Fora do ar...

Após quase dois meses, voltamos a postar em nosso blog. O motivo: tivemos furtado de nossa residência, entre outras coisas, nosso velho PC e nosso recém-adquirido notebook (comprado com o financiamento do governo do Estado para professores)...

Anticalvinismo brasileiro

Desfrute mundano da riqueza pregado pela “teologia da prosperidade” sintetiza o ideário de todo o país desde os anos 90

Em 1994, o controle inflacionário e as promessas que a nova moeda fez, a vários setores de uma população brasileira ainda um tanto receosa, suscitaram variadas notícias. Quinze anos mais tarde, o fenômeno do consumo volta a merecer a atenção da mídia. Endossando o vocabulário classificatório dos institutos de pesquisa de mercado, nos últimos tempos os jornais têm trazido a informação de que emerge no Brasil uma "nova classe média". Como ler esse fenômeno?
Um olhar mais abrangente para a vida social brasileira permite verificar que, a partir da década de 1990, não é apenas a estratificação econômica que muda no Brasil.
Dados dos Censos Demográficos produzidos pelo IBGE até 2000 mostram que a paisagem religiosa do país também está em transformação: em 1970, havia 91,1% de católicos e 5,8% de evangélicos. A partir de 1980, essa proporção se alterou de forma significativa: nesse ano, havia 89,2% de católicos e 6,6% de evangélicos; em 1991, 83,3% de católicos e 9,0% de evangélicos; em 2000, 73,8% e 15,4%, respectivamente.
No mesmo momento em que se estabelece a chamada "classe C", uma parcela significativa da população converte-se às religiões evangélicas. A coincidência dessas duas dinâmicas sugere o rendimento analítico da clássica premissa weberiana segundo a qual há uma relação entre ética religiosa e ethos econômico. Vejamos por quê.
Dentro do variado horizonte evangélico-pentecostal, a Igreja Universal do Reino de Deus, professora da teologia da prosperidade, destaca-se em função de sua rápida expansão. A igreja foi fundada no Rio de Janeiro em 1977. Em 1990, reunia 269 mil pessoas; em 2000, o número havia crescido para 2,1 milhões. Estima-se que hoje a Igreja Universal tenha cerca de 8 milhões de fiéis no país.
Essa denominação pentecostal foi, e eventualmente ainda é, alvo de duras críticas por parte da mídia e da população em geral. Os megaeventos de cura contra o Diabo, organizados no espaço público, bem como seus projetos políticos, impressionam diferentes instâncias da sociedade desde o fim dos anos 1980.
Grosso modo, essa igreja é continuamente acusada de utilizar uma linguagem proveniente do mercado e de servir-se da força persuasiva da televisão para manipular uma massa de fiéis não raro aludidos como ingênuos e ignorantes, e vistos como vítimas de uma mensagem teológica vazia.

O que dizem os fiéis?
Contudo, embora a Igreja Universal tenha motivado muitas análises, pouca ênfase tem sido devotada à compreensão de seus fiéis. Para numerosos pesquisadores, normalmente atentos aos templos situados nas grandes avenidas das cidades brasileiras, essas pessoas buscariam ali uma resposta imediata para suas aflições cotidianas e seus anseios de ascensão social.
Mas como explicam sua experiência de fé aqueles que frequentam os templos menores, próximos a seu cotidiano nas franjas da vida urbana? Por que grande parte dos pobres deste país tem procurado especificamente na teologia da prosperidade, sobretudo desde os anos 1990, soluções para os males que os atingem?
Inspirada no "Faith Movement" norte-americano, essa teologia iniciou sua penetração em muitas igrejas brasileiras no fim dos anos 1970. No sistema cosmológico da Igreja Universal, assim como na Igreja Renascer, na Nova Vida e em outras, a plenitude é um valor central. O desfrute mundano da fortuna é coisa sagrada.
Essa teologia prega que, por meio da força performativa das palavras, o fiel pode neutralizar o Demônio, responsável pelos males que se impõem à vida, e ter acesso a tudo de bom que a existência terrena pode oferecer: saúde perfeita, harmonia conjugal e riqueza material.
A relação entre o cristão e Deus é contratual: para receber a graça do Senhor, o cristão deve viver de acordo com a fé, ir regularmente à igreja, entregar com assiduidade o dízimo previsto na Bíblia, fazer as ofertas e "tomar uma atitude". A teologia da prosperidade revê a antinomia entre cristianismo e desfrute mundano da fortuna. Sua mensagem moral liberta os fiéis das exigências ascéticas determinadas pelo calvinismo e pelas denominações pentecostais tradicionais.
Seus crentes estão destinados a viver em harmonia familiar e a serem saudáveis e vitoriosos em todos os empreendimentos terrenos se demonstrarem confiança incondicional em Deus. O fiel dessa teologia entende que Deus deseja uma vida de plenitude a quem trabalha com afinco e vive de acordo com os preceitos da fé. O bom cristão pode -e deve- determinar seu acesso a tudo de bom que a vida oferece.
Assim, por um lado há uma continuidade entre o protestantismo histórico e a teologia da prosperidade no que se refere ao rigor diante da obediência religiosa e do trabalho. Por outro, enquanto a ética calvinista da predestinação impunha aos crentes uma atitude ascética, a teologia da prosperidade sacraliza o usufruto imediato das possibilidades aquisitivas conquistadas pelo fiel. Por que, precisamente na década de 1990, parcelas crescentes das camadas populares urbanas deixaram de buscar na religião apenas orientação sobre como sofrer ou como lidar com a impotência em face da agonia familiar?
Por que os pobres brasileiros não mais se sentem satisfeitos e recompensados pela idéia de que Deus todo amoroso lhes atribuiu uma tarefa, como diria Weber, ou, por que, contrariando Pascal, sua aposta na existência de Deus não pode mais prescindir de provas factuais?
Tenho argumentado contra a visão de que, para os pobres, largamente expostos ao desemprego ou ao subemprego, a atratividade da teologia da prosperidade de um modo geral, e da Igreja Universal, em particular, reside na promessa de prosperidade promovida por meio de uma vigorosa estratégia proselitista.
Essa hipótese não explica por que essa teologia professada desde a fundação da igreja em 1977 se torna atraente, a ponto de ampliar seu número de fiéis em 25% a cada ano, justo na década de 1990.
Recuso a associação imediata entre pobreza e participação religiosa por dois motivos: 1) é mais do que sabido que, embora maciça, a adesão religiosa não é a única via nas camadas populares; 2) nos casos de conversão, as possibilidades presentes no mundo contemporâneo são diversas entre si. Basta vencer a superfície para se verificar que essa diversidade é interna inclusive ao pentecostalismo, muitas vezes tratado como algo uniforme.

Ressonâncias
Penso que o crescimento da teologia da prosperidade acontece nesse momento porque é quando os símbolos articulados em sua mensagem pastoral -e mesmo a própria mensagem- encontram ressonância no sistema simbólico que atravessa a experiência social brasileira de maneira mais ampla.
No contexto social em que essas igrejas vicejam, a pobreza sempre foi uma fonte de dificuldades. Não obstante, até a década de 1990, os baixos números sobre sua penetração indicam que o conceito de compensação neste mundo (central na teologia da prosperidade) não havia alcançado a mesma legitimidade religiosa e, portanto, o mesmo apelo entre os pobres, que vem a ter então.
Desde os anos 1990, quando a política econômica e social brasileira acata os postulados do capitalismo pós-social, princípios e termos tomados de empréstimo do campo semântico do empreendedorismo neoliberal ganham exposição insistente na mídia audiovisual e impressa, fornecendo sentido a grande parcela das relações no Brasil.
Na segunda metade da década, os meios de comunicação, de maneira hegemônica, passaram a tratar o sucesso econômico e, consequentemente, o acesso ao mundo do consumo como resultado do empenho empreendedor individual. A Igreja Universal prega que a salvação acontecerá no mundo para todo aquele que aceitar a palavra sagrada e se empenhar no trabalho. Mais do que em outras denominações pentecostais, essa igreja imprime um tom pedagógico a seus cultos à prosperidade. Durante as reuniões, os fiéis pedem a vitória, cantam por ela, pagam o dízimo por ela e aprendem sobre como alcançá-la com o clero, que lê e comenta casos simples de sucesso em marketing quase toda semana.
A pesquisa antropológica não é capaz de verificar se a fatia da população que tem sido considerada a nova classe média é a mesma que está presente nas igrejas professoras da teologia da prosperidade.
Mas a etnografia tem demonstrado que os fiéis dessas igrejas falam com entusiasmo sobre o alcance de uma vida melhor a partir da conversão e que essa vida melhor envolve, entre outros fatores, um acesso alargado a bens de consumo.

DIANA LIMA é professora do departamento de sociologia do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro).

[Folha de São Paulo, 12/07/2009]

Calvino, 500

Analise da obra do reformador francês que levou a teologia cristã a seus limites lógicos e terminou por sacrificar a idéia de um Deus amoroso e clemente.

No Brasil, regra geral, pouco sabemos de [João] Calvino. Menos até que o pouquinho que sabemos de Lutero. O suficiente para ligar seus nomes à revolução cultural da primeira metade do século 16, a Reforma protestante, um dos motores de arranque da modernidade.
Foi a primeira das revoluções burguesas da lista de três elaborada por Engels. Pôs em marcha um processo de emancipação humana em três níveis, num ataque simultâneo à tradição religiosa, às autoridades tradicionais, ao tradicionalismo econômico.
Calvino e Lutero foram, um em seguida do outro, as grandes lideranças intelectuais daquele vasto movimento de liberação criadora que varreu a Europa por mais de um século, do início do 16 ao fim do 17.
Teólogos criativos ambos, sacadores de novas idéias quanto à salvação da alma e à concepção de Deus, formadores de novas igrejas com novíssimas eclesialidades, inventores de formas outras, menos ritualistas, de praticar a religião cristã. Ambos escreveram muito e pregaram mais ainda, não necessariamente nessa ordem.
Contemporâneos um do outro? A precedência de Lutero em relação a Calvino foi ligeiramente temporal, sendo antes de mais nada intelectual. Foi Lutero quem lançou o principal fundamento da grande virada teológica: a doutrina da salvação "sola fide" (em latim: só pela fé).
Noutras palavras, a salvação da alma como iniciativa totalmente divina, sem qualquer participação ou ajuda, seja dos méritos do interessado, seja de méritos alheios acumulados, segundo uma tese católica repudiada nominalmente por Lutero nas 95 teses, num fundo comum de graça salvífica denominado "thesaurus ecclesiae" [o tesouro da igreja].
Muitos brasileiros conhecem tais generalidades sobre os dois reformadores, mas poucos são os que sabem que Calvino, ao repisar as pegadas de Lutero na crítica teórica e prática do catolicismo romano, procurou, de cabeça feita, levar às últimas consequências lógicas as premissas teológicas - de caráter "teocêntrico" - fincadas pelo promotor da grande dissidência religiosa perante o "eclesiocentrismo" católico e sua soteriologia inerentemente sacramentalista.

Desígnios inapeláveis
O foco do pensamento de Calvino é a soberania absoluta do Deus único, sua irresistível onipotência e inatingível transcendência em relação ao mundo -este mundo- que criou do nada apenas para Sua maior glória. Seus desígnios em relação a nós são misteriosos, ocultos, insondáveis e, existindo desde toda a eternidade, são imutáveis, inegociáveis, inapeláveis. Definitivos.
Ocorre que o maior problema teórico da concepção monoteísta da divindade, que pressupõe como irrenunciáveis a onipotência e a infinita bondade de Deus, reside na dificuldade de achar nela uma explicação coerente para a existência do mal.
Donde vem o mal? O dualismo (seja o de Zoroastro, seja o de Maniqueu) presta bons serviços nesse sentido. Como? Justapondo duas potências de igual grandeza e em perpétua oposição: a potência do bem (isto é, da bondade, da pureza, da verdade, do belo, da luz) e a potência do mal (da malignidade, da impureza, da mentira, do horrendo, das trevas).
Com isso, sistematiza-se de modo racional a primitiva crença, cuja vigência mergulha na noite dos tempos, de que existem espíritos bons, concebidos como favoráveis e úteis ao ser humano, e espíritos maus, entendidos como desfavoráveis e nocivos a nós. Ora, o dualismo racionalizado de tipo zoroastriano implica uma renúncia à onipotência de Deus, já que Este tem pela frente um Antideus de igual poder, que o limita.
Quando vem o monoteísmo, dá a vitória à potência do bem sobre o espírito das trevas. Mas isso não extirpa a dúvida metafísica diante da realidade do sofrimento humano, sobretudo se for imerecido e, portanto, injusto. O melhor exemplo é o sofrimento dos inocentes neste mundo. Se o Deus todo-poderoso é infinitamente bom, como explicar que sofra quem não merece sofrer?
Tanto o judaísmo como o cristianismo se defrontaram por séculos a fio com a exigência intelectual de desatar esse nó racionalmente, vale dizer, coerentemente. Sem muito sucesso no quesito consistência lógica, pelo menos até o início do século 16, com a entrada de Calvino no debate.

Proeza racional
Foi preciso o destemor conceitual de um teólogo exigente feito ele (que, segundo biógrafos, ensinava como se fosse refém de uma inclinação pessoal obsessivo-compulsiva a pensar com lógica a teologia) para dar o passo racional necessário. Ousou: para salvar a onipotência de Deus, não dá para não sacrificar pelo menos um quê da bondade divina.
Se pretende consistência, o "ensino da religião cristã" (título de sua obra maior) tem que renunciar à figura do Deus amoroso e clemente. Foi o que sua teologia procurou objetivar numa versão mais explícita e completa, o mais possível consequente, da tese agostiniana da predestinação à salvação eterna. Nessa proeza de racionalização, o conhecimento minucioso que tinha da Bíblia o ajudou pra valer.
Dou três exemplos, tirados por ele dos profetas: "Para que saibam os que procedem do Oriente e os que vêm do Ocidente que além de mim não há outro. Eu, Deus, formo a luz e crio as trevas, faço a paz e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas essas coisas." Pode parecer incrível, mas isso está lá, na Bíblia. Javé afirma isso pela boca do profeta Isaías (Is. 45, 6-7).
E indaga pela boca de Amós (Am. 3, 6): "Tocar-se-á a trombeta na cidade sem que o povo estremeça? Sucederá algum mal à cidade sem que o Senhor o tenha feito?" E nas "Lamentações" de Jeremias (Lm. 3, 38): "Acaso não procede do Altíssimo assim o mal como o bem?"
Foi com essa mesma e incondicional devoção ao "mistério" de uma soberania divina acima do bem e do mal, num "mix" muito particular, só seu, de lógica sistemática e senso de mistério, que o jovem jurista convertido ao protestantismo completou, também por necessidade lógica, a tese luterana de que não jaz nas obras meritórias o fundamento da salvação. Seu raciocínio corre assim: do mesmo modo que não está nas obras do ser humano o fundamento de sua eterna salvação, também nelas não pode estar o fundamento de sua eterna perdição. Nós, criaturas humanas, "não merecemos" nem aquela nem esta, eis o lado ironicamente humilde da ousadia teológica de Calvino. Perante a infinita justiça divina, não somos capazes de merecer nada, nada, coisa alguma.
Na explicação paciente que faz da doutrina da dupla predestinação, é notória a intenção de nos instruir nesta humildade a um só tempo mínima e máxima: a de colocar na vontade do "Deus absconditus" (Deus oculto) a causa da nossa eterna salvação, tanto quanto a da nossa eterna danação.
Daí por que, entre as consequências dedutíveis do princípio básico da soteriologia luterana, quem leu Weber sabe disto, na versão completa que Calvino ensina da doutrina da predestinação o que mais impressiona e choca a leitores e seguidores é a predestinação dos condenados ao inferno. Vale dizer, a predestinação como duplo decreto. Sua definição: "Chamamos predestinação o desígnio eterno de Deus, pelo qual ele determinou o que queria fazer de cada ser humano. (...) Por seu desígnio eterno e imutável, decretou Deus quais eram os que ele queria tomar em salvação, e quais os que queria mandar à perdição."

Decreto apavorante
A predestinação eterna só dos salvos (dos "happy few", diria Shakespeare) é uma antiga tese cristã, já presente em Agostinho e aceita expressamente por Lutero. O que surpreendeu em Calvino foi ele ter aberto o jogo no que tange à predestinação dos réprobos, ter exposto que a causa do seu malfadado destino pós-morte não está nos pecados deles, como normalmente se crê, mas no outro braço que completa o decreto salvífico do Senhor. Está no "decretum horribile".
Comentário do próprio Calvino: "Confesso que esse decreto deve nos apavorar". Comentário do grande poeta do protestantismo, John Milton [1608-1674]: "Posso ir para o inferno, mas um Deus como esse jamais terá o meu respeito". Quase dantesco, soando às vezes satírico, Calvino deixou de lado todo prurido "bela alma" e saiu rasgando o véu da compaixão católica e luterana pelo "pobre pecador", dando espaço em suas obras à crueza catastrofista do monoteísmo vingador dos profetas bíblicos.
Só nos profetas de Israel podem-se ler peças declaratórias de um monoteísmo predestinacionista cabal e incondicional como o dele, isto é, para o bem e para o mal, para o céu e para o inferno. Calvino foi a eles. Mas foi também a Paulo, aos "Salmos", ao "Livro de Jó", para dali glosar as frases que deixariam em sobressalto seus seguidores e indignados seus opositores. Contam que ele achava desnecessário, além de impróprio e pecaminoso, ir além do que diz a Bíblia sobre a questão.
Seus biógrafos apresentam-no tão convicto do abismo intransponível que depois da Queda separa a humanidade da transcendência absoluta de Deus que ele, na vida privada, reagia a esses terrores com um domínio de si de tal forma rígido, e aparentemente tão sereno, que não deixava pista alguma sobre as provações por que certamente passou e passava, coibindo com o mesmo freio as intempéries da própria dor: "Calei e emudeci, porque Tu, Jeová, o fizeste" (Sl 39, 9). Calvino sofria de úlcera crônica.
Catecismo foi um gênero literário de sucesso no século 16, século que, na avaliação do historiador francês Lucien Febvre, sobressai como o mais religioso da história ocidental. A começar de Lutero, cada líder reformador queria publicar um. A Contrarreforma católica também criou o seu. Calvino tinha lá seus 25 anos quando começou a escrever o dele, esse que acabaria virando sua obra principal - "Institutio Religionis Christianae" - agora lançada pela Editora Unesp em nova tradução ["A Instituição da Religião Cristã", vários tradutores].
Uma elegância de edição, por sinal, com capa dura em cores asceticamente sóbrias, um belo objeto. Com essa beleza de lançamento, o Brasil livreiro comemora em grande estilo o quinto centenário do nascimento desse mentor intelectual da Reforma pontiagudo e contundente, seu promotor mais extremado, cujo carisma pessoal parece revelar-se ao leitor no modo muito seu de repensar teocentricamente (repito) a fé cristã com uma consequencialidade lógica de deixar Lutero comendo poeira.
Arrojado, é irresistível no convite que faz a um estudioso não religioso da religião a aprender a pensar uma verdade religiosa "jusqu'au bout" (até o fim) para ver no que pode dar. Passou a maior parte da vida adulta escrevendo e reescrevendo seu catecismo, de início um pequeno livro de estrutura simples e apenas seis capítulos (a primeira edição é de 1536), até torná-lo essa espécie de "summa theologica" que conhecemos das edições definitivas de 1559 (em latim) e 1560 (em francês). São oitenta capítulos dispostos em quatro livros divididos em dois tomos.
A nova tradução brasileira, de iniciativa de uma editora universitária declaradamente não religiosa, teve por base o texto em latim de 1559, a última versão latina. A última versão em francês é de 1560. O texto se constrói numa prosa maravilhosamente lógica e incisiva, e nisto me parece que a nova tradução convence, a saber: no empenho de fabricar boa prosa vernácula.
Devo confessar que, muito antes do convite feito pelo Mais! para comentar o livro neste décimo jubileu do autor, e conhecendo de antemão a tradução alemã, cujo título diz "Unterricht in der Christlichen Religion", ou seja, "Instrução na Religião Cristã", eu já desconfiava que no latim o nome "Institutio" trouxesse à baila o significado de "instrução", "ensino", "escola". Mas não sabia que o mesmo significado ocorresse também em francês.
Curioso, corri ao dicionário de francês "Petit Robert" e acabei descobrindo que, também na língua materna de Calvino, o termo "institution" abriga igualmente a acepção de "ação de instruir e de formar pela educação". Esse devir semântico passou a ocorrer, segundo o "Petit Robert", no início do século 16. "Tudo a ver com a obra de Calvino", comemorei sozinho a descoberta. Comecei então a me perguntar, e é uma pergunta que não quer calar, se na nova tradução brasileira a obra de Calvino não ficaria melhor representada, e mais adequadamente apresentada, com um título de significado mais direto e menos polissêmico do tipo "Ensino da Religião Cristã".
Porque, afinal de contas, é disso mesmo que se trata, de ensino. E a leitura do tomo 1 só fez me convencer, inconformado, de que agora é tarde. Estamos diante de mais uma oportunidade perdida de fazer o melhor para o leitor. Seja como for, com exceção da discutível tradução do título, a atual edição faz jus ao compromisso de clareza indispensável a uma argumentação religiosa que se pretende rigorosamente pública. Quer dizer, sem os resvalos em eflúvios e plangências de intimidade cripto-nupcial com o Divino encontradiços em santo Agostinho, são Bernardo, Lutero, Spener, Wesley e tantos mais, sempre cheios de amor para dar.

ANTÔNIO FLÁVIO PIERUCCI, chefe do departamento de sociologia da USP.

[Folha de São Paulo, 12/07/2009]

AMIA: 15 anos!

O atentado contra a AMIA ocorreu em uma segunda-feira, às 9:53 da manhã, em 18 de julho de 1994. Uma van da marca Renault Traffic, carregada com 300 quilos de explosivos, explodiu a emblemática sede social da comunidade judaica argentina. A vida de 85 pessoas foi sepultada sob os escombros na rua Pasteur, 633. Mais de 300 ficaram feridas.



40 anos!

Um grande salto para lugar nennum

Para jornalista que cobriu o programa Apollo, viagem comovia apenas "porque era difícil"; hoje tudo parece não fazer muito sentido
Nós ensamos que ele mudaria tudo. Mas, 40 anos depois, a impressão que dá é que o pouso do Apollo-11 na Lua não fez muito sentido. Até a Nasa passou a achá-lo um tanto sem sentido, antes mesmo de o Programa Apollo completar seus dez pousos planejados.
Os últimos três foram cancelados e o dinheiro foi desviado para o desenvolvimento do ônibus espacial, que, por sua vez, será cancelado assim que a construção da Estação Espacial Internacional for concluída. E, como se para enfatizar a futilidade de enviar humanos para o espaço, a Nasa já planeja cancelar a estação até 2016. Não simplesmente cancelá-la, mas fazê-la propositalmente cair no mar, antes que possa despencar sobre uma área habitada. Tanto esforço e tanto dinheiro gasto ao longo de décadas. E para quê?
Venho refletindo intermitentemente sobre essa pergunta desde 16 de julho de 1969, quando assisti à ascensão dolorosamente lenta, mas retumbante, do foguete Saturno-5 de sua plataforma de lançamento em Cabo Canaveral (então Cabo Kennedy) e, quatro dias mais tarde, no centro de controle da missão, em Houston, Texas, vi a imagem borrada mostrada pela televisão de Neil Armstrong pisando sobre a superfície lunar.Para quê? Só agora é que encontrei a resposta. Fizemos o pouso na Lua precisamente porque ele exigiu tanto esforço e tanta despesa. Foi isso o que prendeu nossa atenção tantos anos atrás, e era isso o que o tornava tão incrivelmente empolgante, pelo menos para quem acompanhava os acontecimentos da primeira fila.O sentido do pouso na Lua ficou claro no discurso histórico do presidente Kennedy em 1961 anunciando a meta de pousar na Lua.
"Optamos por ir à Lua nesta década", disse ele, fazendo referência também a outras formas de pesquisas espaciais, "não porque sejam fáceis, mas porque são difíceis -porque essa meta vai servir para organizar e medir as melhores de nossas energias e habilidades".
Compreendo hoje que o que emocionou a mim e incontáveis outras pessoas em todo o mundo, 40 anos atrás, foi apenas em parte o fato de que seres humanos haviam tocado um corpo celeste que durante muito tempo se pensou estar fora de nosso alcance. Foi que nós -seres humanos mais ou menos como você e eu - tínhamos projetado e construído máquinas capazes de nos fazer atravessar um vazio de 386 mil quilômetros e pousar, tão gentilmente quanto uma pluma, sobre a Lua, sobre o próprio mar da Tranquilidade.
O que impressionou especialmente a muitos de nós, jornalistas que cobríamos a missão, era que, até o dia do pouso lunar, o módulo de alunissagem nunca tinha sido testado. Era demasiado frágil para que se pudesse testá-lo na Terra, com sua gravidade maior. Ele teria caído. A cabine superior que levantou Armstrong e Buzz Aldrin da Lua era fraca demais para decolar na Terra. A primeira vez em que todo aquele aparato desajeitado seria testado seria com duas vidas humanas em risco.Como Kennedy previu, a missão foi difícil e, de fato, "organizou e mediu as melhores de nossas energias e habilidades".

O fim do espanto
Ficamos espantados e impressionados. E a mesma reação tiveram os soviéticos, o que, é claro, foi uma parte grande da razão que levou o governo americano a investir tanto esforço e dinheiro. O programa do ônibus espacial, que veio a seguir, nunca impressionou ninguém em grau comparável. Os foguetes eram menores. O destino era relativamente próximo -um lugar que já tínhamos visitado.E quase nunca ficou exatamente claro por que precisávamos enviar pessoas para apertar botões no espaço que poderiam ter sido pressionados por controle remoto desde Houston, com muitíssimo menos esforço e gasto.
É verdade que teria sido quase impossível consertar o telescópio espacial Hubble com missões robóticas. Mas poderíamos ter construído e lançado vários outros telescópios comparáveis ao Hubble, em foguetes não tripulados, pelo mesmo preço das missões do ônibus espacial, preço tão alto pelo fato de haver pessoas a bordo.
Qual foi, então, o objetivo do ônibus espacial? Construir uma estação espacial, disseram os responsáveis pela política espacial. E qual era, perguntamos então, o objetivo da estação espacial? Aprendermos a viver no espaço, disse a Nasa.Em outras palavras, vamos ao espaço para aprendermos a estar no espaço. Parece um tanto quanto sem sentido.Mas o fato é que, 40 anos atrás, havia o aspecto da aventura: os bravos astronautas, o foguete retumbante, a ousadia do pouso na Lua, o esforço e o gasto! São coisas que nunca vou esquecer. A cobertura das missões do programa Apollo foi um dos grandes marcos de minha carreira jornalística.
Durante anos depois disso eu saía de casa à noite, com meus dois filhos, para lhes apontar a Lua e lhes dizer que muito tempo atrás, numa era que, para eles, poderia muito bem ter sido pré-histórica, seres humanos voavam até a Lua e caminhavam em sua superfície -apenas para buscar pedras e trazê-las para casa. Eles são crianças da geração "Guerra nas Estrelas", e, para eles, aqueles pousos na Lua parecem bem sem sentido.

BOYCE RENSBERGER 66, cobriu o programa Apollo para os jornais "Detroit Free Press" e "The New York Times". Foi editor de Ciência do "Washington Post" e diretor das bolsas Knight de Jornalismo Científico no Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Tradução de Clara Allain.

[Folha de São Paulo, 19/07/2009]