Fies recebe inscrições a partir desta segunda

O Fies (Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior) abre nesta segunda-feira (29), as incrições para os interessados em obter cobertura das mensalidades de cursos universitários particulares. O prazo vai até 19 de outubro.
Clique aqui para acessar o site do programa...

Cem Machado...

Hoje, 29 de setembro, faz cem anos da morte de Machado de Assis.
Clique aqui para ver o especial da Folha Online: biografia, frases, curiosidades, trechos escolhidos de sua obra, etc...
Conheça também a página dedicada ao escritor no site da Academia Brasileira de Letras.
Assista, em nosso Porta Curtas, Missa do Galo, baseado na obra de Machado.

Estado laico e radiodifusão religiosa

Por Venício A. de Lima

Estado e Igreja católica sempre estiveram muito próximos no Brasil. Herdamos dos colonizadores portugueses esse vínculo e não foi por acaso que fomos chamados de "Terra de Santa Cruz" e o primeiro ato solene em solo brasileiro tenha sido a celebração de uma missa.

A Constituição outorgada de 1824 estabelecia o catolicismo como religião oficial do Império. Essa condição perdurou até o início da República, quando Deodoro da Fonseca assinou o Decreto 119-A, de 7 de janeiro de 1890 (disponível aqui). Desde então, instaurou-se a separação entre Igreja e Estado e nos tornamos, do ponto de vista legal, um Estado laico (do latim laicus, isto é, leigo, secular, neutro, por oposição a eclesiástico, religioso).

Embora no Preâmbulo da Constituição de 1988 conste que ela foi promulgada "sob a proteção de Deus", o inciso I do artigo 19, é claro:

"Artigo 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público."

Comercialização do horário nobre
É exatamente por ser a Constituição de um Estado laico – e em coerência com o Artigo 19 – que a alínea b, do inciso VI, do artigo 150 proíbe a tributação sobre "templos de qualquer culto" para não "embaraçar-lhes o funcionamento" do ponto de vista financeiro.

Esta breve introdução histórico-legal vem a propósito de notícias que têm sido veiculadas na grande mídia nessas últimas semanas.

O jornalista Daniel Castro, por exemplo, informa em sua coluna "Outro Canal" na Folha de S.Paulo (18/9/2008):

"A Band se abriu de vez para o mercado da fé. No mês passado, vendeu 22 horas da grade da Rede 21, emissora do mesmo grupo, para a Igreja Mundial do Poder de Deus. O negócio deverá render à TV R$ 420 milhões nos próximos cinco anos.

Desde o último dia 1º, o Ministério (sic) Silas Malafaia (Assembléia de Deus) ocupa a grade da Band da 1h30 às 7h. Pagará cerca de R$ 7 milhões por mês ou R$ 336 milhões em quatro anos (duração do contrato)".

A Igreja Mundial do Poder de Deus, além das 22 horas semanais na Rede 21, já veicula seus programas na RedeTV! e na Rede Boas Novas, esta vinculada à Igreja Evangélica Assembléia de Deus (IAD), que controla 36 emissoras de televisão, sendo sete em VHF e 29 em UHF, em 24 estados e no Distrito Federal.

A Band comercializa também boa parte de seu horário nobre com a Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD), do pastor R. R. Soares, na telinha diariamente como resultado de um contrato que se estima girar em torno de 5 milhões de reais/mês. Esta igreja controla 85 canais de televisão, sendo que 77 em UHF, sete em VHF e um canal a cabo, em 24 estados [dados sobre a IAD e a IIGD coletados por Valdemar Figueredo Filho para dezembro de 2006].

Sublocação de serviço público
Segundo Daniel Castro, "a Band (rede de televisão) tem hoje 40 horas e 30 minutos de programação religiosa por semana, apenas três a menos do que a Record, que pertence à Igreja Universal. A campeã de aluguel de horário a igrejas é a Rede TV!. Tem 58 horas semanais de orações e exorcismos".

E mais: a Rede SBT – a única que ainda não veicula programação religiosa – recebeu, pelo menos, uma proposta do missionário R. R. Soares, o mesmo que está no horário nobre da Band todos os dias.

Diante das evidências – que não se restringem aos dados citados e envolvem tanto igrejas evangélicas como católicas – não há como escapar de duas questões que, leiga e ousadamente, gostaria que fossem consideradas como "constitucionais":

Primeiro, é correto (no sentido de legal) que grupos privados possam negociar e auferir lucro do aluguel, sublocação (ou seria subconcessão?) de "partes" de um serviço público que lhes foi outorgado pelo Estado?

Segundo, retorno à pergunta já feita em texto recente publicado neste Observatório (ver "O coronelismo eletrônico evangélico"): um serviço público que, por definição, deve estar "a serviço" de toda a população, pode continuar a atender interesses particulares de qualquer natureza – inclusive, ou sobretudo, religiosos? Ou, de forma mais direta: se a radiodifusão é um serviço público cuja exploração é concedida pelo Estado (laico), pode esse serviço ser utilizado para proselitismo religioso?

E, por fim, uma curiosidade: a Lei 9.612/1998 proíbe o proselitismo de qualquer natureza (§ 1º do artigo 4º) nas rádios comunitárias. Será que a norma que vale para as outorgas desse serviço público de radiodifusão não deveria valer também para as emissoras de rádio e de televisão pagas e/ou abertas?

Veja Mais...
MÍDIA & RELIGIÃO: O coronelismo eletrônico evangélico [clique aqui para ler...]


[Observatório da Imprensa, 23/9/2008]

Esquerda "confessa" não ter rumo, diz filósofo

Paulo Arantes pergunta por que um governo que não enfrentou nenhum interesse confronta militares

Rafael Cariello

Em debate sobre a ditadura militar e a responsabilização de integrantes das Forças Armadas por atos de tortura e morte durante o regime pós-64, o professor de filosofia Paulo Arantes disse anteontem [23/09] na USP (Universidade de São Paulo) que a esquerda, ao fazer política procurando "reparar abominações do passado", faz "uma confissão tácita de que não temos futuro".
O engajamento da esquerda e de integrantes do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, nos debates sobre a Lei de Anistia, foi apresentado por ele como um sintoma da ausência atual de um horizonte de transformação radical da sociedade.
Arantes participava da mesa de debates "Do uso da violência contra o Estado ilegal", ao lado do também professor de filosofia da USP Vladimir Safatle. O evento fazia parte do seminário "O que resta da ditadura: a exceção brasileira", que termina hoje.
"É uma confissão de que o futuro passou para o segundo plano. De que ele só virá depois desse rodeio pelo passado. É uma confissão tácita de que o horizonte de transformação foi posto de quarentena", afirmou.
Arantes deixou claro, no entanto, que obviamente os ativistas pelos direitos humanos são aliados da esquerda, e de que a "plataforma dos direitos humanos é necessária e, no momento, a única disponível".
Durante audiência no Ministério da Justiça, no início do mês passado, os ministros Tarso Genro (Justiça) e Paulo Vanucchi (Direitos Humanos) defenderam a responsabilização criminal de agentes públicos que, durante a ditadura militar (1964-1985), participaram de atos de tortura.
O Comando do Exército afirmou em seguida que a discussão sobre esse tema foi concluída em 1979, com a publicação da Lei de Anistia. Para a Força, o debate sobre punir esses agentes públicos está esgotado.

"Projeto nazista"
O diagnóstico de Arantes era, em parte, uma resposta a uma pergunta feita por ele no início de sua palestra.
Como explicar que "um governo que não enfrentou nenhum interesse estabelecido", segundo ele, viesse "da noite para o dia" confrontar o poder militar? "Qual é o sentido disso? Fica a pergunta, de boa-fé: qual é a perspectiva política? Há alguma mobilização social em relação a isso? Não temos resposta, embora a causa seja justa", disse.
Em sua participação, Vladimir Safatle disse que as ditaduras sul-americanas realizaram o "projeto nazista" ao tentarem eliminar seus adversários não só fisicamente mas também simbolicamente. "Algo de fundamental do projeto nazista alcançou sua realização plena na América do Sul", declarou.
Ele citou como exemplo o "seqüestro de crianças filhas de desaparecidos", na Argentina. "Não são só os corpos que desaparecem. Não haverá portadores de seu sofrimento. Ninguém se lembrará", disse, descrevendo o "projeto" de que falava. O país vizinho, no entanto, foi capaz, posteriormente, de julgar os responsáveis por esses crimes. Lá, ele disse, "a Justiça não teve medo de julgar". "O único país que realizou de maneira perfeita essa profecia foi o Brasil", afirmou.

[Folha de São Paulo, 25/09/2008]

Leis não fazem homens justos

Henry D. Thoreau escreveu Desobediência Civil para atacar a escravidão e a opressão dos governos

Leonardo Trevisan

Os usos da frase "o bom governo é o que governa menos" são diversos. Um convicto anarquista assinaria embaixo dessas palavras, embora um profundo neoconservador também o faria. Está aí uma boa confusão sobre o que é "idéia" de governo, envolvendo o autor dessa frase. No auge da contracultura dos anos 1960, os estudantes norte-americanos carregavam retratos de Henry David Thoreau e pediam "desobediência civil" contra a convocação para combater no Vietnã. Era uma correta escolha de ídolo.

Henry David Thoreau nasceu em 1817, em Concord, Massachusetts, e morreu em 1862. Estudou no Harvard College, escreveu muito, mas publicou só dois livros, um sobre sua cidade natal e Walden (ou A Vida na Floresta), um hino de respeito à Natureza. O que fez sua fama foi um pequeno ensaio, pouco mais que um folheto, Desobediência Civil, originalmente uma palestra feita em 1848. O motivo: o ineditismo de alguns conceitos, sendo o primeiro deles: "As leis nunca tornaram os homens mais justos", acompanhado da premissa de que a função dos governos é mostrar "como os homens podem ter sucesso em oprimir". O maior alvo da luta de Thoreau era enfrentar a escravidão, questão séria para a desenvolvida Região Norte dos EUA contra o latifundiário do Sul. O jornalista Andrew Kirk, em Desobediência Civil, de Thoreau, publicado pela Jorge Zahar Editor, retomou esse tema, reproduziu esse ensaio e reconstruiu o impacto histórico que Thoreau despertou em muita gente, de Gandhi a Martin Luther King.

É preciso lembrar que Desobediência Civil foi escrita no contexto da guerra contra o México, conflito muito impopular no Norte do país. Kirk repõe Thoreau no centro do debate até contra participação americana no Iraque, explorando a lógica da mentira que fabrica guerras. O conflito do México escondia os "bons negócios" com a expansão para o Oeste. Thoreau compra a briga, avançando na idéia de que em certos casos, "pagar impostos é permitir que o Estado cometa violências". Com um forte complemento: "Não há uma espécie de sangue derramado quando a consciência de um homem é ferida?" Vale lembrar que ele escreveu um ensaio em defesa de John Brown , o abolicionista enforcado por liderar um violento ataque a um arsenal na Virgínia, para armar uma insurreição de escravos. A visão que Thoreau tinha de Brown foi interpretada por muita gente como autorização para usar a violência em defesa de direitos civis desrespeitados.

O ponto central da "desobediência civil" era o não pagamento de impostos. O objetivo era criticar a Guerra do México e Thoreau rejeitou a autoridade da lei ao suspender o pagamento de seu imposto per capita. Ele passou apenas uma noite na cadeia, pois uma envergonhada tia pagou o imposto devido. Reza a lenda que Ralph Waldo Emerson, amigo e de certa forma tutor intelectual, visitou Thoreau na cadeia e teria perguntado "Por que você está aqui?" Recebeu como resposta: "Por que você não está aqui?" Kirk prefere apostar que a história é apócrifa, porém, como essa versão é bem melhor ou mais útil que os fatos para ajudar Thoreau, ela prosperou. Na verdade, o autor de Walden sempre falava em "resistência"; a palavra "desobediência" chegou muitos anos depois ao título de seu famoso ensaio.

Kirk apontou, com razão, que Thoreau buscava um "individualismo radical" e, nesse aspecto, ele queria mesmo era criar uma "cultura norte-americana própria", abrindo espaço para o comportamento ético na busca calvinista da salvação. Thoreau bateu forte ao dizer "primeiro homens, depois súditos", inclusive em relação ao Estado com práticas de fundamentalismo laissez-faire. No ensaio, ele é bem claro: "Nunca me recusei a pagar impostos referentes às estradas ou às escolas", concluindo: "Mas, me preocupo em rastrear os efeitos de minha submissão." Thoreau não queria a extinção do governo; o que desejava era "um governo imediatamente melhor". Porém, sem esconder o desapontamento, ele também percebe que "milhares se opõem à guerra, mas nada fazem".

Até 1920, nos EUA, Thoreau era apenas um autor amigo da Natureza. Kirk aponta alguns motivos para esse esquecimento, o primeiro deles a "percepção que se tinha de Thoreau". De fato, quem descobriu o "desobediente Thoreau" foram os socialistas ingleses, segundo Kirk "na luta contra o inimigo comum, o capitalismo". Em especial, os jornalistas londrinos Edward Carpenter e Henry Salt, este último responsável por uma bem cuidada reedição de textos de Thoreau, publicada em 1895. Provavelmente foi nessa edição que Gandhi, então estudante em Londres, conheceu Thoreau e sua desobediência civil.

É um fato que quase todos os "ismos", desde o começo do século 20, de um modo ou de outro, tentaram adotar Thoreau. Kirk, por sua vez, considera que seria difícil para um "homem tão devoto da solidão" como ele, por exemplo, aceitar uma barulhenta comunidade hippie dos anos 70 da Califórnia. Exageros à parte, o lago de Walden foi declarado em 1990 um "santuário", a casa de Thoreau vendida por US$ 3,2 milhões e uma indústria turística eficiente está instalada na área. Seria curioso saber o que Thoreau pensaria sobre o que foi feito, por obedientes pagadores de impostos, de seu lago tão venerado.

Leonardo Trevisan, jornalista e professor da PUC-SP, é autor de Educação e Trabalho

[O Estado de São Paulo, 28/09/2008]

Karl Marx manda lembranças

O que vemos não é erro; mais uma vez, os Estados tentarão salvar o capitalismo da ação predatória dos capitalistas

AS ECONOMIAS modernas criaram um novo conceito de riqueza. Não se trata mais de dispor de valores de uso, mas de ampliar abstrações numéricas. Busca-se obter mais quantidade do mesmo, indefinidamente. A isso os economistas chamam "comportamento racional". Dizem coisas complicadas, pois a defesa de uma estupidez exige alguma sofisticação.
Quem refletiu mais profundamente sobre essa grande transformação foi Karl Marx. Em meados do século 19, ele destacou três tendências da sociedade que então desabrochava:
(a) ela seria compelida a aumentar incessantemente a massa de mercadorias, fosse pela maior capacidade de produzi-las, fosse pela transformação de mais bens, materiais ou simbólicos, em mercadoria; no limite, tudo seria transformado em mercadoria;
(b) ela seria compelida a ampliar o espaço geográfico inserido no circuito mercantil, de modo que mais riquezas e mais populações dele participassem; no limite, esse espaço seria todo o planeta;
(c) ela seria compelida a inventar sempre novos bens e novas necessidades; como as "necessidades do estômago" são poucas, esses novos bens e necessidades seriam, cada vez mais, bens e necessidades voltados à fantasia, que é ilimitada. Para aumentar a potência produtiva e expandir o espaço da acumulação, essa sociedade realizaria uma revolução técnica incessante. Para incluir o máximo de populações no processo mercantil, formaria um sistema-mundo. Para criar o homem portador daquelas novas necessidades em expansão, alteraria profundamente a cultura e as formas de sociabilidade. Nenhum obstáculo externo a deteria.
Havia, porém, obstáculos internos, que seriam, sucessivamente, superados e repostos. Pois, para valorizar-se, o capital precisa abandonar a sua forma preferencial, de riqueza abstrata, e passar pela produção, organizando o trabalho e encarnando-se transitoriamente em coisas e valores de uso. Só assim pode ressurgir ampliado, fechando o circuito. É um processo demorado e cheio de riscos. Muito melhor é acumular capital sem retirá-lo da condição de riqueza abstrata, fazendo o próprio dinheiro render mais dinheiro. Marx denominou D - D" essa forma de acumulação e viu que ela teria peso crescente. À medida que passasse a predominar, a instabilidade seria maior, pois a valorização sem trabalho é fictícia. E o potencial civilizatório do sistema começaria a esgotar-se: ao repudiar o trabalho e a atividade produtiva, ao afastar-se do mundo-da-vida, o impulso à acumulação não mais seria um agente organizador da sociedade.
Se não conseguisse se libertar dessa engrenagem, a humanidade correria sérios riscos, pois sua potência técnica estaria muito mais desenvolvida, mas desconectada de fins humanos. Dependendo de quais forças sociais predominassem, essa potência técnica expandida poderia ser colocada a serviço da civilização (abolindo-se os trabalhos cansativos, mecânicos e alienados, difundindo-se as atividades da cultura e do espírito) ou da barbárie (com o desemprego e a intensificação de conflitos). Maior o poder criativo, maior o poder destrutivo.
O que estamos vendo não é erro nem acidente. Ao vencer os adversários, o sistema pôde buscar a sua forma mais pura, mais plena e mais essencial, com ampla predominância da acumulação D - D". Abandonou as mediações de que necessitava no período anterior, quando contestações, internas e externas, o amarravam. Libertou-se. Floresceu. Os resultados estão aí. Mais uma vez, os Estados tentarão salvar o capitalismo da ação predatória dos capitalistas. Karl Marx manda lembranças.

CESAR BENJAMIN, 53, editor da Editora Contraponto e doutor honoris causa da Universidade Bicentenária de Aragua (Venezuela), é autor de "Bom Combate" (Contraponto, 2006).

[Folha de São Paulo, 20/09/2008]

Do Le Monde diplomatique...

ECONOMIA
A moeda, o crédito e o capital financeiro
José Luís Fiori
A estatização das gigantes do crédito imobiliário nos EUA reensina: ao contrário do que crê a teoria econômica convencional, poder estatal e mercado não estão em conflito, no capitalismo. A “memorável aliança”, entre eles encontra-se origem do sistema e segue movendo sua expansão no século 21 [clique aqui para ler]


AMÉRICA LATINA
As duas Bolívias que se enfrentam
Ricardo Cavalcanti-Schiel
Ainda titubeantes, as maiorias indígenas ensaiam um projeto nacional e capaz de superar as relações de predação, privilégios e servidão. Para a oligarquia, não se trata de integrar uma nação — mas de usufruir dela como se fosse sua hacienda, e já sem apego à própria retórica da democracia [clique aqui para ler]

US$ 700 bilhões em termos reais

David Stout, em Washington, EUA

"Um bilhão aqui, outro acolá, e logo você estará falando sobre dinheiro de verdade". A famosa frase do senador Everett McKinley Dirksen, republicano de Illinois, foi pronunciada há muito tempo (ele morreu em 1969), antes que jogadores de beisebol com mãos pesadas ganhassem milhões de dólares por ano na liga principal, numa época em que US$ 1 bilhão era de fato muito dinheiro.

Mesmo levando em conta a inflação e o contexto dos gastos federais atuais, US$ 700 bilhões é uma soma enorme. Ela representa mais de US$
2.000 dólares para cada homem, mulher e criança dos Estados Unidos.
Colocando de outra forma, US$ 700 bilhões são mais do que o Produto Interno Bruto anual da Argentina e Chile juntos, de acordo com almanaques atuais.

Representam quase 70% do PIB do Canadá.

Mas para ficar verdadeiramente impressionado com o verdadeiro valor de US$ 700 bilhões, basta olhar para quanto dinheiro o governo dos Estados Unidos gasta em programas sociais e, pior ainda, o quanto ele gastou em guerras ao longo dos anos.

A soma é mais ou menos o quanto o Pentágono espera gastar no ano fiscal que termina em 30 de setembro, incluindo os custos das campanhas no Iraque e Afeganistão. A informação é do Centro de Controle e Não-Proliferação de Armas, um grupo de pesquisa de Washington, que citou números do Serviço de Pesquisa do Congresso e dados do Departamento de Administração e Orçamento.

O grupo calcula que os Estados Unidos gastaram US$ 670 bilhões (em dólares de 2007) na guerra do Vietnã, portanto a cifra que circula hoje em Washington seria suficiente para pagar pelo conflito novamente, em dinheiro e em lágrimas.

Novamente, calculando em dólares de 2007, US$ 700 bilhões seriam suficientes para pagar mais de 20% do que os Estados Unidos gastaram na Segunda Guerra Mundial, diz o grupo de pesquisa. A soma é quase duas vezes o que o país gastou na Primeira Guerra, e muito mais do que o dobro do que gastou na guerra da Coréia.

Os Estados Unidos gastaram meros US$ 7 bilhões, em dólares de 2007, lutando a guerra hispano-americana em 1898 - quase o mesmo valor que o governo federal gastou este ano no Programa Head Start.

Este ano, o Head Start está ajudando pouco mais de 900 mil crianças de famílias pobres, de acordo com o Departamento de Saúde e Serviços Humanos. É claro, o Head Start é popular politicamente, e geralmente visto como um dos programas mais benéficos inspirados pelo presidente Lyndon B. Johnson.

Já foi comentado que, apesar de a burocracia federal não conseguir angariar somas astronômicas de dinheiro para pagar por cuidados de saúde e outras necessidades, ela parece preparada para fazer o mesmo para aliviar um desastre financeiro, principalmente porque, do contrário, os tremores seriam sentidos muito além dos cânions de Wall Street.

E ainda há outra forma de olhar para isso: US$ 700 bilhões são mais de 40 vezes o que a NASA gastará neste ano fiscal.

Se confiarmos nos Estados Unidos, como faz o presidente Bush, poderíamos esperar que todas as hipotecas problemáticas que o governo vai comprar se transformassem em bons investimentos.

Mas voltemoso à cifra impressionante de US$ 700 bilhões. Pode-se dizer, em tese, que eles são suficientes para pagar pelo programa Head Start pelos próximos 100 anos, assumindo que todo o dinheiro será investido com sensibilidade e de forma conservadora o suficiente para acompanhar a inflação - uma estratégia de investimento aparentemente não muito popular hoje em dia.

Tradução: Eloise De Vylder

[The New York Times, 21/09/2008]

Crimes sem castigo

A facilidade com que nos dispensamos de ajustar contas com o passado é dos aspectos menos louváveis do caráter nacional

Em homenagem a todos os que tiveram suas vidas ceifadas e suas almas dilaceradas pelo poder militar

UM DOS aspectos menos louváveis do caráter nacional é a leviana facilidade com que nos dispensamos de ajustar contas com o passado.
Desde o inicio da colonização e até hoje, múltiplas etnias indígenas foram vítimas de genocídio e de desculturação forçada. Durante quase quatro séculos, a escravatura legal de africanos e afrodescendentes destruiu e aviltou milhões de seres humanos, deformando os nossos costumes e a nossa mentalidade.
Em relação a ambos esses crimes coletivos, as gerações atuais não se sentem minimamente interessadas.
Pior: é geral a ignorância a esse respeito, sobretudo entre os jovens, provocada pela intencional omissão de tais fatos históricos nos currículos escolares.
Reproduzimos agora, com relação aos horrores do regime militar, a mesma atitude vergonhosa de virar as costas ao passado: "não tenho nada a ver com isso"; "não quero saber, pois não havia nascido"; "vamos nos ocupar do futuro do país, não de fatos pretéritos".
Pois bem, sustento e sustentarei, até o último sopro de vida, que interpretar a lei nº 6.683, de 28/8/1979, como tendo produzido a anistia dos agentes públicos que, entre outros abusos, mataram, torturaram e violentaram sexualmente presos políticos é juridicamente inepto, moralmente escandaloso e politicamente subversivo.
Sob o aspecto técnico-jurídico, a citada lei não estendeu a anistia criminal aos carrascos do regime militar.
Só há conexão entre crimes políticos e crimes comuns quando a lei expressamente o declara, como sucedeu com a Lei de Anistia promulgada por Getúlio Vargas em abril de 1945, em preparação ao fim do Estado Novo.
Mas, mesmo quando a lei o declara, a conexão criminal supõe que o autor ou os autores de tais crimes perseguiram o mesmo objetivo e não estavam em situação de confronto. Admitir a conexão entre crimes cometidos com objetivos totalmente adversos é um despropósito. Isso sem falar na violação flagrante, no caso, de preceitos consagrados internacionalmente em matéria de direitos humanos e que não comportam anistia.
Sob o aspecto moral, impedir oficialmente que sejam apuradas e reveladas ao público práticas infames e aviltantes de abuso de autoridade é inculcar, para todos os efeitos, a vantagem final da injustiça sobre a decência; ou seja, afirmar que a imoralidade compensa.
Falar, a respeito da citada lei, em reconciliação nacional é um cínico abuso de linguagem. Moralmente, só pode haver reconciliação quando pactuada entre as partes envolvidas no litígio e perfeitamente cientes dos fatos ocorridos. O que não ocorreu no caso: uma das partes, justamente o conjunto das vítimas das atrocidades cometidas, não foi chamada a dizer se aceitava ou não essa forma de apaziguamento, nem foi informada sobre a identidade dos executores e de seus mandantes.
Politicamente, admitir que agentes do Estado, que exerciam funções oficiais e eram remunerados com recursos públicos, isto é, dinheiro do povo, possam gozar de imunidade penal por meio de simples lei, votada sem consulta prévia nem referendo popular, representa clamoroso atentado contra o princípio republicano e democrático. O Congresso Nacional, ao assim proceder, usurpou a soberania popular e subordinou o bem comum do povo ("res publica") ao interesse particular de um punhado de facínoras e de seus comanditários, dentro e fora do governo.
Qual a solução? É pedir à mais alta corte de Justiça do país que julgue, definitivamente, se a Lei de Anistia deve ou não ser interpretada à luz dos princípios fundamentais que esteiam todo o nosso sistema jurídico.
Nesse sentido, é confortador saber que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil já decidiu propor, no Supremo Tribunal Federal, uma argüição de descumprimento de preceito fundamental no tocante à interpretação desviante da Justiça e da decência dada por certos setores à lei nº 6.683, de 1979.

FÁBIO KONDER COMPARATO, 71, é professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP e autor, entre outras obras, de "Ética - Direito, Moral e Religião no Mundo Moderno" (Companhia das Letras).

[Folha de São Paulo]

Análise: Uma lição enraizada na Grande Depressão

Carter Dougherty, em Frankfurt (Alemanha)

Será que futuros historiadores escreverão sobre a Grande Depressão dos anos 2000 como escreveram sobre a dos anos 30? Os banqueiros centrais do mundo buscaram responder "não" na quinta-feira - de modo ressoante, mas não definitivo.

Com uma imensa injeção de dinheiro, o Federal Reserve (Fed, o banco central americano), acompanhado por outros bancos centrais ao redor do mundo, dispararam sua maior salva de fogo financeiro até hoje. A meta era persuadir o sistema bancário em convulsão de que não há escassez de dinheiro para atender as obrigações essenciais, seja agora ou no futuro.

Os US$ 180 bilhões em fundos adicionais que destinaram na quinta-feira foi apenas o início.

Isso contrasta muito com o que aconteceu nos anos 30, quando o Fed ficou de braços cruzados enquanto as ondas de inadimplência drenavam dinheiro do sistema bancário, deixavam a economia americana carente de crédito e no final também arrastaram a Europa.

Desta vez, os banqueiros centrais estão buscando de forma resoluta por estratégias para evitar essa cadeia de eventos. E diferente da abordagem nos anos 30, é um esforço global, movido por uma comunidade solidária de banqueiros centrais que estão cientes de que os erros da era da Depressão mancharam sua credibilidade por muitos anos depois.

"A necessidade de evitar essa próxima depressão exerce um grande papel nas decisões políticas americanas", disse Paul de Grauwe, um professor de economia internacional da Universidade Católica de Leuven, na Bélgica. "Mas também está presente na Europa, porque nós temos experiências com crises bancárias em vários países. Pode não ser tão intensa, mas não está ausente."

O presidente do Fed nos anos 20, Benjamin Strong, previu o potencial de uma crise bancária que interromperia o crédito e foi um dos poucos americanos a entender que os laços financeiros entre os Estados Unidos e a Europa tornavam o problema global.

A solução, em suas palavras, era os bancos centrais "inundarem o mercado de dinheiro".

Strong morreu em 1928, de forma que não vivenciou a distopia monetária que se seguiu quando o Fed se absteve de emprestar em resposta ao crash da bolsa de valores de 1929. A outra metade do cenário de Strong se tornou verdadeira em 1931, quando uma corrida ao banco austríaco Creditanstalt se transformou em uma crise bancária européia que os bancos americanos amplificaram, ao cobrarem empréstimos feitos à Alemanha e outros países.

O sistema bancário atual está se desalavancando, um termo deselegante para o que aconteceu com os efeitos catastróficos nos anos 30. Os bancos diluíram os prejuízos associados ao mercado imobiliário americano sem vida e se recapitalizaram, seja atraindo novos investidores ou vendendo a si mesmos para instituições mais fortes, de forma que podem retomar os empréstimos.

Esse processo às vezes terminal mal: o Lehman Brothers é uma adição recente à lista, e o Washington Mutual, a maior instituição de empréstimos e poupança nos Estados Unidos e que já esteve entre as instituições financeiras mais bem-sucedidas do país, está negociando sua venda para um banco mais forte. Este é o motivo para até mesmo bancos saudáveis guardarem dinheiro em uma crise.

Os eventos tomaram um rumo indesejado na quarta-feira, quando ficou claro que mesmo os fundos do mercado de dinheiro, repositórios de poupanças no valor de até US$ 3,5 trilhões, estavam reduzindo seus empréstimos para assegurar a capacidade de atender qualquer saque de dinheiro de seus clientes.

Isso chegou perto do equivalente do século 21 a guardar dinheiro sob o colchão por precaução - exatamente o que o presidente Franklin D. Roosevelt pediu aos americanos que não fizessem durante a Depressão. O ecossistema de crédito funciona atualmente pela canalização dos depósitos de indivíduos para papéis emitidos pelos, entre outros, mesmos bancos cujo futuro parece tão sombrio. Todo medidor da disposição de emprestar ficou confuso no meio da semana, notadamente a Libor (Taxa Interbancária do Mercado de Londres), uma taxa referencial de tomada de dinheiro que influencia os empréstimos ao redor do mundo. O rendimento dos ultra-seguros títulos do Tesouro americano despencou enquanto o dinheiro procurava um refúgio, uma experiência que deixou até mesmo profissionais calejados se esforçando para entender a magnitude da desconfiança.

"Há uma total falta de confiança", disse Jim O'Neill, economista chefe da Goldman Sachs, em Londres. "É o mais extremo desde o início da crise de crédito."

A injeção de dinheiro anunciada na quinta-feira funcionará por meio de linhas de swap (troca) de várias moedas em até US$ 180 bilhões com o Fed, com grande parte do dinheiro destinado ao Banco Central Europeu (BCE). Esse dinheiro então fluirá para o sistema bancário, permitindo aos bancos comerciais tomarem empréstimos mais facilmente entre eles e junto aos seus bancos centrais.

Mais importante, e diferente do que aconteceu nas injeções de dinheiro coordenadas anteriores, o Fed, o BCE e outros bancos centrais prometeram explicitamente dar continuidade às injeções de dinheiro enquanto os mercados de dinheiro permanecerem em turbulência.

Após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, o Fed reduziu sua taxa referencial de juros para 1% e prometeu mantê-la assim por tempo indeterminado para criar um cobertor de segurança de crédito contínuo. O estrategista por trás dessa medida - Alan Greenspan, na época o presidente do Fed - agora é amplamente culpado por manter o dinheiro barato demais por tempo demais, provocando as bolhas de imóveis cujo estouro agora está causando tanto caos nos Estados Unidos e em outros lugares.

O atual corpo de banqueiros centrais quer evitar uma expansão permanente semelhante da oferta de dinheiro, mantendo ao mesmo tempo o fluxo de dinheiro aos bancos e ao restante da economia.

A ação da quinta-feira cria uma linha de rolagem de crédito administrada globalmente, cujos termos podem ser lentamente endurecidos, por meio de taxas de juros mais altas e volumes menores de empréstimo, à medida que os bancos se recapitalizarem e a confiança retornar entre emprestadores e tomadores de empréstimo. Essa perspectiva preserva um instrumento para os banqueiros centrais usarem contra os bancos que não se curarem sozinhos.

"Eles estão jogando um jogo da galinha muito delicado", disse O'Neill. "E estão fazendo um bom trabalho, sob circunstâncias muito difíceis."

Será que funcionará?
Uma lição do passado é que as crises de amanhã nascem dos riscos não previstos hoje. Esse é um motivo para O'Neill e outros analistas esperarem mais medidas heterodoxas por parte dos bancos centrais e outras autoridades que sabem o que desejam fazer - manter o fluxo de crédito - mas que se mostraram flexíveis em relação a como fazê-lo.

Mas o sucesso deles depende dos próprios bancos.

Levantar dinheiro para refazer um colchão de capital exige a emissão de novas ações, fusão ou venda de grandes participações acionárias, medidas que raramente são populares junto aos atuais acionistas mesmo nas melhores circunstâncias. E os presidentes-executivos freqüentemente perdem seus empregos ao adotarem essas medidas dolorosas.

Mas elas são necessárias antes dos financistas poderem retornar à sua atividade normal de emprestar dinheiro para lubrificar as engrenagens do comércio.

"Eles não estão agindo como bancos atualmente", disse Charles Wyplosz, diretor do Centro Internacional de Estudos Bancários e Monetários do Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais, em Genebra. "Eles estão agindo como fortalezas sitiadas."

Tradução: George El Khouri Andolfato

[International Herald Tribune, 19/09/2008]

Febre pentecostal invade os campos de futebol e se espalha entre brasileiros

Muitos brasileiros que jogam por clubes de futebol europeus são membros de congregações pentecostais e estão determinados a divulgar sua fé. Apesar dos jogadores terem que doar um décimo de sua renda considerável para suas igrejas, eles freqüentemente não sabem onde vai parar o dinheiro

Cathrin Gilbert

Marcelo Bordon, um zagueiro de futebol, é um verdadeiro urso. Ele está sentado no restaurante de propriedade do Schalke 04, o time da Bundesliga (o campeonato alemão de futebol) no qual joga. Com seu cabelo alisado para trás, corpo musculoso e tatuagens, ele poderia facilmente se passar por um guarda de prisão em Nova Jersey. Mas ele fala suavemente, explicando o amor que o ajuda quando está em dificuldades, e sobre aquele que sempre esteve lá para ajudá-lo, desde que entrou na sua vida.

Bordon fala do Espírito Santo.
O brasileiro de Ribeirão Preto, que veio para a Alemanha em 1999, é um evangélico. Ele é membro de uma igreja pentecostal carismática, que prega um respeito rígido à Bíblia e um "relacionamento pessoal com Deus". Esta é, segun
do ele, a única igreja verdadeira de Jesus Cristo. Bordon, 32 anos, exibe uma tatuagem entre seus ombros, com as palavras "Jesus é minha Força" gravadas em sua pele em letra ornada.

A Bíblia nos diz para sermos soldados de Deus, ele diz, tomando um suco de maçã.

Cerca de 35 milhões de brasileiros - quase um entre cinco - são evangélicos. O número deles cresce em dois milhões ao ano, e 70% deles são, como Bordon, membros de congregações pentecostais carismáticas.

Há 40 anos, o Brasil ainda era um país 90% católico. Mas agora que os evangélicos mudaram seu foco da conversão dos pobres para a pregação de que a riqueza e o consumo são sinais de verdadeira fé, eles estão começando a ter apelo junto a artistas, políticos e atletas bem remunerados. Os jogadores de futebol, uma das exportações mais bem-sucedidas do Brasil, estão levando sua fé para o mundo.

No passado, eram jogadores como Jorginho e Paulo Sérgio do Bayer Leverkusen que convidavam publicamente outros jogadores para participarem dos grupos de discussão da Bíblia. Depois disso, jogadores como Zé Roberto e Lúcio do Bayern de Munique, ou Cacau do Stuttgart, exibiam suas camisetas brancas com frases como "Jesus Te Ama" após cada gol em uma partida da Bundesliga. Eles tiravam mecanicamente a camisa do seu time que vestiam sobre suas camisetas de Jesus.

Agora que a Fifa, a federação internacional de futebol, proibiu toda declaração política e religiosa no material esportivo dos jogadores, os evangélicos passaram a celebrar de forma mais discreta. O meio-campista Gilberto, que jogou pelo Hertha BSC de Berlim até janeiro, agora reza em Londres, no Tottenham Hotspur, o jogador Edmílson ora em Villarreal, Espanha, Cris, em Lyon, Luisão, em Lisboa, e o astro Kaká, em Milão.

Eles pregam com a ajuda do ouro brasileiro, o futebol, que une as pessoas. Do ponto de vista das congregações, é uma estratégia de marketing eficaz.

As igrejas do movimento pentecostal carismático, que se espalharam pelo Brasil vindas dos Estados Unidos na primeira metade do século 20, se chamam Assembléias de Deus, Renascer em Cristo ou Igreja Universal do Reino de Deus. Algumas já se espalharam para mais de 70 países. Todos os membros compartilham a crença de que Jesus entrou em seus corpos na forma do Espírito Santo.

Bordon, o capitão do Schalke, se juntou a outros evangélicos na Bundesliga, assim como cerca de 100 outros atletas do Brasil e formaram uma organização chamada Atletas de Cristo. A missão deles, como declarada em seu site, é converter o mundo ao cristianismo. Quando dispõe de tempo, Bordon se encontra com seus irmãos para cultos religiosos.

No campo de treinamento, Bordon convidou o manager do Schalke, Andreas Müller, um mórmo
n, para participar de um círculo bíblico. O trabalho missionário faz parte do compromisso assumido por Bordon quando foi para a Europa como um atleta de Cristo. "Deus queria que eu viesse para a Alemanha para espalhar sua palavra", ele diz.

Bordon já teve um bate-boca com seu companheiro de equipe Frank Rost. O goleiro, atualmente no Hamburgo SV, disse que o capitão tentou voltar outros jogadores contra ele por ter se recusado a orar com Bordon. Rost alega que Bordon disse aos treinadores e managers que ele, Rost, o embaraçava por estar possuído pelo diabo.

O jogador brasileiro nega. Rost e Bordon, com suas personalidades completamente diferentes, simplesmente eram incompatíveis, diz Müller. Mas o ex-atacante Ailton do Schalke também diz que ocorreram discussões com Bordon que quase acabaram em socos. Segundo Ailton, Bordon o acusou de não ter um relacionamento pessoal com Deus e, em conseqüência, abrir o caminho para o diabo ter acesso ao time. Mas, segundo Ailton, ele simplesmente não acreditava na versão de Bordon para a salvação.

'O dia mais comovente da minha vida'
Ailton não permitiu que o Espírito Santo entrasse em sua vida, diz Bordon. Para ele, isso aconteceu em 1994. Ele estava sentado na última fileira de uma pequena igreja em São Paulo. Os amigos o convenceram a ir junto. Ele começou a sentir um calor em suas pernas, ele diz, naquele que considera "o dia mais comovente da minha vida".

De repente, como recorda Bordon, seus pés começaram a bater no chão, como se tivessem vontade própria, primeiro lentamente, e depois cada vez mais rápido. Todos na congregação de 400 pessoas olharam para ele, mas o pastor disse que deviam deixá-lo marchar.

Àquela altura, diz Bordon, ele tinha conseguido tudo o que tinha sonhado na infância: dinheiro, reconhecimento e belas mulheres. Mas ele não se sentia realizado.

As congregações pentecostais visam membros da classe média alta brasileira. Parte de seu objetivo, aparentemente, é assegurar as doações dos cidadãos em boa situação financeira. No passado, os membros eram proibidos de beber álcool, fumar, assistir televisão ou irem ao cinema ou teatro. Atualmente as igrejas evangélicas pregam que a riqueza e o divertimento são compatíveis com um estilo de vida cristão. Isso torna a fé mais atraente.

Os membros da igreja até mesmo acreditam que a riqueza material é uma recompensa por levarem uma vida temente a Deus. Por outro lado, eles também devem se tornar ricos para serem bons cristãos, a lógica sendo a de que os ricos podem doar mais dinheiro, e que aqueles que doam grandes somas de dinheiro são boas pessoas.

'Esta fé na riqueza é viciante'
Esta expansão das igrejas evangélicas carismáticas preocupa Reinhard Hempelmann, diretor do Centro Protestante para Assuntos Religiosos e Ideológicos, em Berlim. "Esta fé na riqueza é viciante." Talvez Hempelmann, na condição de teólogo, não seja totalmente neutro nesta questão. Ele está familiarizado com os problemas das igrejas tradicionais, que estão perdendo mais e mais fiéis, alguns para as comunidades pentecostais. Todo o ser humano tem o direito de escolher seu lugar de adoração, diz Hempelmann, mas ele desaprova a noção de comprar a salvação.

Bordon está familiarizado com essas críticas. Ele pergunta o que há de errado em ajudar os membros mais fracos da sociedade a ganharem estrutura em suas vidas. Os evangélicos doam 10% de sua renda para a igreja e acreditam que quanto maior a oferta, maiores são suas chances de assegurar felicidade e sucesso. Segundo estimativas do Brasil, o Jogador do Ano pela Fifa, Kaká do Milan, envia cerca de US$ 1,1 milhão para o Brasil a cada ano. É visto como um sinal de Deus - e de que ele provavelmente doou muito pouco - quando um jogador não tem sucesso ou se machuca. A oferta de 10% da renda é um "sinal da lealdade do homem a Deus", prega a Igreja Universal.

Aqueles que se recusam a pagar estão enganando a Deus e podem esperar que o diabo domine suas vidas. Isso é apenas uma teologia de acúmulo de riqueza, dizem sarcasticamente críticos como Alexandre Fonseca, da Universidade de São Paulo.

Os membros não sabem o que acontece exatamente com suas doações, que pagam até com cartão de crédito ou cartão de débito. Bordon diz que não tem como monitorar o que acontece com seu dinheiro. Ele presume que é investido em centros comunitários nas áreas pobres, em comida para os irmãos e irmãs e em educação. "Mas confiar não faz parte da fé?" ele pergunta.

Em 2005, um bispo evangélico foi preso quando seu jato particular pousou em Brasília. A polícia revistou sua bagagem e apreendeu sete mala cheias com aproximadamente R$ 10 milhões em notas pequenas. O bispo, Ramos da Silva, explicou que dinheiro era o dízimo do fim de semana das congregações da região amazônica, uma das mais pobres do Brasil.

Um ano e meio atrás, a polícia nos Estados Unidos prendeu Estevam e Sônia Hernandes, o casal que fundou a Igreja Renascer em Cristo, com US$ 56 mil em sua bagagem. Eles foram sentenciados a cinco meses de prisão por contrabando de dinheiro ao país. Eles estão sob investigação no Brasil por lavagem de dinheiro. O Ministério Público de São Paulo também contatou as autoridades na Itália para levantar o relacionamento entre o jogador Kaká e o casal de bispos, cujo patrimônio é estimado em US$ 75 milhões.

Acredita-se que Kaká também visitava frequentemente o casal Hernandes na mansão deles em São Paulo. Ele doou o troféu que recebeu da Fifa em dezembro para a Igreja, durante uma cerimônia. Ele agora está exibido no principal prédio da Igreja, em São Paulo, onde Kaká se casou em 2005. A lista de convidados incluiu Ronaldo, o ex-jogador da Seleção Brasileira, e Zé Roberto, do Bayern de Munique. Os filhos do casal Hernandes foram os padrinhos. Kaká não se impressionou com as acusações contra os líderes de sua Igreja. "Eu nunca, nem por um momento, questiono a honestidade e integridade deles", ele disse, mesmo após a condenação dos bispos.

Construindo um império de mídia
Bordon diz que soube dos problemas na Renascer em Cristo, mas que não sabe o que pensar a respeito. O que é importante para ele, ele diz, é que seus companheiros encontrem o caminho para o Senhor.

O jogador do Bayern de Munique, Lúcio, não tem receio em promover sua fé. O Audi que dirige, que é de propriedade do clube, está adornado com um adesivo que proclama seu lema: "Jesus Te Ama". A direção do clube, incluindo o manager Uli Hoeness, não se incomoda com isso. Para eles, os brasileiros são atletas profissionais modelos. Eles não deixam as festas de Natal do clube mais cedo para passar a noite farreando em clubes, possuem vida familiar estável e não se embebedam na Oktoberfest anual.

Os evangélicos construíram um pequeno império de mídia no Brasil. Em 1989, a Igreja Universal do Reino de Deus comprou a Record, uma rede de rádio e televisão, pelo equivalente a US$ 62 milhões. Ela agora é dona de cerca de 60 emissoras de rádio, um jornal, uma editora e uma gravadora especializada em música gospel.

A TV Record exibe regularmente os cultos religiosos. Ela conseguiu atrair importantes apresentadores de emissoras rivais, enquanto autores conhecidos fornecem roteiros para suas novelas. Hoje a Record é a segunda maior rede de televisão do Brasil e tem planos para desenvolver uma espécie de versão pentecostal carismática da CNN, que transmitiria em espanhol e inglês. Assim, diz Edir Macedo Bezerra, o fundador da Igreja Universal, o evangelho pode ser "pregado para todos os cantos da Terra".

Mas até que a emissora possa rodar o mundo, os membros da Igreja ainda pregam em ginásios ou salões de conferência não adornados, como fizeram em uma tarde de domingo, no segundo andar de um prédio comercial no distrito de Zuffenhausen, em Stuttgart, em nome da comunidade cristão evangélica brasileira. O sol está brilhando pelas janelas, algumas poucas velas decoram a sala, há uma bateria montada no palco e o assoalho foi varrido. Centenas de fiéis vieram ao culto. Um homem usando óculos com armação prateada e uma camisa xadrez está em pé à frente. Seu nome é Jeronimo Maria Barreto Claudemir da Silva, mais conhecido como Cacau, e é atacante do Stuttgart, um time da Bundesliga, há cinco anos.

Os jogadores de futebol são os astros nas congregações evangélicas alemãs. Após dizerem algumas poucas palavras de saudação em português, que um intérprete traduz para os alemães presentes, Cacau, 27 anos, pede que todos abracem uns aos outros. Isso é seguido por cantos, dança e bater de palmas. Então o jogador de futebol profissional diz uma oração em tom sereno. A congregação chora e os fiéis pressionam suas mãos contra os olhos ou erguem seus braços no ar. "Em nome do Senhor, aleluia!" eles gritam.

Em 10 minutos, Cacau, um jogador tímido, se transforma no condutor de um show emotivo.
Aos 13 anos, o atacante diz depois, ele foi recrutado pelo Palmeiras em São Paulo, mas foi descartado quando um novo técnico foi contratado. Sua autoconfiança desapareceu. Seu irmão estava fazendo uma visita a ele na época, diz Cacau, um irmão que era viciado em bares e clubes. "Mas de repente ele parecia diferente. Então maduro e equilibrado. Ele me disse que seu comportamento era por causa de Jesus. Ele me levou aos cultos. Antes disso, eu acreditava que o futebol era o centro da minha vida."

Cacau diz que aceitou Jesus como seu salvador. Ele diz isso de imediato e com entusiasmo, mas não tenta promover sua fé dentro da equipe. Não, segundo ele, por ter vergonha. Ele simplesmente não quer pressionar ninguém.

Tradução: George El Khouri Andolfato

[Der Spiegel, 18/09/2008]

Confissões de um ignorante


O modelo torna-se mais importante. Morrem a curiosidade científica e o respeito pelo real

COM LÉPTONS, bósons e glúons mantenho relações de distância respeitosa: admiro-os, aprecio que circulem por aí em liberdade, mas meu interesse não vai além disso.
Fico sabendo da inauguração de um gigantesco colisor de hádrons na Suíça e me sinto até injusto. Diante dos enormes esforços internacionais conjuntos para fazê-lo funcionar, sei que estou perdendo alguma coisa, mas mantenho a recôndita felicidade de não saber bem o que é isso que perdi.
É um daqueles assuntos que desisto de entender antes mesmo de tentar que me expliquem. Sou dos tempos em que o átomo era um simpático sistema solar em miniatura, com os elétrons em volta do núcleo, formando um desenho que imitava a forma dos alfinetes de fralda.
Já não existem mais alfinetes desse jeito, graças a Deus, e o velho modelo de Rutherford já estava ultrapassado quando me fizeram tomar conhecimento dele. É culpa minha, se não me atualizo nessas matérias de ciência; não faltam excelentes livros de divulgação. Mas não é culpa minha, se o que caiu nas minhas mãos foi "O Universo numa Casca de Noz", de Stephen Hawking. Vinha com ilustrações lindas, mas era didático só na aparência; dois parágrafos bastaram para que ninguém entendesse mais nada.
Não é, entretanto, o único livro de divulgação científica a fazer sucesso.
As livrarias estão cheias de títulos capazes de atender à curiosidade de leitores menos traumatizados do que eu.
Minha pergunta é simples. Se há tanta coisa interessante nesses livros, por que transformam o ensino de ciências no ginásio e no colégio uma coisa tão chata e tão difícil?
Não seria melhor dar ao aluno uma "formação científica" geral, com base em livros desse tipo, do mesmo modo que se fala em dar uma "formação humanística" ou "formação literária"?
De resto, seria tudo "formação humanística": entender o método da ciência, a beleza da ciência, o engenho humano utilizado nas experiências e invenções, haveria de ser bem melhor do que treinar, como um cão pavloviano, centenas de exercícios de ótica e de química orgânica.
Por sorte, não tive de lidar com esses bichos-papões na minha vida escolar. Logo fui para humanas, e o que tive de ciências foi o básico do básico. Mesmo assim, quando me lembro das aulas e das lições de casa, experimento uma revolta comigo mesmo e com o sistema escolar.
Só agora, por exemplo, ocorrem-me algumas perguntas que qualquer aluno de sétima série deveria fazer; e me parece grave que não surjam com freqüência na sala de aula.
Não me refiro à clássica questão, esta sempre repetida: "Para que serve essa joça?" Passo por cima disso, e vou a alguns casos concretos. Por exemplo, todos nós aprendemos as leis de Mendel, e o famoso exemplo das ervilhas de casca rugosa e lisa, logo em seguida transposto para a genética humana: genes de olhos azuis são recessivos, para olhos negros são dominantes.
Todo mundo entendeu? Então, dá-lhe lição de casa. O que me espanta é que ninguém pergunte ao professor, numa hora dessas, como fica o caso dos que têm olhos castanhos, ou de um verde amarronzado... Deve haver alguma explicação para isso; envergonho-me de nunca tê-la solicitado.
Aprender o modelo torna-se mais importante do que qualquer questionamento. Duas coisas morrem nessa sala de aula: o espírito de inquirição científica e o respeito aos fatos da vida real.
Outro exemplo. A gente aprende na escola que a carga positiva atrai a negativa, e até nos dão uns ímãs para provar que é impossível juntar seus pólos positivos. Na aula seguinte, estamos aprendendo sobre átomos e, no célebre núcleo, encontramos um grupo de prótons grudadinhos um no outro.
Novamente, ninguém levanta a mão e pergunta por que, dentro do núcleo, o positivo está grudado com outro positivo. Alguém poderia levantar essa dúvida; os professores poderiam estimulá-la, até. Mas todo mundo vai em frente na matéria.
Longa vida, em todo caso, ao novo colisor de hádrons. Fico desconfiado, é verdade, com o tamanho da geringonça: 27 km! Uma coisa dessas sempre me parece meio primitiva, como os computadores a válvula, que ocupavam salas enormes. Como os primeiros marca-passos de coração, que tinham o tamanho de um armário. Ou como os dinossauros. E como eu mesmo, que já estou bem crescidinho para fazer perguntas aos professores que não tenho mais.

MARCELO COELHO

[Folha de São Paulo, 17/09/2008]

O Brasil procura formas de fazer o melhor uso possível do seu novo status de grande potência petroleira

Jean-Pierre Langellier, no Rio de Janeiro

Alguns dias atrás, numa plataforma petroleira ao largo do litoral do sudeste do seu país, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva deixou-se levar por um ímpeto de lirismo que era sem dúvida justificado. "Este é um sinal de Deus, um passaporte para o futuro", exclamou, referindo-se às imensas jazidas de petróleo e de gás que foram descobertas recentemente nas águas muito profundas do Atlântico.

O entusiasmo do presidente Lula não parece ser exagerado. Um tesouro energético, situado a cerca de 250 quilômetros ao largo dos Estados de Santa Catarina, São Paulo, do Rio de Janeiro e do Espírito Santo aguarda para ser explorado. Esses campos petrolíferos estendem-se ao longo uma faixa de 800 quilômetros de comprimento, e de 200 quilômetros de largura. O "ouro negro" que eles contêm está enterrado numa profundidade que varia de 5.000 a 7.000 metros, debaixo de uma espessa crosta de sal que chega a alcançar 2.000 metros.

A jazida de Tupi, que foi descoberta em novembro de 2007 na bacia de Santos, contém entre 5 e 8 bilhões de barris recuperáveis, de um petróleo bruto leve, e, portanto, bastante fácil de refinar a um custo moderado. Na melhor das hipóteses, ele representaria por si só a totalidade das reservas da Noruega. A jazida de Tupi sozinha permitiu duplicar as reservas comprovadas do Brasil, as quais passaram para 14 bilhões de barris. Já, os campos situados em alto-mar, segundo permitem afirmar as previsões atuais, poderiam conter entre 50 e 80 bilhões de barris.

Quer essas previsões sejam, ou não, inteiramente confirmadas, uma coisa é certa: o Brasil está no processo de tornar-se uma grande potência petroleira. O país produz atualmente 2,3 milhões de barris/dia. E quando a jazida de Tupi entrar em atividade, daqui até 2015, ele produzirá mais de 4 milhões barris/dia.

Em 2 de setembro, o chefe do Estado deu a autorização oficial para deslanchar o programa de extração nas águas muito profundas, a partir da plataforma P-34 da companhia nacional Petrobras. A exploração deste poço de perfuração servirá como experiência "piloto", e como referência para aquela da jazida de Tupi.

Em função da sua amplidão, essa "divina surpresa" petroleira conduziu o governo a se interrogar a respeito de três questões: quem vai administrar a produção das "megareservas" em águas muito profundas? Quem receberá e gerenciará as grandes quantidades de dinheiro que elas irão gerar? Qual será a sua utilização?

Sem querer lesar em demasia a "nossa cara Petrobras" - conforme esta é chamada pelo presidente Lula -, o governo está desde já inclinado a entregar a administração dos futuros campos para uma nova agência de Estado, bastante similar àquela que existe na Noruega. Este organismo aplicaria os dividendos do petróleo num fundo soberano que seria encarregado de fazê-los frutificarem. Um comitê interministerial deverá pronunciar-se a respeito deste projeto até o final do ano.

Movido por uma propensão ao nacionalismo petroleiro, o Estado quer, ao mesmo tempo, controlar melhor a produção e aumentar seus lucros. Foi em função desta orientação que a atribuição das concessões para perfuração foi suspensa em 2007. A lei será alterada e os futuros contratos serão menos favoráveis para as companhias estrangeiras, pois elas deverão pagar royalties mais elevados para o Estado. "Está fora de cogitação que deixemos os lucros provenientes do petróleo nas mãos de uma meia-dúzia de sociedades", avisou o presidente brasileiro.

As multinacionais do setor estão preocupadas diante da perspectiva de se verem retirar uma parte dos recursos apetitosos prometidos pelas recentes descobertas. Elas insistem no fato de que o Brasil vai precisar do seu dinheiro para a implementação dos enormes investimentos exigidos pela exploração em águas muito profundas.

As autoridades de Brasília também estão interessadas numa nova repartição das riquezas petroleiras - cuja exploração movimentou US$ 7,4 bilhões (cerca de R$ 13,25 bilhões) em 2007. Esta redistribuição deverá ser mais favorável para o Estado federal e menos generosa para com os Estados federados e as municipalidades, que são suspeitados de desperdiçá-las. O orçamento do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, tem sido amplamente alimentado pelo "ouro negro". "O petróleo pertence à União", lembrou o presidente Lula.

O que fazer com esse dinheiro? O presidente pretende utilizá-lo para viabilizar dois objetivos sociais: financiar a educação e erradicar a pobreza. O aumento considerável desses recursos pressupõe implantar uma indústria petroleira poderosa. Esta última estimulará, por meio de um virtuoso contágio, os outros setores industriais, e deverá fazer com que o país passe a vender para a Europa, os Estados Unidos e o Japão produtos refinados de forte valor agregado, tais como o diesel.

No dia em que a sua produção superar as necessidades nacionais, o Brasil não pretende exportar petróleo bruto. Foi por esta razão que ele recusou educadamente o recente convite para tornar-se um integrante da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), que lhe havia sido transmitido pelo Irã.

Tradução: Jean-Yves de Neufville

[Le Monde, 13/09/2008]

Che Guevara mais ambíguo vende ainda mais

O magnetismo do herói revolucionário cresce entre jovens que renunciam ao maniqueísmo

José Andrés Rojo

Foram os jovens da década de 1960 que transformaram o Che Guevara em um ícone que resumia sua rejeição radical à sociedade capitalista. E são os jovens de hoje que o levam incorporado como uma tatuagem ou em suas camisetas ou cinturões. A mensagem do guerrilheiro pegou naquela época, e ainda no final dos anos 1980, segundo Jon Lee Anderson, um de seus biógrafos, "havia em todo o mundo cerca de 40 guerrilhas que utilizavam a violência para mudar o mundo". Hoje, porém, não parece que a mensagem revolucionária seja a que pega entre a maioria dos jovens. "Não interessam mais os heróis íntegros, são os personagens ambíguos que atraem as novas gerações", afirma o sociólogo Enrique Gil Calvo.

Na última sexta-feira estreou a primeira parte do novo filme sobre Che Guevara dirigido por Steven Soderbergh e estrelado por Benicio del Toro. O personagem famoso, que há tempo é também ícone da cultura de massa, conserva uma excelente saúde. O filme é exibido na Espanha em 340 salas e, segundo os dados provisórios de bilheteria, foi o mais visto no último fim de semana.

O fascínio pelo revolucionário mítico se mantém intacto? As novas gerações incorporaram o guerrilheiro como referência de suas expectativas vitais? Ou o que ocorre corresponde simplesmente a estratégias de mercado, ao bom faro de garimpeiros que voltaram a explorar um filão riquíssimo?

"Vivemos em um mundo pós-ideológico, globalizado, em que reina o consumismo e o sentido pragmático e onde a pessoa real, que tem os pés na terra, está preocupada em pagar a hipoteca da casa, as promissórias do carro ou decidir para onde fará a próxima viagem. Que lugar há nesse contexto para a revolução?" Quem fala é o jornalista americano Jon Lee Anderson, autor da biografia mais célebre do guerrilheiro, "Che Guevara - Una vida revolucionaria" (ed. Anagrama), e assessor histórico de Soderbergh no filme.

"Refiro-me aos países ricos do Ocidente, mas não se deve esquecer o outro mundo. Aí ainda estão vigentes essas ideologias aparentemente esgotadas, e é onde o personagem histórico de Che tem muito a dizer. Incluso entre os novos russos, como Abramovitch, há ares de superpotência, e embora não creiam em uma revolução intercontinental não lhes parece ruim a identificação com um símbolo popular que fala de justiça e de ajuda aos desfavorecidos."

"O mito do Che cresceu alimentado pela sociedade em que vivemos, frívola e materialista, que está justamente nos antípodas dos valores que ele representa", explica o escritor argentino Pacho O'Donnell, autor de outra biografia do personagem, "Che - La vida por un mundo mejor" (ed. Plaza & Janés). "A queda do regime comunista também o privou de sua condição ideológica, e assim restaram dele o idealismo e sua força de personagem épico. Quanto mais crescer a carência de valores, mais crescerá esse mito."

Steven Soderbergh contou em Cannes, quando apresentou pela primeira vez as duas partes do filme, que a decisão final de rodá-lo o assaltou quando viu a imagem do revolucionário na nádega de uma mulher em Nova York. "Tenho certeza de que aquela garota não tinha idéia de quem era aquele sujeito que levava tatuado. E essa foi minha idéia: dar uma história à foto da camiseta."

O Che está em toda parte. Ou melhor, a imagem do Che que procede da fotografia que Alberto Korda fez dele em 1960 durante um comício em Havana está em toda parte. Há garotas que a levam pintada em cada uma das unhas, foi estampada em copos e chaveiros, está em latas, tatuado em qualquer parte do corpo. De que Che se fala então, se é que são diferentes? Do que esteve em Sierra Maestra combatendo Batista (entre muitas outras coisas), ou do que está estampado nos porta-copos de uma discoteca da moda? Têm algo em comum?

"A partir de 1956 os jovens radicais da Europa ocidental se afastaram da experiência comunista desanimadora da Europa do Leste para buscar inspiração em lugares mais distantes", conta Tony Judt em seu livro "Postguerra" (ed. Taurus). E a partir de 1967, ele explica, o movimento de contracultura adotou uma linha mais dura, "por associação com os relatos idealizados dos rebeldes da guerrilha do Terceiro Mundo". Em 1968 apareceu o pôster de Guevara, e uma imensa quantidade de jovens o transformou em referência. Fascinou sobretudo aos intelectuais europeus, comenta o ensaísta cubano Iván de la Nuez. "Procuravam causas distantes com as quais comungar, e houve muitos que se renderam diante da figura do Che, de Sartre a Wim Wenders. Ou Regis Debray, que aderiu à guerrilha na Bolívia."

E os jovens de hoje? "A imagem do Che faz parte da hagiografia interclassista pós-moderna de muitos jovens, ao lado de outras celebridades que funcionam como ícones românticos", comenta o sociólogo Gil Calvo. "Mas não creio que seja capaz de mobilizá-los para a esquerda. As coisas mudaram muito e os heróis atuais da juventude não são íntegros, lhes interessa mais a ambigüidade moral. Aí está o Darth Vader, o lado escuro da força."

De la Nuez dirige a programação do Palau de la Virreina em Barcelona, onde foi apresentada há um ano a exposição "Che! Revolución y mercado", que mostrava o destino que teve o ícone. "É curiosa a distância existente entre a unilateralidade do Che e a multilateralidade do ícone", diz ele. "A invenção do pôster é do editor italiano e militante de esquerda radical Giangiacomo Feltrinelli, que o publicou como apoio publicitário para acompanhar a promoção do 'Diario en Bolivia del Che'. O título dado tem um lado psicodélico e é um gesto a uma canção dos Beatles: 'Che in the sky with jacket'. Um homem fotogênico que morre jovem e deixa um belo cadáver. Que mais se pode pedir em uma época que cultuava a juventude?"

Jovem, bonito, viril. "O Che não é uma invenção de Andy Warhol", observa Jon Lee Anderson. "Por trás do ícone há a história de um revolucionário, e mesmo que tenha se transformado em um símbolo de consumo há quem pense que através do fetiche pode chegar a suas idéias." Gil Calvo não compartilha essa idéia, no que se refere aos jovens das sociedades ocidentais. "Não creio que possa lhes interessar nada que tenha a ver com a guerrilha e com ideais da velha esquerda tradicional. Estão mais próximos dos movimentos antiglobalização ou das idéias ecológicas."

O caso é que cada um interpreta a imagem a sua maneira. De la Nuez: "O personagem histórico tinha muito claro o que queria, e o deixou registrado nos livros que escreveu. Era um revolucionário, acreditava na violência como caminho para pôr o mundo do avesso e, diante da importância da revolução, sentia um profundo desprezo pela sua vida e a dos demais". No cartaz de Korda, por outro lado, observa que "cada um pode encontrar o que quiser: desejo de justiça, uma vida épica e romântica, a entrega aos outros, a autenticidade de princípios. Vale tudo".

Pacho O'Donnell ainda não viu o filme de Soderbergh. "Trata de sua infância?", pergunta. Não, não trata. Começa no México em 1955, quando ele conhece Fidel Castro. "É muito difícil conhecer o Che sem conhecer sua infância", ele diz. "Foi um menino contemporizador, conciliador, sem nenhuma tendência à violência. Não há histórias dele de brigas com companheiros ou com seus irmãos, tão próprias dos rapazes. Sua opção pela violência foi tardia e totalmente racional, ideológica. Pensava que à violência desenfreada de seus inimigos só se poderia responder com uma violência da mesma intensidade."

A primeira parte do filme se detém no caminho para Havana. Não se conta nada de seu trabalho imediatamente posterior na Fortaleza de la Cabaña, onde foi encarregado de liquidar, com julgamentos muito sumários, os assassinos e torturadores do regime de Batista. "Muitos afirmam que ele exagerou e de passagem cuidou de todos os dissidentes da revolução", comenta O'Donnell. "Em todas as revoluções há excessos, basta consultar a história, e do trabalho sujo da cubana o Che se encarregou", acrescenta.

O'Donnell lembra que Bernard-Henry Lévi lhe disse em Paris, quando lançou sua biografia na cidade, que o ideal da pureza na política é trágico porque leva ao fanatismo. Anderson observa que Soderbergh já se protegeu em Cannes das possíveis críticas quando disse que seu trabalho fala do Che que ele descobriu, e que não pretendia se deter em cada um dos episódios que ele viveu. "Talvez não tenha rodado 20 minutos de fuzilamentos, mas o Che doutrinário e rígido está em seu filme."

"Todo mundo fica com a idéia de que o Che era alguém disposto a morrer por um ideal, e se esquece de que também estava disposto a matar por ele", salienta O'Donnell. No filme ordena que fuzilem dois guerrilheiros que cometeram erros: um roubando os camponeses, outro violentando uma jovem. Em seu diário conta de maneira clara a execução de um traidor. O exército de Batista havia apanhado um guerrilheiro e perdoou sua vida em troca de informações. Mas os revolucionários o descobriram e Castro lhe anunciou que seria executado. O'Donnell cita em seu livro a referência que o Che fez do episódio: "A situação era incômoda para as pessoas e para ele, então acabei com o problema dando-lhe na fronte direita um tiro de pistola 32, com orifício de saída na têmpora esquerda. Estremeceu um pouco e ficou morto".

Portanto, o Che volta a fascinar, embora Gil Calvo indique que o faz "mais como ícone pós-moderno do que como revolucionário". Anderson salienta que esse Che é o de Soderbergh, que se poderiam fazer milhares de outros filmes concentrando-se em episódios diferentes. "Foi um revolucionário que nunca se interessou pela democracia", diz De la Nuez. O'Donnell salienta sua vocação de sacrifício: "Quando terminou a medicina, ia se dedicar à cura de leprosos na Venezuela, mas acabou na Guatemala. Ali assistiu à derrubada de Jacobo Arbenz por ter tocado nos interesses dos latifundiários, e entendeu de maneira radical que a violência era indispensável para impor mudanças profundas".

"Guevara foi a ponte que ligou 1968 com o que ocorreria depois", reflete De la Nuez. "A partir da utilização de sua figura, a revolução se transforma em uma questão estética e se torna frívola." Soderbergh não contribui para confirmar a lenda? Anderson considera a leitura de Soderbergh e de Del Toro tão legítima quanto qualquer outra. "O que importa é o debate, a discussão. Escrever sua biografia me exigiu vários anos, e só se investe esse tempo em um personagem que lhe seja simpático. No entanto, neste momento não sei o que penso do Che. Não sei se gosto dele ou não."

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

[El País, 03/09/2008]

Boatos sobre o 11 de setembro são tidos como verdade no Oriente Médio

Michael Slackman, no Cairo, Egito

Sete anos depois, muita gente ainda acredita que Osama Bin Laden e a Al Qaeda não teriam sido os únicos responsáveis pelos ataques de 11 de setembro de 2001, e que os Estados Unidos e Israel estariam necessariamente envolvidos no planejamento dos atentados, ou mesmo na execução destes.

Esta não é uma conclusão baseada em pesquisas científicas de opinião, mas é o que se ouve rotineiramente em conversas em toda a região - em um shopping center em Dubai, um parque em Argel, em um café em Riad e em todo o Cairo.

"Veja, eu não acredito naquilo que os seus governos e a sua mídia dizem. Simplesmente não pode ser verdade", diz Ahmed Issab, 26, um engenheiro sírio que mora e trabalha nos Emirados Árabes Unidos. "Por que eles diriam a verdade? Eu acho que os Estados Unidos organizaram isto de forma que tivessem uma desculpa para invadir o Iraque devido ao petróleo do país".

Para os norte-americanos é fácil desprezar tal raciocínio como bizarro. Mas com isso eles não se dão conta de algo que as pessoas nesta parte do mundo acreditam que os líderes ocidentais, e especialmente os de Washington, precisam entender: que a persistência de tais idéias representa o primeiro fracasso na luta contra o terrorismo - a incapacidade de convencer as pessoas daqui de que os Estados Unidos estão, de fato, travando uma guerra contra o terrorismo, e não uma cruzada contra os muçulmanos.

"Os Estados Unidos deveriam estar preocupados porque, para dizer as pessoas que existe um mal concreto, é necessário que elas possam acreditar nisso a fim de ajudar", afirma Mushairy al-Thaidy, um colunista do jornal saudita "Asharq al Awsat", de circulação regional. "Caso contrário, a capacidade de combater o terrorismo ficará prejudicada. Este não é o tipo de batalha possível de se travar por conta própria; trata-se de uma batalha coletiva".

Existem muitos motivos pelos quais as pessoas daqui dizem acreditar que os ataques de 11 de setembro foram parte de uma conspiração contra os muçulmanos. Alguns desses motivos não têm nenhum vínculo com as ações ocidentais. Outros têm tudo a ver com estas ações.

Via de regra as pessoas afirmam que simplesmente não acreditam que um grupo de árabes - como elas próprias - poderia ter executado uma operação de tanto sucesso contra uma superpotência como os Estados Unidos. Mas elas também dizem que a política externa de Washington após o 11 de setembro provou que os Estados Unidos e Israel estavam por detrás dos ataques, especialmente com a invasão do Iraque.

"Talvez os executores da operação tenham sido árabes, mas e quanto aos cérebros? De forma nenhuma", diz Mohammed Ibrahim, 36, dono de uma loja de roupas no bairro de Bulaq, no Cairo. "Aquilo foi organizado por outras pessoas, nos Estados Unidos ou pelos israelenses".

Os boatos que disseminaram-se logo após o 11 de setembro foram transmitidos com tanta freqüência que ninguém mais sabe onde ou quando eles foram ouvidos pela primeira vez. A esta altura, todos ouviram tais boatos com tanta freqüência, até mesmo na televisão, que as pessoas acham que eles têm que ser verdadeiros.

O mais comum desses boatos é o de que no dia dos atentados os judeus não foram trabalhar no World Trade Center. Quando lhes perguntam como os judeus poderiam ter sido avisados para ficar em casa, ou como eles teriam evitado que o segredo fosse descoberto pelos companheiros de trabalho, as pessoas repelem as indagações porque elas vão de encontro à convicção arraigada de que os judeus estão por detrás dos problemas delas e de que os judeus ocidentais farão tudo o que puderem para proteger Israel.

"Por que foi que no 11 de setembro os judeus não foram trabalhar no edifício?", questiona Ahmed Saied, 25, que trabalha como motorista de um advogado no Cairo. "Todo mundo sabe disso. Eu vi essa história na televisão e muita gente comenta o fato".

Zein al-Abdin, um eletricista de 42 anos, que bebe chá e fuma cigarros baratos da marca Cleopatra em Al Shahat, um café em Bulaq, fica cada vez mais agitado ao expor o que acha que ocorreu no 11 de setembro.

"O que importa é que nós achamos que aquilo foi um ataque contra os árabes", diz ele, referindo-s aos aviões de passageiros que chocaram-se contra os alvos norte-americanos. "Por que foi que eles nunca capturaram Bin Laden? Como é que eles podem desconhecer o paradeiro de Bin Laden quando sabem de tudo? Eles não o pegam porque não foi Bin Laden que fez aquilo. O que aconteceu no Iraque confirma que os atentados não tiveram nada a ver com Bin Laden ou a Al Qaeda. Eles agiram contra os árabes e contra o islamismo para atender aos interesses de Israel. Este é o motivo".

Existe um motivo pelo qual tanta gente aqui fala com tanta certeza - e sem embaraço - a respeito de os Estados Unidos terem atacado a si próprios a fim de terem um motivo para perseguir os árabes e ajudar Israel. É um reflexo da forma como eles enxergam os líderes de governo, não apenas em Washington, mas também aqui, no Egito, em em todo o Oriente Médio. Eles não acreditam nos governantes. A mídia estatal também é vista com desconfiança. Portanto, essas pessoas acreditam que, se o governo está insistindo que Bin Laden está por trás dos atentados, ele na verdade não deve ter nada a ver com os ataques.

"Mubarak diz o que quer que os norte-americanos desejem que ele diga, e é claro que ele está mentindo por orientação de Washington", afirma Ibrahim, referindo-se a Hosni Mubarak, o presidente do Egito.

Especialistas daqui dizem que os norte-americanos deveriam entender melhor a região, e que, para isso, precisariam simplesmente ouvir o que o povo está dizendo - e tentar entender o por que disso - ao invés de sentirem-se ofendidos. A versão mais disseminada aqui é a de que mesmo antes dos ataques de 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos não eram um mediador justo no conflito israelense-palestino, e que a seguir os norte-americanos capitalizaram os ataques para fortalecer Israel e minar o mundo árabe muçulmano.

Aos olhos do povo, a maior de todas as provas foi a invasão do Iraque. Tentar convencer os habitantes daqui de que não se tratou de uma ação para a conquista do petróleo ou de uma guerra contra os muçulmanos é como procurar convencer os norte-americanos de que os motivos foram exatamente estes, e de que o 11 de setembro foi o primeiro passo.

"Isso é o resultado da desconfiança generalizada, e da crença entre árabes e muçulmanos de que os Estados Unidos nutrem um preconceito contra eles", diz Wahid Abdel Meguid, vice-diretor do Centro Al Ahram de Estudos Políticos e Estratégicos, financiado pelo governo e o principal instituto de pesquisas do país. "Assim, eles jamais acham que os Estados Unidos estejam bem-intencionados, e sentem sempre que tudo que os norte-americanos fazem tem um motivo oculto".

Hisham Abbas, 22, estuda turismo na Universidade do Cairo e espera um dia ganhar a vida trabalhando com estrangeiros. Mas ele não pensa duas vezes ao ser indagado sobre o 11 de setembro. Abbas diz que não faz sentido a idéia de que Bin Laden pudesse ter desfechado tal ataque a partir do Afeganistão. E, assim como todos os outros entrevistados, ele viu os acontecimentos dos últimos sete anos como uma prova de que tudo consistiu em um plano dos Estados Unidos para perseguir os muçulmanos.

"Há muitos árabes que odeiam os Estados Unidos, mas isso seria demais", diz Abbas, enquanto manuseia o seu telefone celular. "E veja o que aconteceu depois daquilo. Os norte-americanos invadiram dois países muçulmanos. Eles usaram o 11 de setembro como desculpa e entraram no Iraque. Eles mataram Saddam Hussein e torturaram pessoas. Como é que podemos confiar neles?".

Nadim Audi contribuiu para esta matéria.
Tradução: UOL


[The New York Times, 09/09/2008]

A corrida pela bomba atômica


Nos bastidores da Segunda Guerra Mundial, físicos nucleares a serviço dos Aliados e dos nazistas travaram uma das maiores batalhas científicas da história: a busca pela arma definitiva
por François Kersaudy [clique aqui para ler]

... E o mundo não se acabou

(Assis Valente, 1911-1958)

Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar
Por causa disto a minha gente lá em casa começou a rezar
Até disseram que o sol ia nascer antes da madrugada
Por causa disto nesta noite lá no morro não se fez batucada

Acreditei nessa conversa mole
Pensei que o mundo ia se acabar
E fui tratando de me despedir
E sem demora fui tratando de aproveitar
Beijei a boca de quem não devia
Peguei na mão de quem não conhecia
Dancei um samba em traje de maiô
E o tal do mundo não se acabou

Peguei um gajo com quem não me dava
E perdoei a sua ingratidão
E festejando o acontecimento
Gastei com ele mais de quinhentão
Agora soube que o gajo anda
Dizendo coisa que não se passou
Ih, vai ter barulho e vai ter confusão
Porque o mundo não se acabou

EUA criam ajuda de US$ 200 bi a imobiliárias

Governo anuncia pacote para salvar as duas empresas que dominam o setor de crédito destinado à compra de imóveis
Gigantes do mercado estão sob intervenção federal, por tempo indeterminado, e já funcionam como se fossem duas estatais

FERNANDO RODRIGUES, ENVIADO ESPECIAL A NOVA YORK

O governo dos Estados Unidos anunciou ontem um pacote de salvamento de até US$ 200 bilhões para as duas empresas que dominam o setor de crédito imobiliário do país, a Fannie Mae e a Freddie Mac. Esse valor será usado para eventualmente comprar ações preferenciais das gigantes do mercado, que estão desde ontem sob intervenção federal e já funcionando como se fossem duas estatais. Ficarão nessa situação por tempo indeterminado.
Depois de concluída, essa operação de resgate deve ser a maior da história dos Estados Unidos. No primeiro semestre, o recorde já tinha sido estabelecido com a participação do Federal Reserve (BC dos EUA) bancando uma operação de venda do banco de investimento Bear Stearns para o JPMorgan. Nessa ocasião, o Fed teve de empenhar US$ 29 bilhões.
Ainda não está claro o custo final, para os contribuintes, do salvamento da Fannie Mae e da Freddie Mac. Pelo tamanho das empresas, estima-se que o valor final passará com folga a marca do socorro usado no caso do Bear Stearns.
A Fannie Mae e a Freddie Mac são empresas que trabalham no mercado de compra e venda de títulos baseados nos empréstimos imobiliários oferecidos por todo o sistema financeiro dos Estados Unidos. Nos últimos do
is anos, esse mercado começou a esfriar, com toda a economia do país.
A inadimplência atingiu 9,2% dos empréstimos, segundo a Mortgage Bankers Association. Esse é o maior percentual dos últimos 39 anos, desde que o levantamento começou a ser realizado. Juntas, tiveram prejuízo de US$ 14 bilhões nos últimos 12 meses.

Evitar crise maior
As duas empresas entraram em parafuso por causa da alta concentração dos negócios dentro de suas carteiras, sendo muitos dos papéis de má qualidade. Em 2005, ambas respondiam por 38% do mercado de compra e venda de títulos de empréstimos imobiliários.
Conforme o setor foi se desfazendo dos ativos podres, elas foram absorvendo-os -segundo informações iniciais disponíveis, de maneira imprudente.
Ontem, o jornal "The New York Times" publicou reportagem afirmando que as empresas maquiaram seus balanços inflando artificialmente o valor das reservas que teriam para cobrir perdas por inadimplência. Essa contabilidade problemática acabou sendo um dos fatores principais para que o governo decidisse intervir de uma vez para evitar uma crise generalizada no mercado.
De 2005 para cá, a Fannie Mae e a Freddie Mac aumentaram seu domínio do mercado de 38% para 68%, o que equivale a US$ 5,3 trilhões em garantias a empréstimos ou empréstimos concedidos. Como comparação, o PIB do Brasil foi estimado em 2007 em US$ 1,31 trilhão (as duas empresas equivalem a mais de quatro "brasis").

Se ficassem apenas à mercê do mercado, haveria risco real de crise sistêmica, foi o argumento do governo. "Um fracasso de uma das duas poderia causar grande desarranjo nos nossos mercados financeiros e no mundo todo", disse Henry Paulson, secretário do Tesouro dos EUA (equivalente ao ministro da Fazenda no Brasil).
A decisão de fazer uma intervenção federal foi tomada nos últimos dias e foi apenas comunicada ao público ontem para evitar turbulência maior nos mercados acionários. O anúncio também foi feito logo cedo nos EUA para que as Bolsas de Valores na Ásia tivessem tempo de digerir todos os detalhes.
O comunicado oficial foi feito por Paulson e por James Lockhart, diretor da agência federal que supervisiona empréstimos imobiliários, a FHFA (do nome em inglês "Federal Housing Finance Agency"). Caberá a este a responsabilidade pelas empresas enquanto elas estiverem sob o comando de interventores.
Em resumo, o pacote tem os seguintes itens principais:
1) intervenção: desde ontem as duas empresas estão sob o controle de dois interventores federais por tempo indet
erminado. Herb Allison responderá pela Fannie Mae e David Moffett pela Freddie Mac;
2) demissão: foram afastados os executivos Richard Syron e Daniel Mudd, da Freddie Mac e da Fannie Mae, respectivamente. Eles aceitaram colaborar com a transição e devem, em tese, ajudar os interventores na fase inicial do processo de saneamento. Ambos receberão normalmente as indenizações previstas em seus contratos (Syron deve embolsar até US$ 15 milhões; Mudd, cerca de US$ 14 milhões);
3) funcionamento: as duas empresas abrem hoje normalmente;
4) dividendos: serão suspensos os pagamentos de dividendos para todas as ações preferenciais e ordinárias. Essa medida deve dar uma economia de US$ 2 bilhões por ano para as duas empresas;
5) saneamento: para assegurar que as empresas não fiquem sem dinheiro na fase inicial, o Tesouro comprará US$ 1 bilhão de ações preferenciais de cada uma delas, imediatamente;
6) novo modelo: o secretário Paulson deseja remodelar o sistema de títulos do setor imobiliário. O objetivo será evitar a concentração que ocorreu nos últimos dois anos. Durante a intervenção, deve ser reduzida à força a hegemonia das empresas, fator apontado como um dos principais para o descontrole do mercado.

[Folha de São Paulo, 08/09/2008]


Mercado de mentiras e seqüestros

Atendendo a pedidos do mercado, EUA estatizam quase metade do mercado de financiamento imobiliário

VINICIUS TORRES


O GOVERNO dos EUA estatizou quase metade do mercado de financiamento imobiliário. Não foi estatização? Hum. O governo americano tem agora 80% das ações preferenciais das duas maiores empresas do ramo, botou para fora seus diretores, nomeou os novos, cancelou os dividendos dos acionistas e, divertidíssimo, as proibiu de fazer lobby no Congresso. Qual o nome disso? Se fosse na Venezuela, seria estatização, certo? Antes de alguns detalhes, porém, algumas conclusões:
1. O governo Bush, "antiestatista", termina com a maior intervenção do Estado na economia americana desde a Grande Depressão dos anos 30. Mas os lucros ficaram com quem criou a lambança financeira;
2. O governo procura evitar mais quebradeiras. Sim, este é um caso de "risco sistêmico" -o risco de a quebra de instituição financeira importante provocar um dominó de falências que prejudica até quem nada tem a ver com o pato. Mas o "racional" e "eficiente" mercado financeiro oligopolizado ("muito grande para quebrar") tem o monopólio da desculpa esfarrapada "técnica". Merece o privilégio sistêmico de ser socorrido quando ameaça todo o resto da economia, mas não paga por isso nos tempos de bonança. O outro nome dessa desculpa, "risco sistêmico", é seqüestro: se você não pagar o resgate, eu mato todo mundo;
3. O mercadismo critica de boca cheia "instituições capturadas por grupos de interesse", os quais "politizam a gestão econômica em busca de rendas". Vivem a dizer que "instituições como bancos centrais e agências" têm de ser "independentes" e "técnicas", que o Estado não deve subsidiar empresas etc.
Divertido é que, para essa gente, os "rent seekers", os seqüestradores das instituições públicas e devoradores de subsídios e impostos, são sempre os outros -nunca a finança. E agora? Ah, ah, ah. Mostrem-me um liberal. O governo americano estatizou as duas maiores financiadoras imobiliárias do país a fim de evitar que elas "desmoronassem", como dizia ontem um ex-diretor do Banco Central americano. Freddie Mac e Fannie Mae, como são apelidadas, têm ou garantem US$ 5,6 trilhões do mercado de dívida imobiliária americano, de US$ 12 trilhões. Se quebrassem, poderia ocorrer um "tsunami financeiro", como dizia na quinta Bill Gross, diretor do maior gestor de fundos de renda fixa do planeta, o Pimco (US$ 850 bilhões). Gross pedia ainda que o governo dos EUA comprasse papéis imobiliários podres no mercado. Ontem, além de estatizar Freddie "Fraudy" Mac e Fannie "Phony" Mae, como eram reapelidadas as empresas, o governo anunciou que vai comprar papéis imobiliários. Gross, que tem muitos desses títulos, se dizia ontem "sorridente". O que fazem Freddie e Fannie? Grosso modo, concedem, compram e revendem financiamentos imobiliários. Isto é, negociam títulos de investimento que têm como fonte de renda a prestação da casa própria (títulos lastreados em hipotecas, "mortgage backed securities", ou MBS). Os calotes na prestação da casa própria e a perda de valor de tais títulos estão na origem da crise financeira e bancária que jogou areia nas rodas da economia mundial. Se Freddie e Fannie fossem à breca, a economia iria ao brejo. O que pode acontecer? Quem entende muito disso dizia ontem que pode tanto haver festa no mercado como mais medo. Bancos, fundos, hedge funds, BCs pelo planeta e outros detentores e/ou inventores da complexa dívida imobiliária americana podem respirar um pouco. Por ora, ao menos, o círculo vicioso de desvalorização pode ser atenuado. O fato de o governo ter ordenado que as empresas financiem mais hipotecas pode ajudar a derrubar os juros da prestação, que não caíram com a crise e os cortes do Fed. Mas muita ente acha que a crise não vai parar enquanto os compradores de casas endividados não receberem ajuda direta. Outros lembram que muito banco tinha ações de Freddie e Fannie, que nesta segunda devem valer menos do que pó-de-traque queimado. Mas o mais importante de tudo é: o governo americano diz e repete que não vai deixar a peteca cair.

[Folha de São Paulo, 08/09/2008]