trabalho realizado entre 2003 e 2005 depois da ameaça de pandemia da gripe aviária viu seus frutos cinco anos depois. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estabeleceu as linhas básicas a partir das quais se deveria proceder. Os países que a seguiram contam com protocolos para atuar nesses casos. Uma preparação, no entanto, que continua em falta no Terceiro Mundo e em países em desenvolvimento. Ou pior, que mesmo tendo essa disposição não contam com um sistema de saúde capaz de enfrentar a pandemia.
Na última quinta-feira, o jornal "The Wall Street Journal" afirmou que, em termos materiais, o Reino Unido é um dos países melhor preparados para enfrentar a pandemia. Em conjunto, conta com antivirais suficientes para tratar 33 milhões de pessoas, 54% da população. A França também conta com reservas para atender a uma porcentagem semelhante da população. A ministra da Saúde espanhola, Trinidad Jiménez, confirmou que a Espanha conta com uma provisão de 10 milhões de antivirais.
Na Ásia, é o Japão, com um estoque de medicamentos suficiente para tratar 24% da população, o país que encabeça a lista. Mesmo assim, especialistas consultados creem que se a virulência do vírus for maior, inclusive os sistemas sanitários dos países mais desenvolvidos poderiam ser insuficientes e ineficazes.
A questão não é, portanto, quem tem mais ou menos antivirais. "O número de existências não é necessariamente equivalente ao grau de preparação", adverte a espanhola María Neira, diretora do Programa de Saúde Pública e Meio Ambiente da OMS. A Índia, por exemplo, poderia ter uma capacidade econômica suficiente para enfrentar a pandemia, mas carece de infraestrutura para atender a milhões de pessoas.
Alguns países da Ásia, os da África subsaariana e certos grupos populacionais da América Latina serão os mais afetados. No domingo, o governo colombiano confirmou o primeiro caso de um afetado na América do Sul. Nessa região geográfica, a mais desigual do mundo, alguns países deram ou podem dar uma resposta rápida e eficaz a uma situação como a vivida. Mesmo assim, poucos governos divulgaram suas reservas de antivirais. "Não têm o que oferecem. Só dizem que é suficiente para tranquilizar a população, mas estão jogando com a sorte. É muito grave", afirma Rafael Orihuela, ex-ministro da Saúde da Venezuela, especialista em medicina preventiva.
A América Central, por sua proximidade com o México e porque costuma enfrentar em maio épocas de chuvas torrenciais, teme o que possa acontecer. Na Nicarágua, onde 60% da população não têm acesso à água potável e muitas famílias vivem isoladas, os alarmes soaram desde o primeiro momento. O país é um claro exemplo de como o vírus pode ser devastador se chegar a lugares pobres. Seu presidente, Daniel Ortega, admitiu que só tem tratamentos para 3 mil pessoas. Silvio Morales, especialista em epidemiologia e diretor de um hospital de Manágua, afirma que se o vírus se propagar pelo menos 20% dos afetados teriam de ser hospitalizados, criando uma espiral perigosa: a capacidade dos hospitais transbordaria e o número de mortes dispararia. "A Europa pode nos mandar antivirais, material médico... agradecemos eternamente, mas não nos enganemos, esse não é o problema. Transformar a educação sanitária é uma questão cultural."
No caso da Espanha, a Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (Aecid) não prevê por enquanto uma ajuda estratégica, quer dizer, enviar profissionais para as partes do mundo que necessitem. "Mas não o descartamos; estamos esperando", explica Elena Madrazo. Diretora da Aecid. Até agora a Espanha enviou ao México 65 mil máscaras e 6 mil óculos de proteção individual. Também aprovou uma remessa de € 80 mil solicitada pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). "Não há um limite estabelecido para a cooperação", salienta Madrazo.
Embora ainda não tenha sido registrado qualquer caso possível da nova gripe, o continente africano é o mais vulnerável. Por isso alguns países tomaram medidas preventivas radicais. O Egito, por exemplo, mandou sacrificar todos os porcos, uma decisão que acarretou graves distúrbios em cidades como o Cairo.
Na África, o escritório regional da OMS conta com aproximadamente um milhão de tratamentos, embora se dê por certo que, caso chegue o vírus, será preciso recorrer às reservas dos países mais desenvolvidos. A organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) pediu que se dê ênfase às pessoas que já sofrem alguma doença - desnutrição, malária -, pois seriam as primeiros afetadas.
Que o vírus sofra mutação e tenha uma virulência maior é o pior cenário possível. "Não é momento para previsões. É preciso trabalhar com diversos cenários, mas com precaução e evitando especulações", pede Neira.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

[El Pais, 05/05/2009]

Curta: Início do Fim

Até mesmo o amargo fim tem sempre um começo. Um curta impactante sobre as ruínas da memória. [clique na imagem para assistir]

Ficção, 2005, 6 min.
Direção: Gustavo Spolidoro

Augusto Boal, 1931-2009

02/05/2009 - Augusto Boal, criador do Teatro do Oprimido, morre aos 78 anos no Rio
[clique na imagem para saber mais...]

Em tempo de gripe...

A fúria da gripe espanhola
No início da década de 20, enquanto a Europa reunia os cacos da Primeira Guerra, um inimigo ainda mais devastador assustou o mundo todo e, em dois anos, matou mais de 30 milhões de pessoas: a gripe
Por Moacyr Scliar [
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O mundo no tempo das pestes
Ao longo da história, as epidemias provocaram mais mortes do que todas as guerras. A descoberta dos antibióticos diminuiu esse risco - até a chegada da Aids, que ainda desafia os medicamentos.
Por Lúcia Helena de Oliveira e Regina Prado [
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São Paulo, 1918: a capital do inferno
Liane Bertucci escreve que "o tempo da epidemia é o da solidão, da suspeição generalizada, com o esgarçamento das relações humanas". Quem permanece imune tranca-se em casa, não recebe amigos nem parentes. Fecham-se bares, cinemas, teatros. Os guardas são aconselhados a evitar apertos de mãos, limitando-se à continência. Abraços e beijos são considerados quase que atos de traição. "As tragédias que aconteciam no delírio da febre se repetiam com freqüência", acrescenta a autora. Gente gripada tentava o suicídio ou matava o mais próximo. Doentes saltavam das janelas de suas casas ou dos hospitais. [
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O beijo da Morte

Autor de "Robinson Crusoe", o inglês Daniel Defoe descreveu, em forma de reportagem, a peste que devastou Londres no ano de 1665.

LEONARDO FRÓES

No cenário horripilante do ano da peste em Londres, 1665, o beijo da morte é um dos momentos de maior pavor teatral. Um homem já contaminado, que parece estar delirante ou bêbado, sem mais nem menos agarra uma mulher na rua, beijando-a à força na boca para contaminá-la também.
O episódio é dado por verídico e se intercala a muitos outros igualmente patéticos, mas nunca saberemos ao certo se ele foi inventado ou se de fato corresponde a uma visão real.
O repórter pioneiro que o narra em "Um Diário do Ano da Peste", Daniel Defoe (1660-1731), tinha apenas cinco anos de idade quando a desgraça se abateu sobre Londres.
(Há uma boa tradução brasileira de "Um Diário do Ano da Peste", por Eduardo San Martin, publicada em 2002 pela editora Artes e Ofícios.) Além disso, como repórter romanceador ou ficcionista dos fatos, Daniel Defoe mistura boletins semanais de óbitos e outros dados precisos sobre a calamidade a blocos de uma prosa envolvente, porque direta e voltada para a ação, sobre casos que o narrador diz ter ouvido contar. O "Diário" foi escrito e publicado em 1722, mais de meio século depois da Grande Peste (bubônica), e esses casos assim, mesmo que tivessem base real, já estariam muito adulterados pelo passar do tempo.
Ao fazer sua reportagem retrospectiva da história, o jornalista tarimbado, que durante uma década redigiu praticamente sozinho todas as edições de seu pequeno e influente jornal, "The Review", pesquisou não só estatísticas como também muitos folhetos contemporâneos da peste, que a sumariavam no calor da hora.

Ratos de porão
Trazida por ratos nos porões dos navios que atracavam em Londres e disseminada por pulgas dos cães e gatos que os comiam, a epidemia chegou ao auge no verão de 1665, matando no decorrer desse ano, segundo os cálculos do narrador do "Diário", cerca de 100 mil pessoas.
Se inovou em sua época, pela maneira sutil como emendava o ficcional com o vivido, Daniel Defoe também se antecipou ao futuro no manejo de um estilo que é corrente hoje, quando a convergência cada vez mais estreita entre literatura e jornalismo tem determinado a criação de tantos produtos tecnicamente semelhantes ao "Diário da Peste".
Sem ornamentar suas frases, sem exibir erudição, sem se demorar em excursos, traços peculiares à prosa setecentista, Defoe mantém o leitor sempre ligado na sucessão de quadros de horror que recompõe com eficácia.
Tudo começa com um certo disse-me-disse de que a peste vinha chegando. Em breve se evidenciam os primeiros casos, e a mortandade dispara.
Ruas, depois quarteirões inteiros se esvaziam. As casas onde há doentes, às vezes toda a família, são lacradas pela polícia e vigiadas dia e noite, para impedir que os pesteados fujam.
Proíbem-se bailes, bebidas e diversões públicas, mas, quando as coisas se agravam, ninguém mais garante a lei, porque até mesmo os tribunais são fechados. O caos, por fim, se instala em toda a cidade. Londres estava inchada quando a peste chegou. Com a queda da efêmera república inglesa e a restauração da monarquia, cinco anos antes, "as famílias arruinadas do partido do rei" tinham voltado do exílio, assim como voltavam soldados, sem eira nem beira, da recente guerra com a Holanda.
Sem condições de saneamento, as zonas mais pobres forneciam a maior quantidade de cadáveres que os carroções levavam. Os ricos, aos primeiros alarmes, foram refugiar-se correndo nas propriedades rurais de que dispunham.
Mas os últimos fugitivos pobres da peste se refugiaram no mato, construindo toscas cabanas e sobrevivendo ao acaso, como depois irá fazer Robinson Crusoe, o personagem mais rico de Defoe.

Reconciliação
Apesar da devastação que causou, a Grande Peste, segundo seu narrador, teve um lado positivo, pois "a contemplação da morte próxima reconciliou entre si os homens de bons princípios".
Apontando para as divergências, preconceitos e maus sentimentos que então se perpetuavam, ele diz que "outro ano de peste teria reconciliado estas diferenças".
No ano seguinte, 1666, a peste não voltou, mas Londres foi assolada por seu devastador Grande Incêndio, que em menos de uma semana a reduziu pelo meio a cinzas.

LEONARDO FRÓES é poeta, tradutor e crítico.

[Folha de São Paulo, 03/05/2009]

Pânico moral

O historiador inglês Peter Burke relembra a criação de boatos e culpabilizações devido a tragédias e epidemias e ressalta o papel crucial do jornalismo

"A epidemia é uma ameaça real, mas há o perigo de que as pessoas reajam a ela de maneira excessiva ou errada."
PETER BURKE

Uma das desvantagens da globalização, no sentido de eficiência ampliada das comunicações, é que não só as mensagens como as doenças podem se espalhar mais rápido do que no passado, e a atual epidemia de gripe suína exemplifica esse fato muito bem.
A epidemia é claramente uma ameaça real. Mesmo assim, existe o perigo de que as pessoas reajam de maneira excessiva a ela, ou reajam de maneira errada, o que poderia resultar em pânico coletivo. Pânicos coletivos -ou "pânicos morais", como alguns sociólogos os denominam- são um fenômeno comum, talvez até comum demais.
Ocasionalmente o perigo é imaginário, como na onda de pânicos relacionados a bruxas que se espalhou pela Europa nos séculos 16 e 17 e resultou na morte de milhares de pessoas inocentes.
Na China, em 1768, por exemplo, surgiu um grande pânico causado por boatos de que pessoas sem moradia estariam roubando as almas das pessoas comuns, e foi necessária uma intervenção do governo para acalmar a situação.
Na metade de 1789, quando a Revolução Francesa estava começando, um boato (hoje conhecido como "La Grande Peur", ou "o grande medo") se espalhou pelas regiões rurais do país. De acordo com o boato, salteadores estavam se preparando para atacar aldeias e roubar sua comida, como parte de um complô da aristocracia contra o povo.
Em consequência, os camponeses se armaram e alguns deles decidiram atacar as casas dos nobres, em uma espécie de golpe preventivo.
Já em outras ocasiões o perigo é real, e não imaginário, mas os boatos servem para amplificá-lo, como no caso da praga que se abateu sobre a Europa em 1348 e retornou em diversas ocasiões -em Milão e outras cidades do norte da Itália em 1630, em Londres em 1665 e assim por diante.

Bodes expiatórios
Na esfera econômica, um pânico pode bastar para produzir os efeitos cuja possibilidade desperta o medo das pessoas, para começar.
Um exemplo vívido - e que oferece paralelos desconfortáveis com relação à situação presente - é o do pânico financeiro que tomou os EUA em 1873.
A crise surgiu depois de um surto de gripe equina e do colapso de um grande banco (o Jay Cooke & Co.) e resultou em uma depressão econômica que durou alguns anos.
Em casos de pânico coletivo, é comum que surja uma busca por bodes expiatórios. Em outras palavras, grupos ou até mesmo indivíduos são culpados por situações que resultam, ao menos em parte, de debilidades do sistema econômico, social ou político.
Não há nada de surpreendente nisso: indivíduos são visíveis, enquanto sistemas trabalham por efeito de uma "mão invisível". Como resultado, histórias sobre complôs são tema recorrente nos pânicos.
Esses complôs são em geral atribuídos a grupos que já foram descritos como "demônios folclóricos".
Em outras palavras, pessoas que são alvo de preconceitos em determinadas culturas -os católicos (em culturas protestantes), os judeus, os jesuítas, os aristocratas, os banqueiros (de olhos azuis ou de olhos castanhos), os maçons ou os comunistas. São grupos suspeitos de conspirar para envenenar, infectar, queimar, sequestrar ou empobrecer as pessoas comuns ou para promover um golpe de Estado ou uma revolução.
A praga que atingiu Milão em 1630 e tem parte importante em "Os Noivos" ["I Promessi Sposi"], o grande romance de Alessandro Manzoni, foi atribuída por alguns aos chamados "untori", um grupo que espalhava um unguento mortífero pela cidade.
Histórias sobre vilões que envenenam os reservatórios de água ou satanistas que torturam e matam crianças estão em circulação há muitos séculos (pelo menos desde o século 14).
Nesse contexto, não parece irracionável falar em surtos de paranoia coletiva, desde que não descartemos os pânicos como completamente irracionais, patológicos ou absurdos.
Pode haver bons motivos para uma atmosfera de pânico ou incerteza que leve à difusão de rumores desse tipo.

Medo das bruxas
Os pânicos podem representar reação excessiva, mas são reação a um problema real. As bruxas não existiam (ou ao menos não tinham os poderes de causar o mal que lhes eram atribuídos), mas o medo de bruxas expressava tensões sociais reais.
Nunca existiram ladrões de almas, mas os rumores sobre eles expressavam ansiedade da parte das pessoas domiciliadas quanto ao número de pessoas que levavam uma existência nômade nas estradas chinesas.
Os salteadores não estavam mais ativos na França no verão de 1789 do que em outras ocasiões, mas os boatos sobre sua ação e sobre a conexão entre salteadores e a aristocracia nos dizem algo sobre os problemas e os temores dos camponeses franceses da época.
Não havia complôs para espalhar a praga, quer em Milão em 1630 ou em Londres em 1665, mas a praga mesma era um perigo muito real.

Caminho do meio
Será possível encontrar um caminho intermediário entre ignorar ameaças reais e sucumbir a pânicos coletivos? Os meios de comunicação têm papel importante a desempenhar, quanto a isso.
Os rumores que transmitem e amplificam os pânicos são muitas vezes reações à falta de informações confiáveis.
Se podemos afirmar que um pânico se assemelha a uma doença coletiva, o remédio -ou ainda melhor, o profilático- está no jornalismo responsável, quer na televisão, no rádio ou nos jornais.

PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O Que É História Cultural?" (ed. Zahar). Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Paulo Migliacci.


[Folha de São Paulo, 03/05/2009]