Suécia corre o risco de repetir a crise dinamarquesa com as charges do profeta

David Ibison, em Estocolmo
O que começou como uma experiência artística inofensiva na Suécia corre o risco de levar a uma repetição da crise do ano passado na Dinamarca, depois da publicação de desenhos supostamente insultuosos ao profeta Maomé.
A crescente disputa na Suécia é sobre os "rondellhund" (cachorros de rotatória), que são esculturas amadoras de cães, geralmente bem-humoradas, colocadas em rotatórias de tráfego de todo o país como uma forma de expressão da contracultura.
Quando o artista sueco Lars Wilks decidiu desenhar uma imagem de "rondellhund" em que o cachorro tinha a cabeça de Maomé, provocou um debate nos jornais da Suécia sobre se as galerias de arte deveriam expor a imagem.
Ulf Johansson, editor-chefe do jornal regional "Nerikes Allehanda", da cidade de Orebro, a oeste de Estocolmo, considerou o debate digno de novas análises e publicou a imagem, juntamente com um artigo discutindo a liberdade de expressão.
No Irã, porém, as autoridades não acharam graça. Na segunda-feira elas convocaram o
Na terça-feira o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, acusou os "sionistas" de estar por trás do desenho sueco, porque "sua sobrevivência está na guerra". Ele pediu que os muçulmanos não reajam, pois "os sionistas ficarão desorientados se houver paz no mundo".
"Não é importante que os governos islâmicos se mobilizem", ele disse. "Quando um louco insulta um cientista, prova sua própria loucura". O desenho não será empunhado contra a população sueca, ele acrescentou.
O Ministério das Relações Exteriores da Suécia confirmou que havia recebido uma advertência, mas disse que não reagiu de qualquer outra maneira além de enfatizar que "a liberdade de expressão e a imprensa são vitais na Suécia".
Johansson recebeu e-mails ameaçadores e foi obrigado a adotar um guarda-costas. "Alguns diziam que eu queimaria no inferno", ele disse. A polícia reforçou a segurança em torno dos escritórios do jornal.
Muçulmanos moradores de Orebro realizaram uma pequena demonstração pacífica diante do jornal na última sexta-feira, mas um protesto muito maior está planejado para amanhã, segundo um porta-voz do Centro Cultural Islâmico em Orebro.
"Se você fizesse uma imagem do papa como um cachorro, as pessoas pensariam que o papa não é bom", ele disse. "Então por que é certo ter uma imagem do profeta como essa? Agora cabe aos muçulmanos de outras cidades agirem".

O porta-voz disse que cerca de 800 pessoas são esperadas na demonstração de amanhã e acrescentou que os centros islâmicos de toda a Suécia estão sendo contatados e convidados a aderir.
Johansson disse que estava simplesmente tentando provocar um debate. "Eu achei que era uma boa oportunidade de levantar a questão da liberdade de religião e de expressão na Suécia - não apenas para os suecos, mas para os muçulmanos que vivem no país", ele disse ao "Financial Times". "Eles têm o direito de protestar aqui. Isso é o que realmente importa".

A reação do público foi mista. Um leitor que escreveu para o site de um jornal captou o clima: "Acredito que é válido defender a liberdade de expressão, mas também acho que há limites, mesmo na Suécia, para o que a mídia deve publicar em nome da liberdade de expressão".
No início de 2006, charges do profeta Maomé foram publicadas em jornais da Dinamarca, provocando violentos protestos de muçulmanos em todo o mundo e o boicote a produtos dinamarqueses em alguns países.

Especialistas em segurança advertiram que a Internet poderá ser usada para disseminar os protestos suecos nas próximas semanas. A rede mundial teve um papel chave para atiçar o ressentimento do mundo muçulmano durante a crise dinamarquesa.
A Suécia é um dos países mais conectados à Internet no mundo, e o número de muçulmanos no país cresceu rapidamente nos últimos anos sob uma política de imigração relativamente liberal.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

[Financial Times, 30/08/2007]

Gorila ancestral recua origem humana

Fóssil etíope tem 10 milhões de anos e contraria evidências genéticas de separação recente entre homem e chimpanzé
Dentes da nova espécie foram achados por grupo da Etiópia e do Japão e são nova prova da origem dos grandes primatas na África

CLAUDIO ANGELO, EDITOR DE CIÊNCIA
O lugar parecia pouco promissor para uma caça ao tesouro: uma colina formada por sedimentos soltos numa região árida e de difícil acesso na Etiópia central. A formação Chorora, como é conhecida, tem poucos fósseis, a maioria em péssimo estado de preservação. Até agora, não havia revelado nada à ciência. Mas essa história mudou, graças à teimosia de um grupo de pesquisadores etíopes e japoneses. Eles encontraram ali os restos fossilizados de uma nova espécie de macaco, que pode ajudar a esclarecer a própria origem dos humanos.
O animal, batizado Chororapithecus abyssinicus (ou macaco abissínio de Chorora) viveu há cerca de 10 milhões de anos e está sendo considerado o mais velho parente dos gorilas.
Acontece que, até agora, vários paleontólogos e geneticistas consideravam que os gorilas só tivessem se separado dos chimpanzés na evolução bem depois disso. Como foi após essa separação que os chimpanzés se separaram dos hominídeos, a descoberta do gorila pré-histórico etíope implica que a família humana é mais antiga do que se supunha -pode chegar a 9 milhões de anos.
"O material é muito esparso, mas há uma possibilidade intrigante de que ele represente o clado [família] dos gorilas depois que eles se separaram do ancestral comum entre humanos e chimpanzés", explica o antropólogo David Pilbeam, da Universidade Harvard (EUA).
"Isso só poderia ser o caso se o ancestral comum entre os grandes macacos africanos e os seres humanos tivesse mais de 10 milhões de anos, o que significaria que a divergência entre humanos e chimpanzés aconteceu há mais de 8 milhões de anos", continua o cientista.
O galho que faltavaO grupo liderado por Gen Suwa, da Universidade de Tóquio, e Berhane Asfaw, do Rift Valley Research Service, em Adis Abeba, encontrou os fósseis -um conjunto de meros oito dentes - depois de andar cem quilômetros pela região de Chorora sem achar nada de especial.
"Era o nosso último dia de levantamentos de campo em fevereiro de 2006. Nosso assistente de campo, Kampiro, encontrou o primeiro dente. Ele o apanhou e mostrou para mim, e eu soube que aquilo era algo novo -o primeiro grande primata fóssil da Etiópia", disse Asfaw num comunicado.
A empolgação com o achado se justifica: apesar de vários hominídeos fossilizados já terem sido achados na África (inclusive na Etiópia), raríssimos são fósseis de macacos. E é neles que está a chave para entender a seqüência evolutiva que deu origem ao Homo sapiens.A ausência de fósseis de ancestrais de gorilas e chimpanzés para comparar com os de hominídeos tem feito os cientistas se fiarem em dados obtidos por DNA para datar a origem de cada grupo. O Chororapithecus é uma das primeiras "balizas" para as datações de DNA. E mostra que elas possivelmente estão erradas.Suwa e seus colegas afirmam, em estudo na revista "Nature" de hoje, que estão diante de um animal muito parecido com os gorilas. Os dentes são adaptados a uma dieta de vegetais fibrosos, como a dos gorilas.
Analisando-os, os cientistas concluíram que a linhagem dos gorilas já estava bem estabelecida há 10 milhões de anos. Portanto, a divergência entre ela e o ramo dos humanos e dos chimpanzés seria mais antiga do que o DNA indica.
A falta de fósseis de grandes macacos na África também levou alguns cientistas a propor que os ancestrais comuns de gorilas, seres humanos e chimpanzés não evoluíram na África, mas sim foram imigrantes da Eurásia. "O Chororapithecus sugere, mais uma vez, que a África é o local de origem tanto dos humanos quanto dos grandes macacos modernos", afirmam Suwa e seus colegas.

[Folha de São Paulo, 23/08/2007]

Seria Tintin racista?

História da mais famosa personagem de Hergé que se passa no Congo é vista como preconceituosa
Por Izabela Moi

No mesmo ano em que o centenário do artista belga Hergé (1907-1983) é celebrado, “Tintin”, o personagem que o fez famoso no mundo inteiro, é acusado de racista e se torna foco de debate nos Estados Unidos, Europa, Austrália e África do Sul.
No final de julho, o segundo exemplar da série de 23 aventuras do jovem jornalista ao redor do mundo, “Tintin no Congo”, saiu das prateleiras da seção de infantis e migrou para a área destinada a adultos nas livrarias depois que a obra foi acusada pela Comissão pela Igualdade Racial (CRE) do Reino Unido. O volume, de 1931, conta a história na então colônia belga em fim dos anos 20. E ali, claro, o personagem central, loiro de olhos azuis, vindo da metrópole, é tratado como rei pelos congoleses - estes retratados, segundo o comunicado oficial da CRE, como “quase macacos, meio selvagens, falando como imbecis”.
A origem da reação da organização governamental foi uma carta escrita pelo advogado inglês David Enright. Em meados do mesmo mês, ao entrar numa das livrarias da rede, em Londres, Enright sentiu seus filhos de 2 e 7 anos ameaçados pela imagem dos nativos mostrados ali. A esposa de Enright é negra, nascida no continente africano, e seus filhos são, portanto, também negros.
O Congo Belga tornou-se independente em 1960, mas logo após a Segunda Guerra, em 1946, o próprio Hergé fez uma revisão do volume, considerando que continha uma visão por demais “colonialista e paternalista”. O artista retirou, por exemplo, uma aula que Tintin dava aos congoleses – na primeira edição, de geografia, sobre a “sua pátria, a Bélgica”, substituindo-a então por uma de matemática.
Após o pronunciamento da CRE, a editora sul-africana Human & Rousseau, a maior do país , que distribui livros por todo o continente, declarou publicamente que não vai traduzir o volume, por considerá-lo ofensivo. A rede de livrarias Borders mudou os livros de lugar, que já vêm com um prefácio explicativo, definitivamente para a seção de adultos também em suas lojas nos Estados Unodos e na Austrália (além do Reino Unido). A cadeia de livrarias WH Smith fez o mesmo.
No início de agosto, o debate cruzou as fronteiras da língua inglesa e veio se instalar no universo francófono. O congolês Bienvenu Mbutu Mondondo, 38, estudante de ciência política na Bélgica, deu entrada em um processo contra a empresa Moulinsart (que detém os direitos mundiais de comercialização) para impedir a circulação de “Tintin no Congo”.
A diferença aqui é que o debate tem outro tom. Na Bélgica, e principalmente na França, onde o personagem é quase tão adorado quanto Asterix e Obelix, as opiniões discutem o fato como censura anacrônica, ditadura do politicamente correto, criminalização de idéias sem referência ao contexto, ofensa à liberdade artística.
O jornalista e crítico literário Pierre Assouline, por exemplo, cujo blog sobre literatura no “Le Monde” é um dos mais populares na área, e também biógrafo do artista belga, acredita que o autor é fruto (e quase vítima) de sua época. Seu principal argumento é que ninguém escapou das “caricaturas” de Hergé, de comunistas a judeus. Por que os negros escapariam?
O CRAN, organização não-governamental equivalente ao CRE, mas francês, sabe que o debate tem de ser levado ainda com mais cuidado por aqui. Patrick Lozès, presidente do conselho, disse à EntreLivros que preparam um pronunciamento para o início de setembro, pois acredita que esta questão tem de ser compreendida por um público maior que aqueles que se sentem pessoalmente ofendidos pelo quadrinho.
O escritor alemão, e premiado pelo Nobel, Gunter Grass não escapou do debate sobre seu passado nazista, com ou sem contexto. Por que Hergé escaparia?


[Do site da revista EntreLivros]

Papéis revelam acordos da Guerra Fria

Documentos a que o ‘Estado’ teve acesso detalham planos dos EUA e do Brasil para risco de ataque comunista
Marcelo de Moraes

Durante o período da Guerra Fria, o Brasil assinou vários acordos secretos com os Estados Unidos para que os dois países agissem em conjunto contra um eventual ataque dos países comunistas, liderados pela antiga União Soviética. Documentos inéditos e secretos do Conselho de Segurança Nacional, guardados na sede do Arquivo Nacional, em Brasília, mostram que no período entre 1953 e 1962 os governos brasileiro e americano e seus respectivos comandos militares acertaram estratégias de operações comuns para proteger seus territórios no caso de uma guerra.
Os documentos, aos quais o Estado teve acesso, não citam, mas fica subentendido que outros países das Américas também participavam dessa ampla cooperação continental contra o comunismo - que, obviamente, excluía Cuba, já alinhada com os soviéticos.
Depois de entrar na Segunda Guerra Mundial ao lado dos Estados Unidos, como parte das tropas aliadas, o governo decidiu manter e ampliar o acordo de cooperação militar. Os tratados diplomáticos formais de cooperação e ajuda mútua começaram a se tornar mais detalhados e sigilosos a partir da metade dos anos 50, justamente quando a Guerra Fria entre americanos e soviéticos se acirrou.
Nesse período, militares brasileiros e americanos aprovaram o “Plano Militar Geral para a defesa do continente americano contra agressão do Bloco Comunista Soviético Comunista”. O documento, catalogado pelo Conselho de Segurança Nacional como C-0143 JID-1957, foi feito em 1957 e estabelece as ações que os países deveriam adotar em caso de conflito.
O documento lista como “áreas de importância estratégica do continente americano”, entre outras, as regiões do Estuário do Amazonas, Saliente Nordeste do Brasil - a parte mais ao leste da região - e o eixo Rio de Janeiro-São Paulo-Belo Horizonte. Na estratégia de defesa estabelecida com os EUA, essas áreas deveriam receber proteção especial por serem consideradas de vital importância em um cenário de guerra.
As duas primeiras áreas eram consideradas pontos que poderiam garantir hegemonia tática territorial e marítima contra os adversários, se mantidas sob controle. Já as cidades do Rio, de São Paulo e Belo Horizonte foram apontadas como importantes por conta de sua produção industrial, necessária para garantir a infra-estrutura essencial.

COMUNICAÇÃO
Outra preocupação estabelecida no acordo de 1957 foi definir as linhas de comunicação marítimas que deveriam ser protegidas. Quatro áreas dizem respeito diretamente ao Brasil. 1) Leste dos Estados Unidos-Saliente Nordeste do Brasil; 2) Trinidad Tobago-Saliente Nordeste do Brasil; 3) Saliente Nordeste do Brasil-Rio da Prata; 4) Rio de Janeiro-Rio da Prata.
Foram também considerados locais estratégicos que o Brasil deveria defender três áreas focais marítimas: 1) Área do Saliente Nordeste do Brasil; 2) Área Rio de Janeiro-Santos; 3) Área do Rio da Prata.
Cinco anos depois, o plano foi atualizado, como mostra o documento C-0266 ou C-0143/1 - JID 1962 do Conselho de Segurança Nacional, e ampliou a chamada área estratégica do Brasil, acrescentando Fernando de Noronha ao bloco do Saliente do Nordeste e incluindo Salvador, na costa leste, como novo ponto de interesse.
O texto, classificado como secreto pelo governo brasileiro, enumera as ações que deveriam ser adotadas antes mesmo da agressão por parte do bloco comunista. Um dos pontos sugere “estabelecer e desenvolver entre os Estados americanos, em acordo mútuo, procedimentos e técnicas para a luta contra a subversão e suas atividades afins, incluindo, particularmente, a luta contra a guerra de guerrilhas”.
Outro ponto é “entrar em acordo sobre o controle coordenado de fronteiras, portos e aeroportos e sobre a vigilância coordenada de litorais, quando assim considerarem convenientes os países interessados, para evitar o tráfego clandestino de agentes perturbadores e de materiais ilícitos”.

INFILTRAÇÃO
Os países também decidiram “repelir os efeitos da ação psicológica e impedir a infiltração de seus elementos, especialmente em posições de onde possam influir de maneira adversa sobre a solidariedade continental”.
Existia até a preocupação de se preparar contra eventuais ataques nucleares, um dos maiores temores da Guerra Fria. O documento ressalta que se deveria: “Planejar, organizar e instruir a defesa civil de cada Estado americano contra ataques com armas nucleares, convencionais, biológicas ou químicas, contemplando, quando assim se justifique, a cooperação entre os mesmos para o uso mútuo de seus sistemas de alarme, saneamento, transportes, comunicações e outros sistemas considerados úteis para esses fins.”
O acordo também dá o roteiro para as operações que devem ser feitas “no início e durante as hostilidades”. O documento diz que será indispensável a adoção da “defesa, por parte de cada Estado, do território nacional e das águas marítimas e espaço aéreo correspondentes, cujo controle seja essencial para a segurança individual de cada nação”.
Outra medida pretendida era a adoção de “ação individual ou coletiva - se assim se chegar a entrar em acordo - para impedir ao Bloco Comunista a utilização, desde o primeiro momento, de territórios dentro da Zona de Segurança dos quais possa apoiar ou realizar suas possibilidades depois da agressão”. Ficava acertada, ainda, a “proteção coletiva do tráfego marítimo interamericano” e a “proteção individual ou coletiva, segundo caiba, das áreas de importância estratégica”.

[O Estado de São Paulo, 19/08/2007]

O momento Piauí

Geografia do imaginário nacional mostra que o Brasil briga com o passado em nome de uma modernidade excludente
Carlos Alberto Dória

Ê, bumba-yê-yê-boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê
É a mesma dança, meu boi
(“Geléia Geral”, Torquato Neto)

Estranha forma de vida a do Piauí. Um Estado sempre esquecido da nação, apesar de ser o terceiro maior do Nordeste em tamanho (só perde para Bahia e Maranhão) e possuir uma população de aproximadamente três milhões de pessoas, tendo seu território dividido entre o semi-árido e a pré-Amazônia. De repente, sem que haja feito nada em especial, o Estado envolve-se num bate-boca momentoso da política nacional.Foi o presidente da Phillips, Paulo Zottolo, líder dos “cansados”, quem começou. Sem mais nem menos, disse: “Não se pode pensar que o país é um Piauí, no sentido de que tanto faz quanto tanto fez. Se o Piauí deixar de existir, ninguém vai ficar chateado".
A frase infeliz só pode se explicar pelo fato de sua empresa, a Phillips, vender poucos gadjets por lá. Afinal, para ele, só deve existir o mundo dos shopping-centers e das lojas de varejo de eletrodomésticos. Mas foi igualmente surpreendente a reação do governador do Estado, Wellington Dias. Chamou a atenção para a beleza natural, para o potencial turístico e para o fato de que o Estado é um grande produtor de mel. O senador Mão Santa, por sua vez, lembrou que Teresina é a “primeira cidade planejada do Brasil” ,Claudio Lembo, querendo tirar a sua casquinha paulista, disse que "só fala mal do Piauí quem não conhece a história do Brasil”: o homem americano nasceu no Piauí e bandeirantes paulistas colonizaram o Estado. Desculpando-se pela ignorância, o homem da Phillips remendou: “O Piauí hoje é um Estado pouco conhecido no Brasil. As pessoas não sabem o que tem no Piauí”.É difícil saber em que o “homem americano” de milhares de anos atrás influencia o Piauí do presente, ou porque uma “cidade planejada” é superior às mal traçadas ruas das caóticas cidades coloniais; mas certamente é fácil reconhecer que vivemos o “momento Piauí” -saibamos ou não o que tem dentro dele.

O pé de galinha
Quando a senhora destampa a panela de barro à mesa, exibindo com orgulho a galinha de capoeira (“caipira”) ao molho, o aroma invade o ambiente. Em meio ao caldo amarelado e os pedaços de carne destaca-se, como um monumento, o pé e os três dedos tesos do animal -último testemunho de que andou a ciscar por aquele sertão.Imagino o desmaio de uma mocinha qualquer, acostumada a se alimentar nos shoppings de São Paulo, almejados pela Phillips, ao ver o conteúdo desta panela. Felizmente não há ninguém assim à mesa, naquela distante Picos, cidade da chapada do Araripe, Piauí.Gente afável e dinâmica, sem a malemolência que se atribui ao nordestino litorâneo, e dona de uma culinária surpreendentemente delicada, com sua profusão de refogados e ensopados: de frango, carneiro, cabrito, galinha d´angola (“capote”, dizem), pirões -tudo com o uso moderado da pimenta que vemos em profusão no litoral.
O mais é arroz, cuscuz de milho, mandioca. São as miuças, e não o boi, que avultam na panela. Coisa de gente pobre, de vida simples, e se vê que por ali andou um antigo Portugal a deitar raízes, longe do padrão colonial que a máquina mercante do açúcar impôs.

A ‘”civilização do couro”
Diferente da civilização do açúcar, o Piauí, como todo o sertão pecuário, não teve historiador que lhe contasse a história como história “nacional”. Antes de Euclides da Cunha, a percepção do sertão inexistia. Ficou à margem de tudo. Sempre igual, “o ano que vem e o mês que foi” da imagem poética do célebre piauiense Torquato Neto. Mas um problema historiográfico é sempre um problema político, como se vê agora.Somente o historiador Capistrano de Abreu foi sensível a essa questão. Observando a historiografia nacional, centrada nos feitos “heróicos” de uma elite branca aboletada no litoral, sentiu a falta “do povo” e se propôs a traçá-la, especialmente escrevendo uma “história do sertão” -projeto que, infelizmente, nunca levou ao fim.
Esta “história” teria umas 400 páginas e nos relataria os séculos 16 e 17 a partir da conquista e do povoamento da região entre o São Francisco e o Parnaíba. Limitou-se a escrever os “Os Caminhos Antigos e o Povoamento do Brasil”, publicado a partir de 1899, explorando a tese do Frei Vicente do Salvador de que “é preciso penetrar o Oeste, deixar de ser caranguejo, apenas arranhando praias, a oposição do bandeirismo ao transoceanismo”.
Capistrano descreveu pela primeira vez, com base em documentos coloniais, como se conquistou o sertão, a partir de São Paulo e da Bahia. Este foi ocupado para produzir gado para os engenhos, por obra da famosa “casa da Torre” (localizada onde hoje é a “praia do Forte”, no litoral norte de Salvador), da família Garcia d´Ávila, fundando-se o que ele chamou de “civilização do couro”.O Piauí era um grande “fundo de pastos” onde se criava solto o boi, quase sem dono, como um estoque regulador de toda a pecuária do Nordeste (“O meu boi morreu/ o que será de mim?/ Manda buscar outro maninho, lá no Piauí”...).
Escreve Capistrano de Abreu: “De couro era a porta das cabanas, o rude leito aplicado ao chão duro, e mais tarde a cama para os partos; de couro todas as cordas, a borracha para carregar água; o mocó ou alforge para levar comida, a mala para guardar roupa, mochila para milhar cavalo, a peia para prendê-lo em viagem, as bainhas de faca, as bruacas e surrões, a roupa de entrar no mato, os bangüês para curtume ou para apurar sal; para os açudes, o material de aterro era levado em couros puxados por juntas de bois que calcavam a terra com seu peso; em couro pisava-se tabaco para o nariz”1.A pecuária deixa poucos traços civilizatórios. Mas foi suficientemente forte para atrair, para o interior da província, em meados do século 19 (1852), a capital do Piauí. Restou o litoral que, hoje, é uma extensão do turismo praieiro mais típico do Ceará e Maranhão.
O litoral do Piauí é um enclave nessa indústria turística dos estados vizinhos. Isso, cruelmente, dá razão aos seus detratores que se arvoram juízes do espaço nacional: afinal, há praias mais próximas do mercado do Sudeste, e o país todo é “abençoado por Deus e bonito por natureza”.

O “dilema Piauí”
Ora, a “civilização” interior a que pertence o Piauí é o que de mais original o Brasil produziu, além da sociedade indianizada do Pará, onde, até avançado o século 19, falou-se a “língua geral” tupinizada que os jesuítas sistematizaram e ensinaram.
Mas não é fácil valorizar a história local quando não se está convicto de que ela expressa a modernidade. Ou, em outras palavras, como se pode entrar na modernidade sem tirar o pé do passado? O sucessor do couro sertanejo é o plástico, não as bolsas Hermès.
É inegável que o título da nova revista “Piauí” também expressa a consciência desse deslocamento. A declaração do presidente da Phillips explicitou como Piauí vem se tornando uma palavra-chave para os cansados do Brasil já há algum tempo, ao menos desde o lançamento da revista carioca. Há, no título da publicação, uma antinomia, talvez involuntária, intuitiva, como um ponto de fuga da pintura nacional para os bem-pensantes. Ponto de fuga no sentido de um lugar ideal, para onde convergem as linhas imaginárias da cena, pois para eles o Piauí real simplesmente não existe.

Almas penadas do sertão
Viajando pelo sertão, vê-se a encruzilhada dos “Piauís” reais. Extensas e monótonas retas do traçado das estradas sertanejas, no sertão da chapada do Araripe, em direção a Picos, só são perturbadas por pequenas manadas de jegues que, despreocupados, atravessam o asfalto. São animais sem dono, abandonados depois que se tornaram inúteis pela adoção das motocicletas com principal meio de transporte sertanejo. Tange-se o boi de motocicleta e o jegue vale tanto quanto um cão abandonado.São grupos de 10, 20, até 40 animais a vagar sem dono. De noite, deitam-se sobre o asfalto para absorver o calor, provocando acidentes horríveis. Vez por outra, os prefeitos recolhem todos os jegues em caminhões, libertando-os 100 ou 200 km adiante. Os jegues são as novas almas penadas do sertão. Expressam o sem-lugar da civilização do couro na modernidade.
Aqui e ali esse sertão vai sendo penetrado por ela. Nos restaurantes de Juazeiro do Norte (CE), vizinho ao Piauí, e distante do litoral, os pratos típicos já escorregaram para o pé do cardápio, abrindo espaço para os camarões, a lagosta a Termidor, o bife “ala parmejana” (sic), mostrando que o turista traz consigo, na bagagem, o germe da desnaturação.

A viagem anônima do Piauí
O Piauí é um grande produtor de mel no Brasil. O Sebrae em breve inaugurará uma fábrica de beneficiamento de mel produzido de modo artesanal, por dezenas de cooperativas de apicultores.A diversidade da flora apícola é surpreendente. O mel derivado de algumas plantas do sertão é de delicadeza e aroma sem igual. Os alemães, que já se deram conta disso, importam esse mel das várias floradas, misturando-os na Alemanha com outros e fazendo um blend apreciado no mercado europeu. O Piauí viaja dentro do mundo. Anônimo.
O Brasil, ao contrário, não conhece esse mel. Ele é vendido genericamente, como commodity, concorrendo em desvantagem com o preço do mel que vem da Argentina e da China, os maiores produtores mundiais.
No Piauí também se produz caprinos e ovinos a partir de raças locais, distintas das demais, e que ninguém fora de lá conhece em sua especificidade. Há sinais de que cordeiros uruguaios já chegam fatiados e embalados pelo sertão. Afinal, como ser “autêntico” numa linguagem moderna, gerada no terreno do marketing, que supõe grandes interesses articulados de forma transnacional?
Mas o Piauí não é tão distante para o movimento expansionista do capital; afinal, Teresina vive um boom imobiliário, e já é possível encontrar apartamentos de mais de US$ 400 mil, evidenciando o movimento de concentração de renda que antes não havia por lá. Também a indústria da saúde já se instalou de modo espetacular na cidade, ocupando mais de dez quarteirões numa concentração dificilmente vista em outra parte do país.
Ciclovias modernas acompanham as principais avenidas da cidade. Na antiga casa do barão de Gurgéia - sobre quem poucos ouviram falar -, hoje Casa de Cultura de Teresina, espectros do passado monumentalizam o pátio. Entre estátuas de governadores, burocratas de várias épocas, juristas, um Torquato Neto enfatiotado como se saísse de uma audiência no paço. É a geléia geral brasileira.
Capistrano de Abreu não só ficou a nos dever a obra sobre o sertão, a inserção do povo pobre na história, como anteviu na historiografia oficial das grandes cenas da corte o destino miúdo que necessariamente ficaria para trás. A civilização do couro não deita “civilização”. O carrossel dos shopping-centers não mostra as faces do país.Pendurado no ar, é esse modo avesso de ser moderno que faz do Piauí um ponto de fuga da pintura nacional, a expressão de uma modernidade atolada num passado que ninguém se decidiu a cavalgar com determinação. Mais do que um sem-lugar no mapa ou uma paisagem “a descobrir”, trata-se de um vazio na consciência política e na matriz cultural da nação.
“Piauí” é a última palavra que embaralha o imaginário nacional. É a fronteira de nós mesmos. Um pé de frango, com estranhamento, nos olha de dentro da panela à qual deu sabor.

Carlos Alberto Dória é sociólogo, doutor em sociologia no IFCH-Unicamp

[Trópico]

As forças que movem a história estão de volta

Nacionalismo e ideologias sepultam idéia de que mundo havia se tornado diferente
ROBERT KAGAN
Os anos imediatamente seguintes ao final da Guerra Fria proporcionaram um vislumbre tentador de uma nova espécie de ordem internacional - uma em que os países cresceriam juntos ou desapareceriam por completo, os conflitos ideológicos se desfariam e as culturas se misturariam, por meio de comércio e comunicações cada vez mais livres.Era o fim da concorrência internacional, o fim da geopolítica, o fim da história. O mundo democrático liberal queria acreditar que a conclusão da Guerra Fria não estava pondo fim apenas a um conflito estratégico e ideológico, mas a todos os conflitos estratégicos e ideológicos. Na década de 1990, sob a égide de George H. W. Bush e Bill Clinton, a estratégia norte-americana visava erguer uma ordem pós-Guerra Fria em torno dos mercados em expansão, democracia e instituições -a encarnação triunfal da visão liberal da ordem internacional.
Mas tudo isso foi uma certa miragem. Hoje sabemos que tanto o nacionalismo quanto a ideologia já estavam dando a volta por cima nos próprios anos 1990. A Rússia rapidamente perdeu seu desejo de fazer parte do Ocidente liberal. A China embarcou num rumo de ambição e poderio militar crescentes. As forças do islã radical já tinham lançado sua jihad, a globalização já provocara uma reação contrária em todo o mundo, e a máquina tremenda da democracia já emperrara e começara a se desequilibrar de maneira precária. No entanto, até hoje muitos ainda se apegam à visão de "um mundo transformado".
O mundo não se transformou. As nações continuam tão fortes quanto nunca, e o mesmo se aplica às ambições nacionalistas, às paixões e à competição entre as nações, que sempre moldaram a história. É verdade que o mundo ainda é "unipolar" e que os EUA ainda são a única superpotência. Mas a competição internacional entre grandes potências voltou à cena, com EUA, Rússia, China, Europa, Japão, Índia, Irã e outros disputando a hegemonia regional. As lutas por poder e influência no mundo mais uma vez se tornaram fatores chaves do cenário internacional.Ideologicamente, vivemos um tempo não de convergência, mas de divergência. A competição entre liberalismo e autocracia ressurgiu, com os países do mundo cada vez mais se alinhando ideologicamente, como no passado. Finalmente, existe uma divisão entre modernidade e tradição, a luta violenta de fundamentalistas islâmicos contra as potências modernas e as culturas seculares que, na visão deles, contaminaram o mundo islâmico.

Bush não é exceção
Muitos ainda preferem acreditar que o mundo está em tumulto não por estar vivendo um tumulto, mas porque o presidente Bush o fez assim, ao destruir a nova era repleta de esperança. E, quando Bush deixar o poder, acreditam, o mundo poderá voltar a ser como era.
A primeira ilusão, porém, é que Bush tenha de fato mudado qualquer coisa. Os historiadores vão debater por muito tempo a decisão de travar a guerra no Iraque, mas o menos provável é que concluam que a intervenção tenha sido algo que destoou muito do que é habitual para os EUA. Desde o final da 2ª Guerra Mundial, pelo menos, os presidentes americanos têm seguido uma abordagem bastante constante em relação ao mundo. Eles têm visto os EUA como "a locomotiva que puxa a humanidade", parafraseando Dean Acheson.
Desde 1945, os EUA têm insistido em obter e manter a supremacia militar -uma "preponderância de poder no mundo"-, em lugar de um equilíbrio de poder com outros países. Eles vêm operando com base na convicção ideológica de que a democracia liberal é a única forma de governo legítima e que outras formas não apenas são ilegítimas, como também transitórias.
Quando as pessoas falam de uma doutrina Bush, geralmente se referem a três conjuntos de princípios: a idéia da ação militar preventiva; a promoção da democracia e das "mudanças de regime", e uma diplomacia que tende ao "unilateralismo" - a disposição em agir sem a sanção de organismos internacionais como o Conselho de Segurança da ONU ou a aprovação unânime dos aliados.
Mas essas características da política externa americana não constituem reflexo de um homem, um partido ou um círculo de pensadores. Elas nascem da experiência histórica do país. Elas se fundamentam, por um lado, em crenças e ambições antigas e, por outro lado, no poder. Enquanto os americanos continuarem a eleger líderes que crêem que é papel dos Estados Unidos melhorar o mundo, é pouco provável que se abstenham de usar qualquer dessas ferramentas. E, enquanto o poderio americano em todas as suas formas for suficiente para moldar o comportamento de outros, é pouco provável que a direção ampla da política externa americana se modifique.

ROBERT KAGAN é autor de "Dangerous Nation" e editor colaborador da "Weekly Standard".

[Folha de São Paulo, 19/08/2007]

As muitas faces de Jango

Livro sobre o presidente deposto pelo Golpe de 64 traz histórias de interesse humano e detalhes sobre a relação com o PCB
OSCAR PILAGALLO

Angela de Castro Gomes e Jorge Ferreira reclamam, em "Jango - As Múltiplas Faces" (ed. FGV, 272 págs., R$ 28), que o ex-presidente João Goulart (1918-1976) é visto pela história em chave negativa.
Marco Antonio Villa, em "Jango - Um Perfil" (ed. Globo) reclamava do contrário: que o presidente deposto pelo regime militar em 1964 tornara-se um herói para gerações posteriores. A conclusão se impõe: o maior herdeiro do getulismo continua polêmico.
Os autores de "As Múltiplas Faces" procuram corrigir o que julgam ser uma visão distorcida da história.
O livro não chega a ser uma defesa aberta de Goulart porque, baseado em depoimentos orais, abriga opiniões de críticos do ex-presidente. Mas a balança pende nitidamente para o lado pró-Jango. Entre os mais de 30 depoimentos, há bem mais familiares, parentes e correligionários do que adversários políticos.
Intercalando falas e documentos, o livro avança em ordem cronológica, da infância ao exílio. Não há novidade no trabalho: os documentos são conhecidos e os depoimentos estão incorporados, em sua grande maioria, à síntese do período.

Contornos de personagem
A opção de dar voz a pessoas próximas ao ex-presidente, no entanto, funciona em termos narrativos. Longe da análise fria, o político gaúcho ganha contornos de personagem.
A viúva, Maria Thereza, por exemplo, conta que soube do pedido de casamento do então candidato a vice-presidente de Juscelino Kubitschek por um intermediário que procurou seu pai. "Coisa bem de gaúcho", comenta. Ela só aceitou após muita insistência e acabaria casando por procuração com um irmão de Jango, pois um dilúvio impediu que seu avião pousasse em sua natal São Borja.
Há várias histórias de interesse humano, como a do craque que, tendo jogado no juvenil do Internacional, abandonou o gramado devido a uma enfermidade no joelho esquerdo que o faria mancar pelo resto da vida. O foco, porém, é a política.
A relação de Jango com os comunistas é reveladora do personagem. Jango não era comunista, como acusavam os conservadores. Era um rico fazendeiro, e não estava em seus planos de reforma agrária abrir mão de seu patrimônio. Como se deu, então, a aproximação com o PCB?
"Juntou a fome com a vontade de comer", explica o trabalhista Hugo de Faria. A coincidência a que se refere é que, no início dos anos 50, após um período de radicalização, o PCB decidiu fazer política por meio dos sindicatos quando Jango, interessado em ampliar sua base de sustentação, assumia o Ministério do Trabalho.
Outra passagem bem-explorada no livro é a crise da posse, em 1961, depois da renúncia de Jânio Quadros. O melhor depoimento sobre o episódio é o do general José Machado Lopes, comandante do 3º Exército, cuja atuação foi determinante para impor a legalidade.
Não se pode, no entanto, depreender daí que o militar tivesse simpatia por Jango. "Tomei a decisão de apoiar a posse para evitar um mal maior", afirma ele, referindo-se à possibilidade da eclosão de uma revolução.
O general foi duro para conter seus pares ou, melhor, os "três patetas", como chamava os ministros militares que se opunham à posse. O ministro da Guerra chegou a nomear Cordeiro de Farias para substituir o general. O militar mandou um telegrama a Machado Lopes: "Participo prezado amigo fui nomeado comandante do Terceiro Exército". Machado Lopes respondeu: "Agradeço participação prezado amigo. Se chegar aqui será preso".
Jango toma posse enfraquecido num improvisado regime parlamentarista, enfrenta a oposição conservadora, cede aos sindicalistas, é deposto. Tudo isso é história, à qual o livro pouco acrescenta.
Há detalhes pitorescos, como o relatado por um capataz de Jango, que levava dinheiro -"dúzias de milhões"- no exílio uruguaio em bolsas de estopa sujas de graxa "e não dava muita bola para a fiscalização".
As boas histórias, porém, não contribuem para mudar a percepção que se tem de Jango. O personagem continua polêmico.

[Folha de São Paulo, 19/08/2007]

Elvis Presley está vivo e mora em Buenos Aires

Elvis Presley foi levado para a Argentina pelo FBI

O mito de Elvis Presley, alimentado por dezenas de vozes e suposições sobre uma "segunda vida" em qualquer lugar do mundo, foi retomado devido à proximidade do aniversário de 30 anos de sua morte, em 16 de agosto. E agora há quem jure que o rei do rock n' roll esteja vivendo com um falso nome na Argentina. A última edição da versão latino-americana da revista "Rolling Stone" reabriu o caso, alegando que há em Buenos Aires anúncios pelas ruas, colados nos postes de luz no estilo "Procura-se", com foto da estrela do rock.
O anúncio mostra Elvis como estaria hoje, com 72 anos, convidando qualquer um que tenha informações sobre ele para registrá-las numa página na internet.
Segundo a "Rolling Stone", Jorge Daniel Garcia, que em 1977 era soldado, conta que na base militar de Palomar (província de Buenos Aires), chegou de Memphis, nos Estados Unidos, um Boeing 747. Era o primeiro avião daquele tipo que aterrissava no país e havia uma limusine à espera de um homem.
A história contada pela revista é a de que, após a "morte oficial" de Elvis, um homem chamado John Burrows, com uma extraordinária semelhança com o cantor norte-americano, foi notado enquanto adquiria um bilhete aéreo para Buenos Aires. Elvis, dizem, usava aquele pseudônimo para viajar, e o teria usado para uma viagem ao Departamento Federal de Investigação (FBI) de Washington.
Foi naquela ocasião que, de acordo com diversas testemunhas, Presley encontrou em segredo o ex-presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, informando-o a respeito da conduta ilegal de outras celebridades da época e oferecendo os próprios serviços na luta contra as drogas.
Após anos de colaboração com os serviços secretos, Elvis foi "desaparecido" para salvar sua vida e transferido para a Argentina.
Segundo os que acreditam nessa tese, Elvis não estaria enterrado nos jardins de Graceland, sua casa em Memphis que se tornou um verdadeiro santuário do rock, como declarado oficialmente. Ele seria, na verdade, o protagonista de um dos programas para a proteção de testemunhas mais elaborados de todos os tempos.



Elvis: Biografia

Elvis Aaron Presley, nas circunstâncias mais humildes, nasceu para Vernon e Gladys Presley em uma casa de dois quartos em Tupelo, Mississipi no dia 8 de janeiro de 1935. Seu irmão gêmeo, Jessie Garon, nasceu morto, e Elvis cresceu como filho único. Ele e seus pais se mudaram para Memphis, Tennessee em 1948, e Elvis lá se formou na Humes High School em 1953.
As influências musicais de Elvis eram a música pop e country da época, a música gospel que ele ouvia na igreja e nas noites de cantoria que ele frequentava, e o R&B que ele absorveu na histórica Beale Street quando adolescente em Memphis. Em 1954, ele iniciou sua carreira musical no lendário selo Sun Records em Memphis. No fim de 1955, seu contrato foi vendido para RCA Victor. Em 1956, ele era uma sensação internacional. Com um som e estilo que unicamente combinavam suas diversificadas influências e confundiam e desafiavam as barreiras racias da época, ele conduziu uma nova era da música e cultura pop Americana. Ele estrelou 33 filmes de sucesso, fez história com suas aparições na televisão e especiais, e foi muito aclamado por suas apresentações que frequentemente quebravam recordes, suas turnês e em Las Vegas. Globalmente, ele já vendeu mais de um bilhão de discos, mais do que qualquer outro artista. Suas vendas Americanas o garantiraram prêmios de ouro, platina e multi-platina por seus 149 álbuns e singles, muito mais do que qualquer outro artista. Entre seus muitos prêmios estão 14 indicações ao Grammy (3 prêmios) da National Academy of Recording Arts & Sciences, o prêmio Grammy por sua obra, que recebeu aos 36 anos, e a nomeação como um dos 10 Jovens Homens Mais Prominentes da Nação em 1970 nos EUA. Sem nenhum dos privilégios que seu status de celebridade poderiam ter o concedido, ele serviu seu país no Exercíto dos EUA.
Seu talento, beleza, sensualidade, carisma e bom humor o tornou querido para milhões, assim como a humildade e bondade que desmontrou durante sua vida. Conhecido pelo mundo por seu primeiro nome, ele é considerado uma das figuras mais importantes da cultura pop do século 20. Elvis morreu em sua casa em Memphis, Graceland, em 16 de agosto de 1977.
Fonte: Elvis.com



Elvis: Jailhouse Rock [1956] (vídeo do You Tube)


Muçulmanos contra a Al-Qaeda

Tanto no Iraque quanto no Afeganistão, a rede terrorista de Bin Laden enfrenta oposição crescente de outros grupos armados árabes. Suspeita-se, ao priorizar o combate entre facções muçulmanas, ela esteja fazendo o jogo da Casa BrancaSyed Saleem Shahzad

Dois incidentes ilustram as divergências crescentes no seio dos movimentos islâmicos armados. No Waziristão do Sul, uma zona tribal do Paquistão situada na borda da fronteira afegã, talibãs locais perpetraram, em março de 2007, um massacre de combatentes estrangeiros do Movimento Islâmico do Uzbequistão, filiado à Al-Qaeda. Quase simultaneamente, ferozes combates opunham o Exército Islâmico no Iraque ao ramo local da Al-Qaeda. Duas visões – duas maneiras de conceber o combate islâmico – confrontam-se cada vez mais violentamente.

Desde 2003, voluntários estrangeiros afluem ao Paquistão e ao Iraque. Porém, em vez de satisfazer aos dirigentes dos talibãs e aos grupos de resistência islâmicos autóctones, esse afluxo de combatentes ligados ao takfirismo – uma ideologia que considera os “maus muçulmanos” seus principais inimigos – provocou mal-estar e sofrimento. Combatendo governos muçulmanos, esses militantes desencadearam o caos nas mesmas populações que diziam defender.

Durante três anos, entre 2003 e 2006, a própria complexidade da situação nesse vasto teatro de guerra, composto pelo Waziristão do Norte, Waziristão do Sul, Afeganistão e Iraque, reforçou a influência doutrinária da Al-Qaeda e reduziu os grupos autóctones ao silêncio. No Waziristão, zelotas takfiristas favoreceram o surgimento de enclaves islâmicos, que escaparam da jurisdição do Paquistão e alimentaram ações armadas nos grandes centros urbanos, com o objetivo último de desencadear um levante contra o regime militar pró-ocidental de Islamabad. Em resposta, o exército paquistanês conduziu operações sangrentas, massacrando centenas de não-combatentes, entre os quais mulheres e crianças, alimentando assim o furor dos extremistas. Já na época, muitos dirigentes talibãs reconheciam, reservadamente, que os takfiristas estavam se desviando, ao abandonar a estratégia exclusivamente anti-ocidental, pregada por Osama Bin Laden nos anos 1990, e ao transformar sua guerra de resistência nacional contra a ocupação estrangeira em um ataque ao poder militar do Paquistão.

No Iraque, tafkiristas visam os xiitas, e esquecem de lutar contra norte-americanosNo Iraque, Abu Mussab Al-Zarkawi, um dos principais dirigentes takfiristas, que deixara o Waziristão para ir a esse país às vésperas da invasão norte-americana, tornou-se o responsável mais visível da resistência. Zarkawi declarara publicamente fidelidade a Bin Laden. Em torno dele haviam-se agrupado militantes, na maioria estrangeiros, que constituíam o ramo iraquiano da Al-Qaeda. A situação no Iraque logo iria se assemelhar às do Waziristão e do Afeganistão.

Depois da queda de Saddam Hussein, as forças de resistência locais levaram algum tempo para se mobilizar. Precisaram de vários meses para organizar as diversas tribos, grupos religiosos fragmentados, membros do Baas, o antigo partido de Saddam Hussein, e oficiais da extinta Guarda Republicana em unidades eficientes de combate. Nesse ínterim, os combatentes estrangeiros, vindos dos quatro cantos do mundo muçulmano sob os estandartes negros da Al-Qaeda, constituíram um majlis alchoura (conselho) e deram prova de uma eficácia que os grupos locais ainda não demonstravam. Nessas condições, estes últimos não podiam expressar suas reservas à ideologia takfirista. Alguns já haviam tido a oportunidade de deplorar os métodos da Al-Qaeda, que, embora sunita como eles, deixava a luta contra o ocupante norte-americano para atacar lugares sagrados dos xiitas.

No entanto, com o anúncio feito pela Al-Qaeda, no fim de 2006, da criação de um emirado “ideologicamente puro” no Iraque, a estratégia dos grupos autóctones foi totalmente submetida à ideologia takfirista e a seu programa fratricida. A guerra contra a ocupação transformou-se em uma miríade de lutas sectárias. Mas os germes da ruptura entre os combatentes “internacionalistas” e a resistência autóctone estavam semeados.
Divisões têm origem na luta islâmica contra presença soviética no AfeganistãoPara compreender essas divergências, é necessário examinar as circunstâncias particulares que contribuíram para as transformações ideológicas da Al-Qaeda, quando da jihad contra a ocupação soviética no Afeganistão, durante os anos 1980, e depois. Os árabes que haviam afluído àquele país com o intuito de se juntar à resistência local dividiam-se em dois campos: “iemenita” e “egípcio”.

Os zelotas religiosos, enviados ao Afeganistão por seus imãs, pertenciam ao primeiro. Quando não estavam combatendo, passavam os dias em atividades rudes, cozinhando para si mesmos e dormindo logo após a isha, a última prece do dia. Com o fim da jihad afegã, voltaram ao seu país ou se misturaram à população local, no Afeganistão ou no Paquistão, onde muitos se casaram. Nos meios da Al-Qaeda, estes eram qualificados como dravesh – os que gostam da vida fácil.

O campo “egípcio” compunha-se dos mais politizados e ideologicamente motivados. A maioria era afiliada aos Irmãos Muçulmanos [1], mas rejeitava a via parlamentar preconizada por essa organização. Para os partidários dessas idéias, homens muitas vezes instruídos – médicos, engenheiros etc – a jihad afegã constituía um forte cimento. Muitos eram antigos militares que haviam aderido ao movimento clandestino Jihad Islâmica, do doutor Ayman al-Zawahiri (que viria a ser o braço direito de Bin Laden). Foi esse o grupo que assassinou Anuar Sadat em 1981, para puni-lo por ter assinado a paz com Israel em Camp David, três anos antes. Todos estavam convencidos de que os Estados Unidos e os “governos fantoches” do Oriente Médio eram os responsáveis pelo declínio do mundo árabe.

No campo egípcio, depois da isha, debatia-se sem cessar sobre o futuro. Os dirigentes inculcavam nos adeptos a necessidade de investir energia nas forças armadas de seu próprio país e de cultivar ideologicamente os melhores cérebros.

Talibãs afegãos afastam-se da Al-Qaeda e se aproximaram do PaquistãoNas origens da Al-Qaeda encontra-se o Maktab Al-Khadamat (Agência de Serviços), criada por Abdallah Azzam a partir de 1980, a fim de apoiar a resistência afegã. O fundador veio a falecer em 1989 num atentado [2]. Bin Laden, um de seus principais discípulos, sucedeu-o à frente do movimento, para transformá-lo na Al-Qaeda.

“A maioria dos combatentes ’iemenitas’ – guerreiros bastante rústicos, cuja única ambição era o martírio – deixou o Afeganistão depois da queda do governo comunista”, explicou, durante uma entrevista recente em Amã, o filho do fundador do Maktab Al-Khadamat, Hudaifa Azzam. “Os ‘egípcios’ ficaram, pois suas ambições políticas continuavam insatisfeitas. Mais tarde, juntaram-se a Bin Laden, que voltara do Sudão em 1996, e começaram a convertê-lo à visão takfirista — pois, até então, seu pensamento era inteiramente voltado para a luta contra a hegemonia norte-americana no Oriente Médio”.

Hudaifa Azzam passou quase vinte anos junto aos militantes árabes no Afeganistão e no Paquistão. “Quando encontrei Bin Laden em Islamabad, em 1997, ele estava acompanhado do somaliano Abu Obadia e dos egípcios Abu Haf e Saiful Adil, os três pertencentes ao campo ‘egípcio’. Percebi então que as idéias extremistas destes últimos tinham influência sobre ele. Em 1985, quando meu pai pediu a Bin Laden que fosse ao Afeganistão, ele respondeu que iria apenas com a permissão do rei Fahd, da Arábia Saudita, que, na época, ele ainda honrava com o título de Wali al-Amr (“Autoridade Suprema”). Depois do 11 de setembro, quando denunciou os dirigentes sauditas, pude medir o quanto o campo ‘egípcio’ o havia influenciado”.
Era essa, portanto, a situação quando, no início de 2006, mais de 40 mil combatentes aguerridos de origem árabe, tchetchna e uzbeque, ao lado dos waziristaneses e de outros militantes paquistaneses vindos das cidades, reuniram-se no Waziristão do Sul e do Norte. A liderança talibã viu-se diante de um dilema, pois a maioria desses militantes preferia combater as forças armadas paquistanesas na zona tribal a lutar contra a ocupação do Afeganistão.

Novos confrontos pareciam inevitáveis. A cúpula talibã entendeu que o conflito punha em risco a grande ofensiva contra as forças da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), preparada para a primavera de 2006, e que era preciso desmontá-lo o mais rapidamente possível. O mulá Muhammad Omar, chefe em fuga dos talibãs, enviou o mulá Dadullah (um dos melhores comandantes do sudoeste do Afeganistão, morto em maio de 2007) para persuadir os talibãs paquistaneses e as facções da Al-Qaeda a se concentrarem nessa ofensiva, em vez de desperdiçarem suas forças. A mediação resultou, sim, num acordo de paz, mas entre os talibãs da zona tribal e as forças armadas paquistanesas. Tal acordo, firmado em 5 de setembro de 2006, previa, principalmente, a dispensa de todos os combatentes estrangeiros. O cessar-fogo permitiu ao poder paquistanês tecer sólidos laços com os líderes talibãs nos dois Waziristãos. Esses líderes receberam quantidades consideráveis de armas e dinheiro, além de lisonjeiros convites em Islamabad.

O acordo assinado resultava da constatação feita pela direção dos talibãs: depois de cinco anos de colaboração com a Al-Qaeda, a resistência no Afeganistão estava num impasse. Certamente ela havia se tornado mais forte. Mas os talibãs não puderam atingir nenhum objetivo estratégico maior, como teria sido a tomada de Kandahar ou o cerco de Kabul. Os comandantes talibãs perceberam que sua organização não podia esperar ganhar uma batalha contra o poder do Estado. A solução consistia, portanto, em encontrar outros recursos, de origem governamental. Voltaram-se então, naturalmente, para seu antigo protetor, o Paquistão. Daí o acordo de 5 de setembro.

O acordo resiste, apesar das provocações dos partidários de Bin LadenOs líderes talibãs, tanto no Waziristão quanto no Afeganistão, estavam satisfeitos com o compromisso e pouco criticaram a expulsão dos combatentes estrangeiros. Supunha-se que eles fossem se juntar em massa à resistência afegã. Não estavam descontentes tampouco por se livrarem da Al-Qaeda e dos elementos que desenvolviam uma estratégia global, desviando-os do combate contra as forças da OTAN.

Em contrapartida, o acordo era inaceitável para os “guerreiros planetários” da Al-Qaeda, que sonhavam com um conflito regional em várias frentes, conduzido a partir das bases novamente estabelecidas no Waziristão. A perspectiva de pequenas escaramuças no Afeganistão pouco compensava seu sonho de uma vitória brilhante sobre a direção paquistanesa, muçulmana não-praticante. Além disso, a Al-Qaeda pensava em se beneficiar com novos trunfos.

Os dirigentes da rede terrorista logo entenderam que os acordos entre o Paquistão e os talibãs constituíam uma ameaça. Temiam também que os talibãs fossem emboscados pelos serviços de informações paquistaneses. Procuraram, então, sabotar a trégua, explorando divergências entre os signatários. Uma dessas oportunidades lhes foi oferecida pelo bombardeio de um campo de treinamento no Waziristão do Sul pela aviação paquistanesa, em 17 de janeiro de 2007, causando a morte de vários combatentes estrangeiros. Baitullah Mehsud, um dos raros dirigentes talibãs no Waziristão do Sul, denunciou os acordos, considerando que o Paquistão os havia violado. Tahir Yaldeshiv, conhecido militante uzbeque e ideólogo takfirista baseado no Waziristão do Sul, logo lhe deu apoio, despachando mais de uma dezena de grupos de kamikazes a fim de espalhar o terror nos centros urbanos paquistaneses. O balanço foi pesado para a população civil, mas os acordos sobreviveram, apesar das preocupações do presidente Pervez Musharaff com o seminário da Mesquita Vermelha (Lal Masjid) de Islamabad, que procurava impor uma islamização ao estilo talibã na capital.

Se os acordos sobreviveram foi porque convinham a ambas as partes. Eles permitiam aos dirigentes paquistaneses construir uma estratégia capaz de fazer face à ação da Al-Qaeda na zona tribal. Por outro lado, eram uma resposta à desilusão dos talibãs, cansados da estratégia global da Al-Qaeda, considerada monomaníaca, que servira apenas para enfraquecer a resistência afegã. Haji Nazir, comandante talibã pouco conhecido, cortejado e alimentado com dinheiro e armas pelos serviços de segurança paquistaneses, tornou-se rapidamente o homem forte do Waziristão do Sul. Nazir deixou a escolha aos combatentes estrangeiros: serem desarmados ou irem reforçar a ofensiva contra as tropas da OTAN no Afeganistão. Como se podia prever, eles rejeitaram a oferta. E um confronto armado, em março de 2007, fez mais de 140 mortos, na maior parte originários da Ásia central. No Waziristão do Norte, houve incidentes do mesmo tipo.
Os comandantes talibãs precisaram levantar o cerco aos militantes estrangeiros e permitir-lhes seguir qualquer destino de sua escolha. Estes preferiram ir para o Iraque, nova terra prometida, em vez de para o Afeganistão.

Suspeita: ao dividir os árabes no Iraque, a Al-Qaeda estaria trabalhando para os EUA?A Al-Qaeda começou a enviar combatentes dos dois Waziristão para o Iraque imediatamente depois da invasão norte-americana de 2003. Esse movimento foi acelerado pelas divergências ideológicas e estratégicas que a opunham aos talibãs. “Logo que foi nomeado administrador do Iraque, Paul Bremer [3] dissolveu todas as forças de segurança do país”, lembra Muhammad Bashar Al-Faidy, dirigente da Associação dos Ulemas Muçulmanos, um dos atuais integrantes da resistência anti-norte-americana. “Fomos então visitá-lo em delegação e o alertamos contra essa decisão, que iria permitir que todos atravessassem nossas fronteiras. Deveríamos ter preservado ao menos os guardas de fronteira. Bremer não concordava: para ele, todas as forças de segurança estavam com Saddam. Logo, os iraquianos assistiram, impotentes, a um afluxo de todo tipo de indivíduos sem escrúpulos, terroristas da Al-Qaeda ou vindos do Irã, que se juntaram no Iraque em torno de objetivos próprios”. Ele conclui: “Hoje, creio que essa política de Bremer era conscientemente destinada a atrair os militantes da Al-Qaeda para o Iraque, onde ele pensava que fosse mais fácil matá-los ou capturá-los do que no Afeganistão ou no Waziristão [4].

Todavia, enquanto a Al-Qaeda se esforça para tomar a direção da luta e convertê-la à sua visão global, os dirigentes iraquianos da resistência, movidos antes de tudo por objetivos nacionalistas, preocupam-se cada vez mais e gostariam de se livrar desses combatentes estrangeiros. Indícios dessas dissensões foram recentemente relatados pela mídia árabe. A rede de televisão Al-Jazira transmitiu, em abril de 2007, as palavras de Ibrahim Al-Shammari, porta-voz do Exercito Islâmico, sobre sua ruptura com a Al-Qaeda. Os objetivos dos dois movimentos são tão diferentes, afirmou, que, em certas circunstâncias, o Exército Islâmico preferiria tratar com os Estados Unidos.

A esse respeito, Al-Faidy não tem meias palavras: “Todos os elementos estrangeiros que se integraram às milícias irregulares são uma maldição para a resistência. Eles se obstinam em querer controlar o Iraque para levar à frente seu próprio projeto. A Al-Qaeda foi infiltrada por numerosos serviços de informações, sem falar de seus desvios religiosos, como o takfirismo. Afinal de contas, é o povo iraquiano que está pagando um pesado tributo. O mesmo se dá com as milícias xiitas apoiadas pelos serviços iranianos. Elas querem dominar o sul do Iraque e já assassinaram, até o momento, cerca de trinta xeques. Os xeques dessa região gostariam de se juntar à resistência contra o ocupante, mas as atividades dessas milícias apoiadas pelo Irã os impedem”.
Segundo o dirigente da associação dos ulemas, a maior parte das operações de envergadura montadas no Iraque é realizada pelos grupos nacionais de resistência. Mas, como estes são lentos em reivindicá-las, os meios de comunicação internacionais os atribuem freqüentemente à Al-Qaeda. “Até mesmo James Baker [5]”. ]] admite que a Al-Qaeda é apenas um elo modesto da resistência. Pagamos hoje o preço de ter aceito a Al-Qaeda dentro da resistência, num primeiro impulso de entusiasmo. Depois da invasão norte-americana, queríamos convencer todo mundo a se juntar à luta contra o invasor. Quando chegaram ao Iraque os primeiros combatentes da Al-Qaeda, nós os recebemos de braços abertos. Mas, hoje, tudo o que eles fazem prejudica seriamente a resistência”.

Seja a resistência iraquiana sejam os talibãs ou outros grupos que aceitaram a Al-Qaeda em suas fileiras, todos agora pagam o preço.

[1] A Organização dos Irmãos Muçulmanos foi criada em 1928, no Egito, por Assam Al-Banna. Disseminou-se depois pelo mundo árabe. Ler «Une internationale en trompe-l’œil”, de Wendy Kristianasen, Le Monde Diplomatique, edição francesa, abril de 2000.
[2] O assassinato continua um mistério. Segundo alguns, Bin Laden teria sido o mandante, depois de divergências surgidas entre os dois homens.
[3] Paul Bremer foi procônsul dos Estados Unidos no Iraque, entre maio de 2003 e junho de 2004.
[4] Outra possibilidade a ser considerada é que Bremer pretendesse se valer da Al-Qaeda para debilitar a posição dos xiitas no Iraque – o que, de fato, viria a ocorrer. As relações entre a Al-Qaeda e o governo Bush ainda estão por ser esclarecidas (nota da edição brasileira impressa)
[5] Alusão às conclusões do Relatório Baker-Hamilton, The Irak Study Group Report, publicado nos Estados-Unidos em dezembro de 2006, que levanta uma série de propostas para a política norte-americana no Iraque. Representantes democratas e republicanos participaram da redação, mas suas principais conclusões foram rejeitadas pelo presidente Bush. Pode ser consultado em: www.usip.org/isg/iraq_study_group_report/report/1206/index.html
[Le Monde Diplomatique Brasil, agosto 2007]

América se divide entre San Martín e Bolívar

Mariano Grondona

Quando Simón Bolívar e José de San Martín se reuniram em Guayaquil em 1822, não foram apenas dois generais vitoriosos, unidos pelo ideal da independência americana, que se sentaram frente a frente; foram também os portadores de duas concepções opostas do poder. Bolívar e San Martín foram duas personalidades tão extraordinárias que Plutarco (46-119) não teria hesitado em incluí-los em suas famosas Vidas Paralelas. Quando a América se emancipou, o novo continente teve de preencher o vazio de poder deixado pelo tumultuado afastamento de seus tutores europeus. Para remediar esta carência, surgiram dois modelos políticos: um personalista, o de Bolívar; outro institucional, o de San Martín.
Como Natalio Botana observou recentemente em La Nación, Bolívar almejava o que veio a ser chamado de presidência perpétua. Logo após a renúncia de San Martín em Guayaquil, o grande venezuelano pôde exercer a presidência simultânea da Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia. Presidência que era, em sua intenção, 'perpétua'. O projeto 'bolivariano' acabou fracassando, mas seu objetivo era substituir o comando de uma pessoa, o rei espanhol, pelo de outra, o caudilho latino-americano que Bolívar pretendia ser, de modo que o vazio de poder gerado pelo afastamento de um comando pessoal situado na Europa fosse preenchido por um novo comando pessoal de origem crioula, mudando assim a titularidade, mas não a substância do poder.
Botana cita Bolívar defendendo seu projeto: 'O presidente da república vem a ser em nossa Constituição como o sol que, firme em seu centro, dá vida ao universo.' Embora o libertador venezuelano confessasse sua fé republicana, ele quis retardar a criação de uma república autêntica na América Latina.
Bolívar quis substituir o personalismo monárquico espanhol por um novo personalismo só aparentemente republicano. Por isso, o jurista argentino Juan Bautista Alberdi, ao alertar que a independência 'externa' em relação à Espanha talvez não equivalesse à liberdade 'interna' dos latino-americanos, perguntou angustiado: 'Agora que nos libertamos da Espanha, quem nos libertará de nossos libertadores?'


A RENÚNCIA
Há dois modos de fundar um regime político. Um é prolongar indefinidamente o poder daquele que libertou o país de sua antiga dependência. Esse foi o método de Bolívar. O outro é abrir o jogo do poder a novos atores para que possibilitem a 'liberdade interna' dos cidadãos. Esse foi o método de San Martín. Um método que, em vez de exaltar o libertador da antiga dependência, o levou à renúncia.
Esse método não inaugura a exaltação passageira de um homem, e sim a longa vigência de um sistema. É que os fundadores de um sistema só o são quando vão embora. Temos exemplos ilustres na América. George Washington, o primeiro presidente da democracia americana, só fundou o sistema efetivamente quando, depois de exercer o poder por dois períodos sucessivos de quatro anos, entre 1789 e1797, decidiu retirar-se para sua fazenda. Foi a partir desse momento que os EUA iniciaram sua longa travessia republicana, em vigor há mais de dois séculos.
Mas o exemplo de Washington não é o único na América. Em 1994, tendo ocupado a presidência do Chile por quatro anos depois da ditadura de Pinochet, Patricio Aylwin resistiu com firmeza às pressões para que mudasse a Constituição a fim de se reeleger. A atual república estável do Chile nasceu nesse momento de renúncia, já que, depois desse grande exemplo inaugural, nenhum sucessor de Aylwin buscou a reeleição imediata. O Chile de hoje é uma república autêntica porque nenhum 'bolivariano' prevaleceu em suas origens.
A fórmula da renúncia não pôde ser aplicada na Argentina enquanto o libertador ainda vivia, pois a 'ditadura perpétua' de Juan Manuel de Rosas durou de 1829 a 1852. Mas logo após a aprovação da Constituição de Alberdi, que ainda rege o país, Justo José de Urquiza, o primeiro presidente constitucional, não buscou a reeleição.
Em seguida veio a série dos grandes presidentes: Bartolomé Mitre, Domingo Sarmiento, Nicolás Avellaneda e Julio Roca. Nenhum deles almejou ser reeleito de imediato e só um, Roca, foi reeleito, depois de ficar afastado por dois períodos de seis anos.
A Argentina do crescimento econômico ímpar do fim do século 19 e início do 20, em suma, não foi bolivariana, e sim sanmartiniana.


BOLÍVAR VOLTOU?
A Argentina de hoje continua sendo sanmartiniana? É lícito duvidar. O projeto de eleger um Kirchner no lugar do outro, em outubro, não seria uma pretensão de fundar uma 'co-presidência perpétua' de natureza bolivariana?
A que se deve o eclipse da tradição sanmartiniana argentina? É possível identificar duas causas dessa regressão institucional. Uma é a hostilidade dos Kirchners contra as Forças Armadas, que implica tirar de cena não só o maior general da história do país, mas também o herói contemporâneo que é o capitão Guillermo Tarapow, do navio Irízar. A outra é a influência assumidamente bolivariana do ditador venezuelano, Hugo Chávez, que voltou a visitar a Argentina na semana passada com suas mãos repletas.
Quando Chávez se confessa bolivariano, quer duas coisas. Uma é homenagear, com justiça, um dos grandes libertadores latino-americanos. A outra é imitar o modelo bolivariano da presidência perpétua. A ambição do poder ilimitado, que em nossa América encontra máxima expressão em Chávez, coincide com a história recente argentina, já que, desde Juan Domingo Perón, a idéia da presidência perpétua ganhou espaço no país.
Pouco depois de ser eleito presidente, em 1946, Perón promoveu uma reforma constitucional que incluía a reeleição indefinida do chefe de Estado. Seu exemplo foi seguido mais tarde por dois governos militares que buscaram um poder sem prazos: o de Juan Carlos Onganía em 1966 e o de Jorge Rafael Videla em 1976.
Mas a Constituição de 1853 retornou com a democracia em 1983, até que Carlos Menem desejou e obteve, com o respaldo de Raúl Alfonsín, a reintrodução da reeleição imediata. Assim, quando Chávez impôs de novo a meta da presidência perpétua, encontrou uma Argentina politicamente predisposta. Uma Argentina, mais que sanmartiniana, bolivariana. E quanto aos Kirchners, quem se animaria a atribuir-lhes uma vocação sanmartiniana?
Em Cuba, Venezuela, Equador, Bolívia e Argentina, ganha espaço o personalismo autoritário que herdamos da Espanha e que nossa mãe pátria não obstante abandonou, depois da morte de Franco, em 1975, para se transformar, seguida por nações como Chile, México, Brasil e Uruguai, numa das democracias bem-sucedidas de nosso tempo.


*Mariano Grondona é colunista do jornal 'La Nación' - TRADUÇÃO DE ALEXANDRE MOSCHELLA

[O Estado de São Paulo, 12/09/2007]

A ilha sem fantasia

Primeira colônia americana a se tornar independente por revolução popular, Haiti antecipou problemas atuais de vários países
BORIS FAUSTO
O Haiti tem um lugar na nossa realidade e na nossa imaginação, por várias razões. Entre elas, a controvertida presença das tropas brasileiras na ilha, sob a bandeira da ONU, e a atração de seus rituais de origem africana, que guardam parentesco com os nossos. Além disso, podemos sempre nos consolar das mazelas nacionais abandonando a ambigüidade proposta numa canção de Caetano e Gil, para afirmar, com boas razões: "O Haiti não é aqui".
Entretanto o Haiti foi o primeiro país do continente americano a proclamar sua independência pela via de uma longa insurreição de negros e mulatos (1804), que deixou profundas marcas entre dominantes e dominados. Assim, um sentimento de temor tomou conta dos senhores de escravos, do sul dos EUA ao Rio de Janeiro, diante da possibilidade de que novas insurreições viessem a ocorrer, resultando, em certos casos, no estabelecimento de controles ainda mais repressivos sobre a população escrava.
Por outro lado, na região do Caribe, as notícias sobre a longa e vitoriosa insurreição haitiana alentaram outras rebeliões, embora esmagadas, como ocorreu nas plantações de açúcar da Venezuela.
Origem
Duas questões são básicas na história haitiana. Como se explica a "independência precoce" e ainda mais pela forma como se deu? O que ocorreu, ao longo de dois séculos, para que o Haiti se notabilizasse, tristemente, pela miséria e pela degradação? Neste texto, me dedico mais à primeira questão e me limito apenas a algumas indicações sobre a segunda. Nos últimos anos do século 18, a ilha Hispaniola, onde arribou Colombo, estava dividida em duas partes geograficamente desiguais: uma a leste, sob domínio espanhol, e outra a oeste, sob domínio francês.
Haiti foi o nome ameríndio adotado pela ex-colônia francesa, substituindo a denominação "Saint Domingue", a partir da Independência, e que, para maior facilidade, vou doravante utilizar. Por volta de 1789, a então colônia era uma grande produtora de bens primários, a ponto de suas exportações de café corresponderem a metade das exportações mundiais e as de açúcar aproximarem-se das exportações combinadas de Brasil, Cuba e Jamaica.
Socialmente, a população haitiana compunha-se de quase meio milhão de escravos; cerca de 30 mil "pessoas de cor" livres ou libertas, em grande maioria mulatos, muitos deles possuidores de plantações e de escravos; e algo em torno de 40 mil brancos -grandes senhores num extremo e gente pobre no outro.
Personagens
A insurreição iniciada em agosto de 1791, nas plantações de açúcar, prolongou-se até dezembro de 1803, envolvendo, de parte a parte, massacres e destruições em grande escala. No curso da luta, ganhou grande destaque a figura de Toussaint L'Ouverture (a abertura, a liberdade), cujo verdadeiro nome era Toussaint Bréda.
Filho de um príncipe africano escravizado e enviado para a ilha, Toussaint não era um rude escravo, mas um liberto, membro respeitado da franco-maçonaria, leitor de Maquiavel, senhor de propriedades e de escravos, como mostra o livro de Madison Smartt Bell "Toussaint Louverture -A Biography" (Pantheon Books, 352 págs., US$ 27, R$ 51), resenhado por David Brion Davis em "The New York Review of Books", de 31/5, em que me apóio substancialmente.
Brilhante estrategista, Toussaint comandou as forças rebeldes, derrotando tropas invasoras da Espanha e da Inglaterra. Afinal, preso numa cilada armada pelo general Leclerc, cunhado de Napoleão, em 1803, quando sua vitória já se delineava, foi enviado à França, onde morreu numa masmorra gelada, nas montanhas do Jura, pouco tempo depois.
Um conjunto de razões explica o êxito dessa guerra de independência igualitária e feroz. Não necessariamente pela ordem de importância, destaquemos a elevadíssima concentração de escravos num pequeno território; a divisão entre os vários setores da população branca; o papel desempenhado por Toussaint; uma conjuntura internacional favorável.
Sobre o último aspecto, lembremos que, na metrópole, os líderes da Revolução Francesa (1789) ziguezaguearam em torno do problema haitiano, deixando de atuar como um poder colonial unificado.
Papel negativo dos EUA
Por sua vez, os EUA, durante a presidência de John Adams [1979-1801], forneceram armas aos rebeldes, com o objetivo de eliminar o poder da França nas Antilhas. Semelhante atitude tiveram os espanhóis da parte leste da ilha (Santo Domingo), que cruzaram a fronteira e deram apoio a Toussaint, em um primeiro momento.
O desastre haitiano posterior à Independência tem a ver, sem dúvida, com o papel negativo desempenhado pelos EUA, que ocuparam o país entre 1915 e 1934, a pretexto de instaurar "a lei e a ordem", sem conseguir nem uma coisa nem outra. Entretanto, ao mesmo tempo, é necessário considerar, guardadas episódicas exceções, a incapacidade, a corrupção, a insensibilidade da elite haitiana, de que a família Duvalier [dos presidentes François e Jean-Claude] é a pior, mas não a única, expressão.
O Haiti é um bom exemplo premonitório do que viria a acontecer em alguns países da África pós-colonização: se o imperialismo tem aí grandes responsabilidades pela existência de um quadro dramático, em toda a extensão da palavra, outros vilões concorreram e concorrem para a existência desse quadro.
[Folha de São Paulo, 12/09/2007]

O Sagrado e o Humano

Não causa surpresa o fato de pessoas decentes, céticas, ao observarem o ressurgimento em nossos tempos de cultos supersticiosos, do conflito entre liberdades seculares e éditos religiosos, e do radicalismo islâmico assassino, se mostrarem receptivas às polêmicas anti-religiosas de Richard Dawkins, Christopher Hitchens e outros. O "sono da razão" trouxe monstros, como Goya previu em sua gravura.
Hitchens é um homem inteligente e altamente erudito que reconhece que o argumento mais útil para ele era bastante conhecido há 200 anos. Mas pensadores do Iluminismo, tendo mostrado que as alegações da fé não contavam com fundamentação racional, não desdenharam a religião, como alguém poderia desdenhar uma teoria refutada. A facilidade com que as doutrinas comuns da religião podem ser refutados os alertou para a idéia de que a religião não é, em essência, uma questão de doutrina, mas outra coisa. E decidiram descobrir o que poderia ser.
Para os pensadores no período imediato pós-Iluminismo, não era fé, mas fés, no plural, que compunham a essência básica da teologia. Para os pensadores pós-Iluminismo, os sistemas de crença monoteísta não estavam relacionados aos mitos e rituais antigos da mesma forma que a ciência para a superstição, ou a lógica para a magia. Em vez disso, eles eram cristalizações de uma necessidade emocional. Um mito não descreve o que aconteceu em algum período obscuro antes da contagem humana de tempo, mas algo que acontece sempre e repetidamente. Ele não explica as origens causais de nosso mundo, mas recita sua permanente importância espiritual.
Se você olhar para a religião antiga desta forma, então inevitavelmente sua visão do cânone judaico-cristão muda. A história da criação no Gênesis é facilmente refutada como relato de eventos históricos: como pode haver dias sem sol, homem sem mulher, vida sem morte? Mas lida como mito, este texto aparentemente ingênuo revela ser um estudo da condição humana.
Mitos e rituais, escreveu Hegel, são formas de autodescoberta, por meio das quais entendemos o lugar do indivíduo em um mundo de objetos e a liberdade interior que condiciona tudo o que fazemos. A ascensão do monoteísmo a partir das religiões politeístas da antiguidade não é apenas uma forma de descoberta, mas de autocriação, à medida que o espírito aprende a reconhecer a si mesmo no todo das coisas e a superar sua finitude.
Entre estas primeiras incursões na antropologia da religião e estudos posteriores, dois pensadores se destacam como fundadores de um novo empreendimento intelectual - um empreendimento que parece não ter sido notado por Hitchens, Dawkins ou Daniel Dennett. Os pensadores são Friedrich Nietzsche e Richard Wagner, e o empreendimento intelectual é o de mostrar o lugar do sagrado na vida humana e o tipo de conhecimento e entendimento que nos chega por meio da experiência das coisas sagradas.
A lição que ambos os pensadores extraíram dos gregos é de que é possível subtrair os deuses e suas histórias da religião grega sem tirar o mais importante. Esta coisa tinha sua realidade primária não em mitos, teologia ou doutrina, mas nos rituais, nos momentos que ficam fora do tempo, nos quais a solidão e a ansiedade do indivíduo humano são confrontadas e superadas por meio de uma imersão no grupo. Ao chamar estes momentos de "sagrados", nós reconhecemos tanto seu complexo significado social quanto o alívio que fornecem à alienação.
A tentativa de Nietzsche e Wagner de entender o conceito do sagrado foi levada adiante não por antropólogos, mas por teólogos e críticos. É a teoria de René Girard, me parece, que mais urgentemente precisa ser debatida, agora que o triunfalismo ateísta está eliminando todos os nuances.
Em "A Violência e o Sagrado" (1972), Girard começa com uma observação que nenhum leitor imparcial da Bíblia judaica ou do Alcorão pode deixar de fazer, que é a de que a religião pode oferecer paz, mas tem suas raízes na violência. O Deus apresentado nestes textos é freqüentemente irado, dado a acessos de destruição. Ele faz exigências ultrajantes e sanguinárias - como a exigência para que Abraão sacrifique seu filho Isaac. Ele é obcecado por genitália e inflexível em que deva ser mutilada em sua honra.
Pensadores como Dawkins e Hitchens concluíram que a religião é a causa desta obsessão sexual e violência, e que os crimes cometidos em nome da religião podem ser vistos como a refutação definitiva dela. Nem tanto, argumenta Girard. A religião não é a causa da violência, mas a solução para ela. A violência vem de outra fonte e não há sociedade sem ela desde a primeira tentativa dos seres humanos viverem juntos. O mesmo pode ser dito da obsessão religiosa com a sexualidade: a religião não é a causa, mas uma tentativa de resolvê-la.
Como Nietzsche, Girard vê a condição primitiva da sociedade como uma de conflito. É do esforço para resolver este conflito que nasce a experiência do sagrado. Esta experiência nos vem de muitas formas -ritual religioso, oração, tragédia - mas sua verdadeira origem está nos atos de violência comunal. As sociedades primitivas são invadidas pelo "desejo mimético", à medida que rivais lutam para igualar as aquisições materiais e sociais do outro, acentuando o antagonismo e precipitando o ciclo de vingança.
A solução é identificar uma vítima, alguém marcado pelo destino como sendo de fora da comunidade e portanto merecedor da vingança contra ela, que pode ser alvo do desejo de sangue acumulado, e que pode conduzir o ciclo de retribuição ao fim. O bode expiatório é a forma da sociedade de recriar a "diferença" e portanto se restaurar. Ao se unirem contra o bode expiatório, as pessoas são libertadas de suas rivalidades e reconciliadas. Por meio de sua morte, o bode expiatório purga a sociedade de sua violência acumulada. A santidade resultante do bode expiatório é o eco de longo prazo do temor reverente, do alívio e da religação visceral à comunidade que foi experimentada com sua morte.
Segundo Girard, a necessidade do bode expiatório sacrificial está implantada na psique humana, originária da tentativa de formar uma comunidade durável na qual a vida moral pode ser buscada com sucesso.
Em muitas histórias do Velho Testamento, nós vemos os antigos israelitas lidando com este ímpeto sacrificial. As histórias de Caim e Abel, de Abraão e Isaac e de Sodoma e Gomorra são resíduos de conflitos estendidos, nos quais o ritual foi desviado da vítima humana e ligado primeiro a sacrifícios animais, depois às palavras sagradas. Por este processo uma moralidade viável surgiu da competição e conflito, e das rivalidades viscerais da predatoriedade sexual.
Logo, a experiência do sagrado não é um resíduo irracional de medos primitivos, nem uma forma de superstição que algum dia será eliminado pela ciência. Ela é a solução para a agressão acumulada que existe no coração das comunidades humanas. É assim que Girard explica a paz e celebração que acompanha o ritual da comunhão - o senso de renovação que sempre precisa ser ele mesmo renovado. Girard descreve características profundas da condição humana, que podem ser observadas também nos cultos do mistério da antiguidade e nos templos locais do hinduísmo, assim como no "milagre" cotidiano da Eucaristia.
Há muitos elementos na teoria de Girard que podem ser criticados - como a idéia de que as instituições humanas podem ser explicadas pela criação de mitos. Mas tais críticas não influenciam, ao que me parece, o descaso com que as idéias de Girard são tratadas.
Eu suspeito que, como Nietzsche, Girard nos recordou das verdades que preferiríamos esquecer - em particular, a verdade de que a religião não se trata basicamente de Deus, mas do sagrado, e que a experiência do sagrado pode ser suprimida, ignorada e mesmo profanada, mas nunca destruída.

* Roger Scruton é um filósofo e professor de pesquisa do Instituto para as Ciências Psicológicas, Virgínia.
Tradução: George El Khouri Andolfato
[Do site Prospect, 09/08/2007]

Carta aos Brasileiros: 30 Anos

Em 1977 a repressão, que se tornara mais aguda a partir de 1968, tinha abrandado um pouco, mas o país estava longe da normalidade: o Congresso foi fechado em abril, e ainda havia prisões (cineasta Renato Tapajós) e cassações (Marcos Tito e Alencar Furtado, deputados). Foi nesse cenário de incerteza política que Flavio Bierrenbach, José Carlos Dias e Almino Affonso convidaram Goffredo para ler um manifesto em defesa da democracia nos festejos pelos 150 anos da Faculdade de Direito da USP, já que a comemoração oficial ficara a cargo de Alfredo Buzaid, ministro da Justiça do governo Médici. Como explica Bierrenbach, hoje ministro do STM, "Goffredo nos parecia ser o nome ideal, como foi. Em primeiro lugar, pelo respeito que inspirava; em seguida, pela sua isenção, já que não se tratava de uma figura marcada de esquerda, mas sim de um democrata". Goffredo aceitou, apesar dos riscos: "Na época não pensei em medo... Eu tinha um dever a cumprir. Muitos professores tinham me pedido uma manifestação pela democracia. O pedido veio ao encontro de um ideal que tinha no coração há muito tempo". Segundo o ex-ministro da Justiça José Gregori, um dos organizadores da manifestação, a Carta traçou um programa mínimo que unificou as oposições: "Ela estabeleceu um mínimo múltiplo comum, pois todo mundo fechava em relação ao Estado de Direito Democrático. Na campanha das Diretas-Já houve a decodificação desse Estado de Direito numa coisa prática. O Estado Democrático de Direito era uma coisa mais complexa, abrangente; Diretas-Já era uma palavra de ordem mais singela, mais fácil de ser entendida, mas já fazia parte do genoma da Carta". Bierrenbach tem essa mesma certeza: "Não há dúvida que a campanha pelas eleições diretas e a divisa por ela adotada foram inspiradas pela Carta". O documento sustentava que um regime baseado na força não era legítimo e concluía exigindo a reconstitucionalização do país: "Estado de Direito, já". A organização do ato, realizado em 8 de agosto de 1977, foi cercada de precauções: Almino Affonso e Plínio de Arruda Sampaio, ambos cassados, não subscreveram o documento para não fornecer pretextos à repressão: temia-se que a polícia invadisse a faculdade, tal como havia feito em 15 de junho. Dois espiões infiltrados pelo Dops acompanharam a manifestação e anotaram o nome de alguns dos 2.500 presentes. Depois da Carta, a repressão não cedeu de imediato (a PUC-SP foi invadida um mês depois), mas as manifestações contra a ditadura tornaram-se mais freqüentes. Como escreve José Carlos Dias no livro, a Carta foi um teste de coragem: "Muitas decepções tivemos nós com desculpas para recusas". Gregori observa que, "com a Carta aos Brasileiros, a classe média se dividiu. Uma parte achou que tinha de retirar qualquer tipo de apoio ao regime".

Césio 137 - 20 Anos

O acidente com o Césio 137, em Goiânia, já foi comparado, a tragédia de Chernobyl, onde um reator nuclear sofreu uma explosão térmica, atingindo milhares de pessoas, o ano era 1986. Dois anos depois, o acidente em Goiânia fez com que o Césio 137, um dos componentes radiativos da Usina de Chernobyl, se rompesse. O pó se espalhou pela cidade contaminando centenas de pessoas. Desde então, as vítimas do maior acidente radioativo brasileiro lutam na justiça para receber indenização e tratamento médico e hospitalar adequados. Goiânia ainda não esqueceu o pesadelo. As marcas ainda são visíveis em corpos mutilados ou nas lembranças dos que perderam parentes ou amigos. A vida nunca mais será a mesma.
Foi em um terreno na Rua 57, do Setor Universitário, que no dia 13 de setembro de 87 os dois catadores de sucata desmontaram a peça coberta de chumbo, encontrada nos escombros do Instituto Goiano de Radioterapia. Era o começo do mais grave acidente radioativo do País. Atraídos pelo brilho do césio, adultos e crianças distribuíram o pó luminoso entre amigos e parentes. O césio foi levado pra casa em vidrinhos, nos bolsos e até esfregado na pele. O brilho era tanto e tão raro que eles acreditavam se tratar de uma pedra preciosa. Mal sabiam que seguravam a morte nas mãos. Dona Maria José Aparecida Ferreira, que perdeu três familiares no acidente, lembra como foi o contato de seu filho de 11 anos com o cilindro. A menina Leide da Neves Ferreira, de seis anos, foi a primeira vitima fatal.
Em 1988, foi criada a Fundação Leide da Neves, para dar assistência médica e psicológica as 151 pessoas que foram expostas à radiação. Os governos estadual e federal instituíram pensões para as vitimas. Donizete Rodrigues Oliveira visita semanalmente a Fundação em busca de alivio para suas dores físicas e emocionais. Mas não existe reparação para a dor da vida que ficou pra traz. São marcas invisíveis em uns, expostas em outros. Em novembro de 99, o governador Marconi Pirillo extinguiu a Fundação Leide das Neves, transformando-a em superintendência. Em 2003, os sobreviventes do acidente perderam o atendimento exclusivo e passaram a ser atendidos na rede pública de saúde. Quase vinte anos após o acidente radioativo com a cápsula de césio, o número de vitimas não está fechado. O Ministério Público conseguiu incluir na lista de pessoas com direito a atendimento médico e pensão alimentícia 417 servidores públicos que sofreram os efeitos da radiação.
Decisão da 5a. turma do Tribunal Regional Federal da 2ª Região reduziu de um milhão para 100 mil o valor da indenização que a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CENEN) teria que pagar as vitimas do acidente com o Césio. A desembargadora Selene Maria de Almeida, relatora do processo, condenou o estado de Goiás a prestar atendimento médico hospitalar até a terceira geração das vítimas, como estava sendo feito pela extinta Fundação Leide Neves. A decisão também condenou os médicos a uma indenização de 100 mil reais, pelo descuido que tiveram ao expor a população ao material radiológico.
De acordo com a Comissão Nacional de Energia Nuclear, hoje não existem mais no Brasil aparelhos para Radioterapia com Césio 137. Atualmente, os equipamentos utilizam cobalto 60 – similar ao césio, mas menos radioativo.


[Nota: converse com seu professor de química para mais informações.]