Raposa/Serra do Sol

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Geopolítica

AI DOS QUE CRÊEM NO IMPÉRIO
Immanuel Wallerstein
Ainda que muito breve, a guerra entre Geórgia e Rússia revelou algo chocante para o pensamento convencional. Menos de vinte anos após vencerem a Guerra Fria, os EUA já perderam a condição de poder mundial solitário. Na verdade, deixaram até mesmo de ser superpotência...
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GUERRA E PAZ
José Luís Fiori
Grande derrotada da Guerra Fria, a Rússia conservou, porém, seu arsenal nuclear e potencial militar e econômico. Será a principal questionadora da nova ordem mundial, conforme a equação do norte-americano Morgenthau. Por isso, a guerra na Geórgia não reproduz o passado: ela anuncia o futuro
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AS TRÊS CRISES
Ognacio Ramonet
Pela primeira vez na história das economias modernas, as sociedades estão diante de três ameaças simultâneas: colapso financeiro, alta brutal dos combustíveis e escassez de alimentos. Quando dirão basta ao sistema que engendrou estes desastres?
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Paulo Coelho, "Harry Potter" e "Pinóquio" em árabe são proibidos em Israel

Benjamin Barthe, correspondente em Jerusalém

A lista das ameaças que pesam sobre o Estado de Israel acaba de receber um acréscimo de peso: trata-se da versão em árabe de "Pinóquio", o célebre conto infantil, criado no final do século 19 pelo escritor italiano Carlo Collodi. Alegando que este livro foi impresso num "país inimigo", no caso, no Líbano, o ministério israelense das finanças proibiu a sua importação. Esta decisão alveja mais precisamente a editora Kol Bo Sefarim, baseada em Haifa e especializada na distribuição de livros de literatura em língua árabe. Além das aventuras conturbadas da marionete de Gepetto, os palestinos de Israel não poderão ler em sua língua natal livros tão subversivos como os da série de "Harry Potter", e nem mesmo "O Alquimista" de Paulo Coelho.

Na tentativa de justificar sua iniciativa, o ministério israelense das finanças cita um decreto que foi promulgado em 1939, na época do Protetorado britânico na Palestina, que proíbe toda e qualquer forma de comércio com "países inimigos". Se esses livros tivessem sido impressos no Egito ou na Jordânia, os dois únicos países árabes que estão oficialmente em paz com o Estado judaico, a sua venda teria sido possível. Mas, pelo fato de provirem do Líbano, um país que está incluído na "lista negra" da diplomacia israelense junto com o Irã e a Síria, eles não estão autorizados a penetrar no território de Israel. "Isso é absurdo", exclama Salah Abassi, o dono da editora penalizada com a decisão, em entrevista ao diário "Maariv". "Israel já está fazendo comércio com a Síria. Maçãs das Colinas do Golã são enviadas para Damasco através do ponto de passagem fronteiriço de Kuneitra. Nós estamos no século 21. Além disso, trata-se neste caso de belas letras, não de produtos tóxicos".

Visivelmente, as autoridades alfandegárias locais não parecem concordar com essa argumentação. Dois anos atrás, elas já haviam confiscado na fronteira com a Jordânia um carregamento de 4.000 livros que haviam sido encomendados por Salah Abassi. Uma vez que eles haviam sido impressos no Líbano e na Síria, todos eles haviam sido enviados para a máquina trituradora. Este novo caso está comovendo a imprensa israelense, tanto mais que o autor da "infração" havia sido o principal instigador, no passado, de uma campanha visando a traduzir em árabe diversos sucessos de livraria israelenses, que haviam sido exportados para o Líbano, a Arábia Saudita e o Bahrein.

Chega agora a vez de Israel, sempre muito lépido quando se trata de denunciar o boicote dos seus artistas por parte dos seus vizinhos árabes, ser surpreendido em flagrante delito de censura. Daqui para frente, caberá ao ministro das finanças, Roni Bar On, suspender esta sanção. Tal decisão faria com que Pinóquio, Harry e companhia possam encantar os jovens árabes israelenses.

Tradução: Jean-Yves de Neufville

[Le Monde, 18/08/2008]

EUA: Abominação no circo das eleições

Emissoras de TV e grupos conservadores fazem a festa com lançamento do panfleto mentiroso The Obama Nation

Caio Blinder

No sentido mais estrito de uma resenha literária, não há muito o que dizer sobre The Obama Nation. Dando o troco no trocadilho infame do título do livro do autor Jerome Corsi sobre o candidato democrata, trata-se de uma abominação O material lançado dias antes da convenção partidária que irá coroar Barack Obama é um pegajoso ataque político. Corsi compilou tudo de desfavorável já publicado sobre Obama (em geral na Internet), inclusive mentiras, rumores desacreditados e distorções com o objetivo transparente de alertar sobre as idéias, questionar o patriotismo e avacalhar a vida pessoal do candidato.

Corsi já esteve lá. Há quatro anos foi co-autor de um livro que manchou a reputação heróica na guerra do Vietnã do então candidato democrata John Kerry. O livro talvez tenha contribuído para a derrota de Kerry contra George W. Bush, aquele que se safou de combate no sudeste asiático. Corsi não esconde o desejo de repetir o feito, ou seja, impedir uma vitória de Obama em novembro. E começa pela capa. Há uma foto de um Obama com um jeito reflexivo, enigmático e, mais sintomaticamente, sinistro.

Corsi é venenoso e engenhoso. Ele construiu uma contranarrativa à história pessoal de Obama, que essencialmente impulsionou sua carreira política. Em dois best-sellers autobiográficos e inúmeros discursos, Obama conta sua história de filho de pai negro do Quênia e mãe branca do Kansas, que descobriu sua identidade e, se culminar a jornada na Casa Branca, transcendendo os rancores raciais e sociais, mostrará que o sonho americano está mais vivo do que nunca.

O Obama de Corsi é filho de "polígamo alcoólatra", a mãe preferia "homens de cor" do Terceiro Mundo para serem seus "parceiros" e o candidato se identifica mais com seu "sangue africano" do que com suas raízes americanas. O livro trata Obama como um ser alienígena, exótico e e extremista. Corsi retoma as distorções sobre "uma extensa educação muçulmana" quando o garoto Barack vivia na Indonésia e insiste que ele é tomado por uma "fúria" negra. Obama não passa de um político maquiavélico e corrupto, com pose de bom moço. Com suas posições radicais de esquerda e alguns sentimentos "antiamericanos", ele irá dividir o país ainda mais, caso seja eleito.

Sem apresentar evidências, Corsi sugere que Obama possa ainda usar drogas (o candidato admitiu que fez isto na juventude) e divaga que alguém que tentou esconder do público seu hábito de fumante inveterado pode estar escondendo coisas muito piores. Além das infâmias e bobagens, há erros factuais no livro. Alguns menores (Obama menciona sua meia-irmã Maya na autobiografia Sonhos do Meu Pai) e outros mais significativos, como sugerir que o candidato seria a favor da retirada das tropas americanas do Afeganistão. Pelo contrário, ele defende o reforço.

Isto é o de menos em meio aos comentários bizarros e conspiratórios. Corsi faz o possível para não parecer um maluco da Internet (ele se define como repórter sênior do site de extrema direita World Net Daily) e na capa do livro faz questão de exibir suas credenciais acadêmicas: Jerome R. Corsi, Ph.D. (ciências políticas em Harvard). Para quem tiver paciência, são 59 páginas de anotações bibliográficas (no total, o livro tem 364 páginas).

A bizarrice, as tolices conspiratórias e ofensas pessoais fazem parte do currículo do doutor em filosofia Corsi. Ele já escreveu que o papa João Paulo II era "senil", qualificou o islamismo de "vírus", definiu John Kerry como "anticristão" e insinuou que Hillary Clinton seria lésbica. Corsi tampouco dá muita colher de chá para os republicanos de George W. Bush. Acusou o presidente de fazer pouco para guarnecer a fronteira sul dos EUA e é um proponente da conspiração da União Norte-Americana, sobre a existência de uma "organização supranacional" que em breve fará a fusão dos EUA, Canadá e México.

Envergonhado, o conservador respeitável Peter Wehner, na revista Commentary, lamenta as diatribes de Corsi. Wehner escreve que o livro é "errado e repelente". Para Wehner, os ataques contra o candidato democrata devem ser centrados nos méritos de sua filosofia de governo. Mas a abominação está rendendo uma farra no circuito de talk-shows no rádio e televisão.

The Obama Nation foi escrito, publicado e se tornou uma controvertida sensação graças a um modelo de negócios em que poderosas casas editoriais têm pequenas unidades que publicam material combustível de extrema direita. O livro de Corsi foi publicado pela Threshold Editions, uma divisão da Simon & Schuster, sob a supervisão de Mary Matalin, a lendária marqueteira republicana (mulher do também lendário marqueteiro democrata James Carville) e ex-assessora do soturno vice-presidente Dick Cheney.

O modelo funciona bem pois existe uma caixa de ressonância nos talk-shows e o empenho de clubes do livro e grupos conservadores para fazer da obra um best-seller, com a compra antecipada no atacado. E de qualquer forma, o desconto do livro de Corsi é estupendo. O preço de capa é US$ 28. Na Barnes & Noble, eu paguei apenas US$ 17.98 (com imposto). Mesmo assim, foi um custo abominável.

[O Estado de São Paulo, 24/08/2008]

Dorival Caymmi: Obra nos ajuda a entender o projeto de país que perdemos

O que é que Caymmi tem? Dez características que fazem do compositor mestre atemporal de canções que se misturaram para sempre à identidade brasileira

1 MESTRE MAIOR
Dorival Caymmi foi um mestre maior da arte da canção, a arte de pôr em relação letra e música, de casar uma coisa e outra, como se costuma dizer. Não há nenhum momento de sua concisa e primorosa obra em que essa relação esteja malfeita, em que se descubra uma imperícia ou negligência do cancionista. Ao contrário, a perfeição está em toda parte. Como disse Luiz Tatit, "cada fragmento de composição já é uma boa amostra da obra completa".

2 RIGOR BAIANO
A proverbial preguiça baiana é aqui desmentida por um rigor insuspeitado. Caymmi às vezes levava anos para terminar uma canção. E não chegou a compor muito mais do que uma centena delas, em sua vida. É que sua ética produtiva se centrava no princípio de só fazer as canções necessárias. Nesse caso, o rigor abarca uma dimensão passiva: a paciência. Caetano Veloso elucidou o modus operandi dessa ética: "É o deixar aparecer, deixar acontecer e ser extremamente responsável com relação ao que acontece".

3 ATEMPORALIDADE
Levada ao extremo, essa rigorosa mestria cria um efeito de atemporalidade, pois é como se as palavras jamais tivessem existido sem seus respectivos sons. Daí que, atemporais, elas parecem muitas vezes anônimas, folclóricas, pois o que não tem história também não pode ter autor. "Não parece coisa feita por gente", resumiu Arnaldo Antunes.

4 O MITO
Esse efeito de atemporalidade e anonimato é decisivamente reforçado pelo fato de as canções, em sua quase totalidade, inscreverem-se plenamente no mito brasileiro, que elas assim eternizam. O mito não é uma mentira, mas uma auto-imagem que revela um desejo e um projeto: a alegria, a cordialidade, a liberdade, o erotismo, a religiosidade sincrética afro-brasileira, a mestiçagem.

5 O PAI
Pois tudo isso brilha com uma rara integridade nos "sambas sacudidos" e "canções praieiras" de Caymmi, em que portanto reconhecemos nosso mito identificador. Por isso Caymmi "é o pai", como afirmou Lorenzo Mammi.

6 MODERNO
Mas isso não é tão simples. Pois Caymmi é ao mesmo tempo um cancionista moderno e até modernizador. Tom Jobim lembra que ele "passou a empregar notas de sexta e sétima maiores nos acordes menores, imprevisíveis modulações de meio-tom, coisas que ninguém usava na época".

7 PARADOXOS
Daí Antonio Risério, em seu livro "Caymmi: Uma Utopia de Lugar", que é a referência maior ao estudo crítico da obra do mestre baiano, ter apontado uma "dialética entre o novo e o velho, o arcaico e o contemporâneo, a tradição e a invenção".

8 CANÇÕES PRAIEIRAS
Tal paradoxo vem à tona com nitidez na série das "canções praieiras", que Jorge Amado elegeu com justeza como "a parte mais poderosa e permanente de suas composições". Essas canções que narram a vida de pescadores numa Itapuã mítica são tão originais que inauguram um gênero, pois não havia algo como "canções praieiras" na tradição da canção popular brasileira. Não havia e não haveria depois; é um gênero de um autor só, que nasce e morre com Caymmi.

9 SEM EXPLICAÇÃO
Com isso somos lançados ao problema da originalidade inexplicável de Caymmi. Diferentemente de talvez todos os nossos grandes cancionistas populares, Caymmi não se situa facilmente numa tradição que ele a um tempo absorve e reinventa. No gesto de João Gilberto, por exemplo, é mais fácil de compreender tanto o corte quanto a continuidade, igualmente radicais. Em Caymmi, uma coisa e outra são mais difíceis de localizar. Uma frase de Chico Buarque resume essa perplexidade: "Não vejo de onde aquilo vem".

10 PERMANÊNCIA
Seja como for, "aquilo" veio, ficou e ficará. Nas canções de Caymmi, que moram no fundo da memória coletiva do Brasil e ajudaram a construir nossa identidade (com a qual estarão para sempre misturadas), podemos mirar uma realização e uma possibilidade, uma história e um projeto. Em tempos de ódio e violência, as canções de Caymmi talvez nos ajudem a entender alguma coisa de essencial que perdemos em algum momento de nossa modernização.

FRANCISCO BOSCO, ensaísta e letrista, é autor de "Folha Explica Dorival Caymmi"

[Folha de São Paulo, 18/08/2008]

Para não dizer que não falamos de Olimpíadas...

ENSINOU NO Departamento de Educação Física da Unicamp um professor português que tinha uma tese curiosíssima sobre o atletismo. Ele dizia que o atletismo faz mal à saúde. Para provar seu ponto, perguntava: "Você conhece um atleta longevo? Quem vive muito são aquelas velhinhas sedentárias que tomam chá com bolo no fim da tarde". Florence Griffith Joyner, corpo fantástico, só músculos, a mulher mais rápida do mundo, deteve por dez anos os recordes mundiais dos 100 m dos 200 m. Dedicou toda a sua vida ao atletismo. Era o símbolo máximo da beleza olímpica. Um infarto a matou. Os animais não competem. Não têm interesse em saber qual é o melhor. Se eles pulam e correm, o fazem pelo puro prazer de pular e correr. Minha cachorra Luna, é só soltá-la num campo aberto para que se transforme numa flecha. E eu fico a contemplá-la, assombrado pela performance do seu corpo que nunca fez atletismo. Por que ela corre? Não é para pegar um coelho. Se corresse para pegar um coelho, sua corrida teria um objetivo prático, racional. Nem corre para provar que é mais rápida que outro cachorro. Se fosse esse o caso, estaria sendo movida pela mais pura motivação olímpica. Numa Olimpíada, nenhum atleta executa sua atividade pelo prazer de executá-la. Cada atleta executa a sua coisa para provar-se o melhor de todos. O prêmio que o atleta recebe por sua performance não é algo que acontece com o seu corpo, como é o caso da minha cadela que corre pelo prazer de correr. O seu prêmio é algo abstrato, fora do corpo, medido por números. O atleta só fica feliz quando a fita métrica ou o relógio dizem que a sua marca foi a melhor. Observe os corpos das nadadoras. São máquinas especializadas numa só função, treinadas por anos para derrotar a água. Pois não é isso que são as provas de natação? Numa competição de natação, a nadadora luta contra a água. A água, sua inimiga, resiste. Ganha a atleta que ficar menos tempo dentro da água. O prazer da nadadora não está na água; está no cronômetro. O sentido original da palavra "estresse" pertence à física, no campo da mecânica aplicada. Para determinar a resistência de um material, é preciso submetê-lo a "estresse", isto é, a forças, até o ponto de ele se partir. O ponto em que ele se parte é seu limite. A competição é essencial ao atletismo porque é só por meio dela que se podem fazer comparações. Comparo vários materiais para determinar sua resistência. Comparo vários atletas para ver qual tem o melhor desempenho quando submetido ao estresse máximo. O corpo de Florence Griffith Joyner não agüentou. Arrebentou como um fio arrebenta se seu limite é ultrapassado. Se o atletismo é isso, a tese do professor de educação física a que me referi acima está justificada. A competição é uma violência a que o corpo é submetido. A imagem mais terrível que tenho dessa violência é a da corredora suíça, ao final de uma maratona, algumas Olimpíadas atrás [Los Angeles, 1984]. Chegando ao estádio, o corpo dela não agüentou. Os ácidos e o cansaço o transformaram numa massa amorfa assombrosamente feia. Ele não queria continuar; desejava parar, cair. Mas isso lhe era proibido: uma ordem interna lhe dizia: obedeça, continue até o fim. Ninguém podia ajudá-la. Se alguém o fizesse, ela seria desclassificada. O locutor, comovido, louvava o extraordinário espírito olímpico daquela mulher. Ele não compreendia o horror daquilo que ele considerava sublime. A competição, representada no seu ponto máximo pelas Olimpíadas, é o oposto do brinquedo. O brinquedo é uma atividade feliz. Por sua vontade, o corpo não competiria. Ele brincaria. O corpo não gosta de competições e Olimpíadas porque elas existem sobre o estresse. E o estresse faz sofrer. Os atletas sofrem. Basta observar a máscara de dor nos seus rostos. O corpo vai contra a vontade, empurrado por um tipo que mora dentro da sua alma e que é dominado por uma obsessão narcísica. Todo pódio é uma celebração do narcisismo. O que o espírito olímpico deseja é levar o corpo aos limites do estresse. E o limite do estresse é a morte. Não vou ver as competições. Mas vi o espetáculo maravilhoso da abertura. E verei o vôlei das meninas. E a ginástica. Porque é bonito...

RUBEM ALVES, 74, psicanalista e escritor, é professor emérito da Unicamp e colunista da Folha. É autor, entre outras obras, de "Por uma Educação Romântica".

[Folha de São Paulo, 09/08/2008]

Religião da América

EM MEIO À GUERRA DO IRAQUE E O MEDO DA RECESSÃO, NOVAS GERAÇÕES DO PAÍS, QUE TEM 78,4% DE CRISTÃOS, SE DESILUDEM COM DISCURSO FUNDAMENTALISTA E ABREM ESPAÇO PARA TEMAS COMO ABORTO E CASAMENTO GAY

Os norte-americanos podem imaginar um negro ou uma mulher como candidatos à Presidência do seu país, mas não um ateu.
Em sua ascensão meteórica rumo ao pináculo da política americana, o candidato democrata Barack Obama teve de abandonar o passado agnóstico, associando-se a uma das igrejas mais radicais e politicamente engajadas dos bairros negros de Chicago, a Trinity United Church of Christ [Igreja Unida de Cristo Trindade] - mas só até quando essa radicalidade passou a comprometer seus planos políticos.
Os EUA são o maior mercado livre de religiões do mundo.
Durante duas semanas de junho, num percurso que foi do Meio-Oeste ao Texas, a Folha visitou as maiores igrejas e personagens não muito católicos, procurando esboçar um recorte necessariamente incompleto do universo muito diversificado do cristianismo americano, cujo coro promete se fazer ouvir nas eleições presidenciais de 4 de novembro.
Os EUA são um país 78,4% cristão. Segundo dados de um vasto levantamento divulgado neste ano pelo Fórum Pew - projeto que se ocupa de religião e sociedade dentro de um dos institutos de pesquisa mais respeitados do país-, evangélicos e não-religiosos são os grupos que mais crescem enquanto os protestantes tradicionais moderados, muitos deles ligados historicamente ao movimento dos direitos civis, decrescem.
As conseqüências políticas dessa polarização ainda estão por ser avaliadas, mas a luta pelo voto evangélico já é uma das principais preocupações tanto entre estrategistas democratas como entre republicanos.

Dividir os evangélicos
Nas últimas duas eleições, religiosos conservadores e fundamentalistas se mobilizaram contra o aborto e o casamento homossexual e conseguiram levar às urnas gente que a princípio não votaria, garantindo a vitória a George W. Bush.
Agora, a relativa moderação do discurso de algumas das maiores organizações evangélicas norte-americanas, em meio à recessão econômica, aos resultados da Guerra do Iraque e à desilusão das gerações mais jovens com o discurso fundamentalista, abre a possibilidade de uma nova perspectiva.
Ontem [16/08], pela primeira vez desde o início da campanha, Obama e o candidato republicano John McCain participaram juntos de um encontro público, organizado pelo pastor Rick Warren, líder da quarta maior igreja dos EUA, a Saddleback, na Califórnia -o pastor esteve recentemente em São Paulo, divulgando sua igreja e seu método.
Os votos evangélicos (cerca de um quarto da população) são tradicionalmente republicanos, mas Obama quer se aproveitar da insatisfação com o governo Bush e da pouca empatia entre McCain os religiosos conservadores para -já que não pode conquistá-los em massa- ao menos tentar dividi-los.

Nova Jersey: Perseguição aos ateus

"Se você disser que é ateu, pode até perder o emprego; se não disser nada, ninguém o amola"

Um dos resultados mais surpreendentes do relatório sobre o cenário religioso americano divulgado pelo Fórum Pew é o crescimento dos chamados "não-afiliados" -ateus, agnósticos e pessoas que não pertencem a nenhuma igreja ou religião organizada.
Hoje, eles representam 16,1% da população (25% das pessoas entre 18 e 29 anos) e começam a se impor como uma força política incontornável num país de maioria crente.
Dados do mesmo Fórum Pew revelam, em contrapartida, que o eleitor americano não se sente à vontade para apoiar um candidato se ele for ateu (61%), muçulmano (45%) ou mórmon (25%).
Antes da contagem das urnas, no entanto, fica difícil saber quanto essa resposta esconde de preconceitos latentes e mais raramente assumidos em público.
Por exemplo: 15% dizem que não votariam em um candidato hispânico, 12% não votariam em uma mulher e apenas 6% não votariam em um negro -o que é espantoso num país historicamente dividido pela questão racial. Os americanos podem ter pudor de assumir o racismo, mas certamente não hesitam em expressar o horror que sentem pelos ateus.
"Os ateus são o grupo mais odiado nos EUA. Nosso principal objetivo é aumentar a tolerância em relação a eles e preservar a separação entre igreja e Estado", diz David Silverman, diretor de comunicações da Ateus Americanos, uma organização de 3.500 membros, baseada em Nova Jersey, que defende as liberdades civis e o Estado laico.
Atualmente, a Ateus Americanos se mobiliza contra a reconstrução de igrejas com dinheiro público, em Detroit, e está processando o Estado de Utah por conta das cruzes instaladas permanentemente em estradas.
A declaração de Silverman ecoa o que Sam Harris diz em seu panfleto "Carta a uma Nação Cristã" [Cia. das Letras], best-seller de 2007: "Os ateus são a minoria mais vilipendiada dos EUA".
Harris, por sua vez, é um dos mais inflamados ensaístas ateus que despontaram ao longo do governo Bush. E é provável que boa parte do seu sucesso se deva aos próprios religiosos, interessados em conhecer as armas do inimigo.
As de Harris são pesadas. Para ele, não há meio-termo: "O problema com a religião -assim como com o nazismo, com o stalinismo ou com qualquer outra mitologia totalitária- é o próprio dogma. (...) Ou a Bíblia é só um livro comum, escrito por mortais, ou não é. (...) E, se a Bíblia for um livro comum e Cristo, um homem comum, a doutrina básica do cristianismo é falsa".
A Ateus Americanos foi fundada no Texas, em 1963, por Madalyn Murray O'Hair, apontada pela revista "Life", no ano seguinte, como "a mulher mais odiada da América".
Em 1959, Murray ganhou na Suprema Corte uma ação contra a reza obrigatória nas escolas públicas. Havia entrado com a ação em defesa dos direitos do filho, William Murray, que se recusava a participar do catecismo escolar.

Conversão
Em 1995, ela foi seqüestrada do escritório da organização, supostamente por um funcionário, e violentamente assassinada, junto com o outro filho e a neta, filha de William.
Depois da morte da mãe, da filha e do irmão, William, em nome de quem Madalyn tinha ido até a Suprema Corte para defender a separação entre igreja e Estado, se tornou um pregador batista.
Hoje, participa de programas evangélicos na televisão, dizendo o diabo contra a mãe.
Segundo Kenneth Bronstein, que dirige os Ateus da Cidade de Nova York, associação filiada à Ateus Americanos, uma das maiores dificuldades é fazer os ateus saírem do armário.
"O número de ateus nos EUA é maior que o de judeus, hindus e de vários outros grupos. O problema é que não se organizam e, portanto, não têm nenhum poder. Se você disser que é ateu, pode até perder o emprego. Se não disser nada, ninguém o amola. Você pode fazer uma analogia com os gays 20 anos atrás. Tinham medo de assumir que eram gays. Estamos no mesmo processo", afirma Bronstein.
"É um círculo vicioso. O ateu se sente só e se fecha, o que leva a mais ignorância e medo, o que só o faz se fechar ainda mais. Trabalhamos para que as pessoas saibam quem são os ateus, para que haja menos medo e, com sorte, esse ciclo termine. Os não-religiosos são um bloco político que deve ser ouvido e reconhecido. Vão continuar crescendo com o tempo, conforme os EUA se equipararem ao resto do mundo civilizado", diz Silverman.
Em 1954, durante a Guerra Fria, a igreja conseguiu incluir a referência a Deus no juramento à bandeira americana.
"Os religiosos nos EUA são muito fortes e estão tentando pôr a religião em toda parte. No governo, nas escolas... Como se já não bastasse o "in God we trust" [confiamos em Deus] nas cédulas de dólar. Depois vêm dizer que não somos patrióticos porque não fazemos o juramento à bandeira. Somos patrióticos, mas não vamos jurar por Deus", diz Bronstein.

(veja os demais artigos sobre o tema na edição do dia 17/08 do Jornal Folha de São Paulo)

[Folha de São Paulo, 17/08/2008]

Dossiê Violência

Dossiê Violência da Revista de História da Biblioteca Nacional

Duas vezes de fogo
Há muito tempo os conflitos no Brasil são agravados pelo uso de álcool e pelo porte de armas, que aumentam a violência

Caldeirão do inferno
Relatos de antigos detentos e funcionários revelam a extrema violência reinante nos presídios da Ilha Grande, longe dos olhos da sociedade

A escola do sol quadrado
Em 1879, um chefe de polícia instituiu experiência inédita no Paraná: uma escola primária para os presos de Curitiba. A intenção era cuidar de sua “higiene moral”

“Aldeias do mal”
Governantes sempre associaram favelas ao crime e à falta de higiene

Cidade de Deus e condomínio do diabo
Criado para abrigar ex-favelados, conjunto habitacional reproduz, no plano horizontal, a violência do tráfico e todas as mazelas sociais dos morros cariocas

Assassinos no poder
Ação de grupos de extermínio dá lucro à contravenção e favorece a ascensão de políticos ligados ao crime na Baixada Fluminense

Juventude ferida
Embora a legislação brasileira tenha se aprimorado, o Estado mostra-se particularmente inábil para lidar com a questão do jovem em conflito com a lei

Eva, “mulher de vida livre”
Discriminadas pelo resto da população, prostitutas de Tocantins afirmam com orgulho sua condição e suas escolhas

Da polícia do rei à polícia do cidadão
Concebida a partir de um modelo autoritário, desde os tempos de D. João VI a polícia desperta medo e desconfiança na população

Por trás da miniguerra no Cáucaso, o xadrez geopolítico

Parece que os Estados Unidos se enganaram redondamente quando imaginaram ter alguma espécie de privilégio de superpotência em sua partida contra a Rússia

O mundo testemunhou nesta semana uma miniguerra no Cáucaso, e a retórica tem sido intensa, embora em grande medida irrelevante. A geopolítica é uma série de gigantescas partidas de xadrez disputadas entre dois jogadores, nas quais estes buscam posições de vantagem. Nessas partidas, é crucial conhecer as regras vigentes que regem os lances. Os cavalos não podem andar na diagonal. Entre 1945 e 1989, a partida principal de xadrez era disputada entre os Estados Unidos e a União Soviética. Ela se chamava a Guerra Fria, e as regras básicas do jogo eram conhecidas metaforicamente como "Yalta". A regra mais importante dizia respeito a uma linha que dividia a Europa em duas zonas de influência. Essa linha foi chamada por Winston Churchill de "Cortina de Ferro" e se estendia de Stettin a Trieste. A regra dizia que, não importasse quanta turbulência fosse instigada na Europa pelos peões, não haveria guerra de fato entre os Estados Unidos e a União Soviética. Ao final de cada instância de turbulência, as peças voltariam a suas posições originais. Essa regra foi respeitada cuidadosamente até a queda dos comunismos, em 1989, marcada mais notadamente pela destruição do Muro de Berlim. É inteiramente verdade, como todos observaram na época, que as regras de Yalta foram anuladas em 1989 e que a partida disputada entre os Estados Unidos e (desde 1991) a Rússia mudou de maneira radical. O maior problema desde então é que os Estados Unidos não compreenderam direito as novas regras do jogo. Eles se proclamaram, e foram proclamados por muitos outros, a única superpotência mundial. Em termos de regras de xadrez, isso foi interpretado como significando que os Estados Unidos tinham liberdade para movimentar-se pelo tabuleiro de xadrez como bem entendessem e, especialmente, para transferir antigos peões soviéticos para sua esfera de influência. Sob Clinton, e mais notadamente ainda sob George W. Bush, os Estados Unidos passaram a jogar a partida dessa maneira. Só havia um problema nisso: os Estados Unidos não eram a única superpotência mundial -nem sequer eram uma superpotência.

Mais jogadores
O fim da Guerra Fria significou que os Estados Unidos foram rebaixados. De uma das duas superpotências, passaram a ser um Estado forte em meio a uma distribuição realmente multilateral do poder real em um sistema inter-Estados. Muitos países grandes passaram a poder disputar suas próprias partidas de xadrez sem precisarem informar as duas antigas superpotências de seus lances. E começaram a fazê-lo. Duas decisões geopolíticas de importância maior foram tomadas nos anos Clinton. Primeiro, os Estados Unidos fizeram pressão grande e mais ou menos bem-sucedida para que os antigos satélites soviéticos ingressassem na Otan [a aliança militar ocidental]. Esses países estavam ansiosos por entrar, apesar de os países-chave da Europa Ocidental -Alemanha e França- relutarem um pouco em seguir esse caminho. Eles viam a manobra dos EUA como tendo o objetivo, em parte, de limitar sua recém-adquirida liberdade de ação geopolítica. A segunda decisão-chave dos Estados Unidos foi tornar-se jogador ativo nos realinhamentos de fronteiras dentro da antiga República Federal da Iugoslávia. Isso culminou na decisão de autorizar a secessão de facto de Kosovo da Sérvia e implementá-la com suas tropas. A Rússia, mesmo sob Boris Ieltsin, ficou bastante insatisfeita com essas duas ações dos Estados Unidos. Mas a desorganização política e econômica da Rússia durante os anos Ieltsin era tão grande que o máximo que ela pôde fazer foi queixar-se, em voz bastante fraca, é mister acrescentar. A chegada ao poder de George W. Bush e Vladimir Putin foi mais ou menos simultânea. Bush decidiu levar a tática da superpotência única (ou seja, os Estados Unidos podem movimentar suas peças da maneira como decidem por conta própria) muito mais longe do que fizera Clinton.

Regras próprias
Para começar, em 2001 Bush retirou o país do Tratado de Mísseis Antibalísticos firmado por EUA e União Soviética em 1972. Em seguida, anunciou que os Estados Unidos não ratificariam dois tratados novos assinados durante o governo Clinton: o Tratado de Proibição Total de Testes, de 1996, e as modificações acordadas no tratado de desarmamento nuclear SALT 2. Então Bush anunciou que os Estados Unidos iriam adiante com seu Sistema Nacional de Defesa Antimísseis. E, em 2003, Bush invadiu o Iraque. Como parte dessa iniciativa, os Estados Unidos buscaram e obtiveram o direito de construir bases militares e o direito de sobrevoar repúblicas centro-asiáticas que antes faziam parte da União Soviética. Além disso, os EUA promoveram a construção de dutos para o escoamento do petróleo e gás natural da Ásia Central e do Cáucaso, passando ao largo da Rússia. E, finalmente, os Estados Unidos fecharam um acordo com a Polônia e a República Tcheca para instalar uma defesa antimísseis, ostensivamente para proteção contra mísseis iranianos. A Rússia, porém, viu essas instalações como sendo voltadas contra ela. Putin decidiu reagir com muito mais eficácia que Ieltsin. Sendo um jogador prudente, porém, ele primeiro se movimentou para fortalecer sua base doméstica, restaurando a força da autoridade central e revigorando as Forças Armadas russas. Nesse momento, as marés da economia mundial mudaram, e, de uma hora para outra, a Rússia tornou-se a rica e poderosa controladora não apenas da produção petrolífera, mas também do gás natural tão necessário aos países da Europa Ocidental.

Adversário fortalecido
Então Putin começou a agir. Ele criou relacionamentos com a China, selados em tratados. Manteve relações estreitas com o Irã. Começou a expulsar os Estados Unidos de suas bases na Ásia Central. E assumiu uma atitude firme contra a ampliação da Otan para duas zonas-chave: a Ucrânia e a Geórgia. A fragmentação da União Soviética levara ao surgimento de movimentos secessionistas étnicos em muitas antigas repúblicas, incluindo a Geórgia. Quando, em 1990, a Geórgia procurou pôr fim ao status autônomo de suas zonas étnicas não-georgianas, estas imediatamente se declararam Estados independentes. Não foram reconhecidas por nenhum país, mas a Rússia garantiu sua autonomia de fato. Os fatores mais imediatos a incentivar o desencadeamento da miniguerra atual foram dois. Em fevereiro, Kosovo formalmente converteu sua autonomia de fato em independência de direito. Sua iniciativa foi apoiada e reconhecida pelos Estados Unidos e muitos países da Europa ocidental. A Rússia avisou, na época, que a lógica dessa iniciativa se aplicaria igualmente a secessões de fato ocorridas nas antigas repúblicas soviéticas. Na Geórgia, a Rússia imediatamente e pela primeira vez reconheceu a independência de direito da Ossétia do Sul, em resposta direta à de Kosovo. E, na reunião da Otan de abril deste ano, os Estados Unidos propuseram que Geórgia e Ucrânia fossem recebidas num chamado Plano de Ação para Ingresso (na Otan). A Alemanha, a França e o Reino Unido se opuseram, dizendo que isso provocaria a Rússia.

Jogada desesperada
O presidente neoliberal e fortemente pró-americano da Geórgia, Mikhail Saakashvili, se desesperou. Ele via a reafirmação da autoridade georgiana na Ossétia do Sul (e também na Abkházia) como perspectiva cada vez mais distante, de maneira permanente. Assim, escolheu um momento de desatenção da Rússia (Putin estava nas Olimpíadas, o presidente Dmitri Medvedev, de férias) para invadir a Ossétia do Sul. As insignificantes forças militares da Ossétia do Sul desabaram completamente, é claro. Saakashvili imaginava que forçaria os Estados Unidos (e também a Alemanha e a França) a sair em seu apoio. Em vez disso, houve uma reação militar russa imediata, superando o pequeno Exército georgiano de forma avassaladora. O que Saakashvili recebeu de George W. Bush foi retórica. Afinal, o que Bush podia fazer? Os Estados Unidos não são uma superpotência. Suas Forças Armadas estão inteiramente tomadas por duas guerras que estão perdendo no Oriente Médio. E, o mais importante de tudo, os Estados Unidos precisam da Rússia muito mais do que a Rússia precisa deles. O chanceler russo, Sergei Lavrov, em artigo no "Financial Times", fez questão de observar que a Rússia é "parceira do Ocidente com relação ao Oriente Médio, Irã e Coréia do Norte". Quanto à Europa ocidental, a Rússia, essencialmente, controla seu suprimento de gás. Não foi por acaso que foi o presidente Nicolas Sarkozy, da França, e não Condoleezza Rice, quem negociou a trégua entre Geórgia e Rússia. A trégua contém duas concessões essenciais da Geórgia. Esta se comprometeu a não mais recorrer à força na Ossétia do Sul. E o acordo não faz referência à integridade territorial georgiana. Assim, a Rússia emergiu muito mais forte que antes. Saakashvili apostou tudo o que tinha e agora esta geopoliticamente falido. E, como nota de rodapé irônica, a Geórgia, uma das últimas aliadas nos EUA na coalizão no Iraque, retirou seus 2.000 soldados desse país. Esses soldados vinham exercendo um papel crucial nas áreas xiitas e agora terão que ser substituídos por soldados dos EUA, que, para isso, terão que ser retirados de outras áreas. Quando se joga xadrez geopolítico, é aconselhável conhecer as regras, para não ser derrubado pela jogada do rival.

IMMANUEL WALLERSTEIN, pesquisador sênior na Universidade Yale, é autor de "O Declínio do Poder Americano"
Tradução de CLARA ALLAIN


[Folha de São Paulo, 17/08/2008]

Ao Brasil, notícias da fome na Etiópia

Onde está a "mão invisível" que regula o mercado? Nenhuma das pessoas que vi morrer de fome por aqui parecia conhecê-la


É CONSENSO para organizações internacionais como Unicef e FAO (Fundo das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) que a produção mundial de alimentos é mais que suficiente para cobrir as necessidades terrestres. Porém, durante a leitura deste artigo, 60 crianças no planeta morrerão de desnutrição e, ao fim do dia, serão quase 20 mil. Na Etiópia, onde trabalho em uma emergência nutricional com Médicos Sem Fronteiras (MSF), todos os dias me pergunto por onde anda a mão invisível e mágica do mercado global, o melhor regulador da economia. Nenhuma das pessoas que vi morrer de fome por aqui parecia conhecê-la. Em Kambata, no sul da Etiópia, fica bem clara uma das lógicas geradoras de fome. Dedicadas à produção de gengibre para o mercado externo, muitas famílias de pequenos produtores deixaram de produzir comida para consumo próprio, imaginando que, com a venda da colheita, poderiam comprar os insumos necessários a seu sustento. O preço do gengibre, contudo, ficou abaixo do esperado, o custo dos alimentos subiu, agravado pela crise mundial e pelo clima local e, como resultado, a fome chegou. Crise semelhante se deu no Níger, em 2005, onde à insuficiente produção de subsistência uniram-se a seca e os ataques de gafanhotos à lavoura. Nesse país, onde MSF já cuidou de mais de 500 mil crianças desnutridas, ao mesmo porto de onde partiam navios abarrotados de cereais para exportação chegavam carregamentos de ajuda alimentar para a faminta população local. Embora o aumento do custo dos alimentos seja um importante fator de crise, é preciso lembrar que ele apenas agrava uma situação crônica. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), a desnutrição representa 10% de todas as doenças e já vem sendo há muito tempo negligenciada pela comunidade internacional. De acordo com a Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais, iniciativa de MSF, apenas 3% dos 20 milhões de crianças com desnutrição severa recebem o tratamento recomendado pela ONU. Quando a escassez de comida é intensa, as famílias reduzem o número de refeições e precisam abrir mão de bens essenciais, como gado e até a própria casa. Se a situação piora, as estruturas da comunidade entram em colapso, aumenta a violência, iniciam-se grandes ondas migratórias e os indivíduos menos valorizados na cadeia produtiva, como meninas e órfãos, tendem à marginalização. O momento final e mais grave ocorre quando há falta absoluta de alimentos, afetando uma grande população por um longo período. Nesse caso, o cenário é desolador, e a mortalidade, altíssima. Em um acelerado processo de degradação humana, parte de um povo vai sendo consumido e sua descendência poderá ter a capacidade cognitiva prejudicada pela falta de acesso aos nutrientes adequados. Aqui em Kambata, diariamente mais de 3.000 pessoas procuram nossos centros de nutrição. Há dias que precisamos interromper as atividades, com medo de perder o controle da multidão desesperada. Alguns pacientes estão tão fracos que nem conseguem engolir. É difícil descrever a aparência da fome. A criança desnutrida é triste, parada, tem cara de velhinho e, algumas, por causa da carência protéica, ficam com as pernas e o rosto inchados. Mesmo assim, é possível salvar muitas vidas e, especialmente no caso das crianças, após duas semanas de tratamento, o rosto muda tanto que quase não dá para reconhecer. Duas identidades me são evocadas no trabalho na Etiópia. A de médico e a de brasileiro. A de médico de MSF Brasil me faz lembrar que é muitas vezes nos centros de saúde que fenômenos como a fome e a violência mostram sua cara mais feia e que, embora sejam essenciais programas de desenvolvimento para evitar as crises, eles não devem ser feitos em detrimento de respostas emergenciais necessárias. A de cidadão brasileiro me faz desejar que nosso país, que tem produzido algumas tecnologias bem-sucedidas de combate à pobreza e à fome, seja mais proativo em sua política de cooperação com outras nações do Sul. O Brasil que precisa de ajuda também tem condições de ajudar. Há alguns dias, perdemos Mamushe, uma menina com nove anos, desnutrição severa e ares de princesa etíope. Sempre que Mamushe me perguntava onde era o Brasil, eu respondia: "Longe". Na madrugada em que tentei reanimá-la, o corpo fraquinho não resistiu e se foi. Ao ouvir o pranto de sua mãe, lembrei-me de uma frase proferida pelo escritor moçambicano Mia Couto na ocasião do tsunami: "Nunca é longe o lugar de onde nos chega um grito de apelo. O sofrimento atingiu também a nós. O vosso luto é o nosso luto".

DAVID OLIVEIRA DE SOUZA, 32, é médico e responsável pela Unidade Médica de Médicos Sem Fronteiras no Brasil. Especialista em medicina de família e comunidade pela Uerj e em clínica médica pela UFRJ, mestre em relações internacionais pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris, é professor de saúde coletiva da Universidade Federal de Sergipe.

[Folha de São Paulo, 17/08/2009]

Eleição eclética abre espaço para motoboy, pescador e manicure

Lista do TSE com as ocupações de candidatos revela que uma multidão de menos votados decidiu entrar no jogo

Gabriel Manzano Filho

Longe vão os tempos em que entrar na política era um luxo de empresário, fazendeiro, médico e advogado. Uma listagem do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com as ocupações dos quase 380 mil brasileiros que concorrem a algum cargo em outubro revela que uma multidão de menos votados - quase nunca votados - decidiu entrar no jogo.

São padeiros, vigilantes, manicures, garçons, motoboys, funileiros, frentistas de postos, faxineiros e dezenas de outras profissões - gente que os partidos sempre ignoraram e que procuraram as zonas eleitorais e preencheram uma ficha, em busca de uma vaga de prefeito, vice ou vereador nas 5.564 cidades brasileiras.

A lista de mais de 180 ocupações aparece quase integralmente entre os 15.331 concorrentes a prefeito. Ela inclui 10 barbeiros, 8 taxistas, 6 vigilantes, 24 motoristas particulares, 3 padeiros, 2 pescadores, 1 motoboy, 1 lavador de carros, l frentista de posto, 2 bailarinos e 1 cozinheiro. Mais 847 definiram sua ocupação no campo "outros".

Já entre os 348.530 candidatos a vereador, há 558 motoboys. Ao lado deles, 83 lavadores de carro, 11 flanelinhas, 273 faxineiros, 199 garis, 36 coveiros e 60 catadores de recicláveis - o pessoal que recolhe papelão e madeira em lixeiras e caçambas, puxando uma carroça com a força dos braços. Essa babel de conquistados pela política formal tem ainda artista de circo, manicure, recepcionista, atendente de lanchonete e até guardador de carro. Diante de tanta variedade, o TSE não tem idéia do que fazem mais 39.624 cidadãos que se definiram como "outros".

"Há, de fato, uma disseminação impressionante das ocupações, entre essas centenas de milhares de pré-candidatos", diz o cientista político Francisco Foot Hardman, da Unicamp. Para ele, esse processo vem crescendo, devagarinho. Mesmo antes da Constituição de 1988 as eleições para governador e prefeito das capitais "marcaram a entrada, na cena política, de novos atores, tanto dos movimentos sociais quanto de partidos não previstos inicialmente". Para o historiador Marco Antonio Villa, da Universidade Federal de São Paulo (UFSCAR), "é possível pensar em uma democratização das candidaturas". Ele a atribui, em parte, "ao grande número de partidos com registro no TSE".

No conjunto, é claro, esses recém-chegados ainda não são páreo para os concorrentes tradicionais. Na corrida às prefeituras, por exemplo, o cenário continua habitado por levas de advogados (809), empresários (1.447), médicos (979), professores (812) e comerciantes (1.380), além dos 2.094 prefeitos que buscam a reeleição. E buscam uma cadeira nas Câmaras Municipais 10.229 empresários, 5.454 advogados, 2.451 médicos e 17.569 vereadores que tentam mais quatro anos no cargo. A presença das estruturas sindicais aparece no grande número de trabalhadores de construção civil (2.968) e de agricultores (8.119). A lista não esclarece, no entanto, quantos destes últimos são grandes proprietários rurais, pequenos lavradores ou empregados.

Mas é um cenário bem diferente do que existia quatro ou cinco décadas atrás. Um país que, no início dos anos 60, tinha cerca de 15 milhões de eleitores saltou para 125,9 milhões - praticamente um de cada sete cidadãos. Esse número de candidatos não é definitivo: muitas candidaturas acabam indeferidas pelos juízes eleitorais, quando estes aplicam no interessado um teste de escolaridade. "E é preciso ver quem vai vencer as eleições", adverte Villa. "Pode ser que os vencedores excluam as profissões com menor escolaridade."

SEM DIPLOMA
Essa multidão de recém-chegados à política formal representa novos desafios para os tribunais e para os partidos. Juízes eleitorais enfrentam uma tarefa bem maior com a grande quantidade de candidatos analfabetos. Chega a 45% o total dos candidatos sem ensino médio - e deles 53% nem sequer terminaram o ensino fundamental. São quase 170 mil pré-candidatos nessa condição, em todo o País. Nas contas do IBGE, o analfabetismo é dominante em um de cada seis municípios brasileiros.

Na prática, os juízes eleitorais ficam divididos entre a lei e o mundo real. O art. 14º da Constituição determina, em seu parágrafo 4º, que "são inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos", mas não se define o que é, exatamente, um analfabeto. A Justiça Eleitoral leva em conta que muita gente sem diploma sabe escrever um pouco, tem experiência prática e perfeitas condições para a atividade política. Por isso, enquanto muitos tribunais estão indeferindo registros de gente que não passa no teste de escolaridade, outros são mais tolerantes. Dos 713 concorrentes do Recife, por exemplo, nenhum perdeu o registro por causa de analfabetismo.

Cabe lembrar, segundo o historiador Villa, que o debate político "é pobre independentemente da escolaridade dos candidatos. Nas grandes cidades, essa escolaridade de prefeitos e vereadores é razoavelmente alta e nem por isso elas são bem administradas ou o debate é de bom nível. O problema é a pobreza na elaboração de propostas para a gestão municipal. A maioria dos candidatos não sabe as atribuições de um vereador".

Para os partidos, o crescimento de grupos organizados nas periferias - de onde surgem muitos desses candidatos - cria novas tensões. "Os partidos têm seus aliados nessas áreas, mas procuram controlá-los e fazem de tudo para tirar espaço dos líderes comunitários independentes", lembra o presidente do PPS em São Paulo, Carlos Fernandes. "Se os deixarem livres, eles assumirão vôo próprio e o partido perde o controle do eleitorado local."

Para o professor Foot Hardman, há outro problema a considerar. "É terrível constatar que essa diversificação socioeconômica e sociocultural esbarra num sistema político arcaico, refém dos piores clientelismos." É um quadro de "partidos-máquinas sem programa nem ideologia, Legislativos auto-imunes a controles da sociedade". "Muitas vezes a energia de candidatos jovens e excluídos é rapidamente neutralizada nessas tramas locais de um mesmo novelão reiterador do status quo."

[O Estado de São Paulo, 17/08/2008]

Conflito na Geórgia dá uma lição sobre a dependência americana da Rússia

Washington - A imagem do presidente Bush sorrindo e conversando com o primeiro-ministro da Rússia, Vladimir V. Putin, nas arquibancadas das Olimpíadas de Pequim mesmo enquanto as aeronaves russas bombardeavam a Geórgia, define a realidade da política norte-americana em relação à Rússia. Enquanto os EUA consideram a Geórgia seu maior aliado no bloco dos antigos países soviéticos, Washington precisa tanto da Rússia em assuntos maiores como o Irã, para arriscar tudo isso em defesa da Geórgia.

Autoridades do Departamento de Estado deixaram claro no sábado que de nenhuma maneira os Estados Unidos iriam intervir militarmente.

Bush usou uma linguagem dura, pedindo que a Rússia parasse com os
bombardeios. E a secretária de Estado Condoleezza Rice demandou que a Rússia "respeitasse a integridade territorial da Geórgia".

O que Putin fez? Primeiro, ele repudiou o presidente Nicolas Sarkozy da França em Pequim, recusando-se a mudar de posição quando Sarkozy tentou dissuadir a Rússia de sua operação militar. "Foi um encontro muito, muito difícil", disse um oficial ocidental depois. "Putin dizia: 'Nós vamos fazer eles pagarem. Vamos fazer justiça'".

Putin, então, voou de Pequim para uma região que faz fronteira com a Ossétia do Sul, chegando depois do anúncio de que a Geórgia estava retirando suas tropas para fora da capital do território separatista. Ele apareceu ostensivamente para coordenar a assistência aos refugiados que fugiram da Ossétia do Sul para a Rússia, mas a mensagem russa era clara: essa é nossa esfera de influência; os outros devem ficar de fora.

"Pela primeira vez desde a queda da União Soviética, o que os russos fizeram foi tomar uma ação militar decisiva e impor uma realidade militar", disse George Friedman, chefe executivo da empresa de inteligência e análise geopolítica Stratfor. "Eles fizeram isso de forma unilateral, e todos os outros países que contam com o Ocidente para intimidar russos agora foram forçados a considerar o que acabou de acontecer".

Oficiais do governo Bush reconhecem que o mundo, e os Estados Unidos em particular, têm pouca influência sobre as ações russas.

"Não há possibilidade de colocar a Otan ou a comunidade internacional dentro disso", disse um oficial sênior do Departamento de Estado durante uma teleconferência com repórteres. "Não há nenhuma chance. Não existe um perigo de conflito regional em nossa mente".

O conflito emergente na Geórgia desencadeou uma onda de diplomacia. Rice e outros oficiais do Departamento de Estado e do Pentágono falaram ao telefone com o ministro de relações exteriores russo, Sergey V. Lavrov, e com outras autoridades russas, assim como com oficiais da Geórgia, incentivando os dois lados a retomarem as conversações de paz.

A União Européia - e a Alemanha em particular, com seus fortes laços com a Rússia - pediu para que ambos os lados recuem e agendem reuniões para divulgar suas preocupações. Nas Nações Unidas, membros do Conselho de Segurança encontraram-se informalmente para discutir uma possível resposta, mas um diplomata do Conselho disse que há dúvidas de que eles possam fazer alguma coisa, uma vez que a Rússia e a China têm poder de veto no Conselho.

"Estrategicamente, os russos têm enviado sinais de que realmente querem exercitar sua força, e que estão chateados por causa de Kosovo", disse o diplomata. Ele se referia ao revanchismo russo contra o Ocidente por ter reconhecido a independência de Kosovo em relação à Sérvia no começo desse ano.

De fato, a decisão dos Estados Unidos e da Europa em reconhecer Kosovo pode ter aberto o caminho para a decisão relâmpago da Rússia de enviar tropas para apoiar os separatistas da Ossétia do Sul. Durante uma reunião sobre Kosovo em Bruxelas esse ano, Lavrov, o ministro do exterior, alertou Rice e os diplomatas europeus que se eles reconhecessem Kosovo, estariam abrindo um precedente para que a Ossétia do Sul e outras províncias separatistas. Com a mesma facilidade que o Ocidente poderia encorajar o antigo território russo em direção à independência e para fora da esfera de influência da Rússia, os russos advertiram que eles também poderiam encorajar as regiões separatistas pró-russas como a Ossétia do Sul a fazerem o mesmo.

Para o governo Bush, a escolha agora é saber se vale à pena apoiar a Geórgia - que, mais do que qualquer outra antiga república soviética, aliou-se aos Estados Unidos - na questão da Ossétia do Sul, contrariando a Rússia numa época em conseguir o apoio russo para conter as ambições nucleares do Irã está no topo da agenda da política estrangeira dos EUA.

Um diplomata das Nações Unidas disse em tom de brincadeira no sábado que "se alguém chegasse para os russos e dissesse: 'OK, Kosovo pelo Irã', teríamos um acordo."

Isso pode ser uma hipérbole, mas há um sentimento crescente entre alguns oficiais do governo Bush de que talvez os Estados Unidos não possam ter tudo, e tenham de eleger prioridades, particularmente no que diz respeito à Rússia.

O forte apoio do governo Bush à Geórgia - incluindo o treinamento dos militares do país e o apoio de armas - veio, em parte, como uma recompensa por sua ajuda aos EUA no Iraque. Os Estados Unidos sustentaram a Geórgia como um sinal de democracia na antiga União Soviética, ela deveria ser um exemplo para outras ex-repúblicas soviéticas em relação aos benefícios de apoiar o Ocidente.

Mas isso, junto com as ações dos EUA e da Europa em Kosovo, deixaram a Rússia se sentindo ameaçada, encurralada e cada vez mais convencida de que deveria tomar medidas agressivas para restaurar seu poder, dignidade e influência numa região que ela considera como um quintal estratégico, dizem os especialistas em política internacional.

A agressividade emergente da Rússia está sincronizada com a preocupação dos Estados Unidos em relação ao Iraque e ao Afeganistão, e com o confronto iminente com o Irã. Com essas considerações na balança, significa que Moscou está sentada no assento do motorista, reconhecem oficiais do governo.

[clique aqui e companhe as notícias do conflito]

[Folha de São Paulo, 10/08/2008]

As autoridades francesas recusam-se a responder às acusações de Ruanda

Philippe Bernard e Arnaud Leparmentier

Todos combinaram de antemão o que iriam dizer e fazer: nada de reações espalhafatosas. Os dirigentes em Paris optaram por se mostrarem discretos, quase que indiferentes depois da publicação do relatório ruandês no qual a França é acusada de ter participado do genocídio dos tutsis em 1994. O objetivo é de não atrapalhar uma eventual retomada do diálogo com Ruanda, um processo que foi iniciado quando o presidente Nicolas Sarkozy se reuniu com o seu homólogo Paul Kagamé, em dezembro de 2007.

Vale lembrar que o ministério francês das relações exteriores qualificou de "inaceitáveis", na quarta-feira, 6 de agosto, as acusações ruandesas e questionou "a objetividade" da comissão de inquérito ruandesa. Mas, no site na Internet do ministério, o comunicado é ilustrado com uma foto de Bernard Kouchner (o atual ministro desta pasta) na qual este aperta a mão do presidente ruandês.

Aliás, o ministério francês das relações exteriores lembra que a sua "determinação a construir uma nova relação com Ruanda, muito além desse passado difícil, permanece intacta". A trégua das férias de verão fez com que as autoridades francesas não precisassem mostrar muito empenho, no momento em que o noticiário relativo às relações franco-ruandesas deverá ser rapidamente abafado pelos Jogos Olímpicos de Pequim. O executivo francês decidiu que o ministério das relações exteriores seria a única entidade autorizada a expor a posição oficial do governo, por ocasião de sua coletiva de imprensa cotidiana.

Bernard Kouchner recusou-se a fazer todo e qualquer comentário pessoal. "O governo não quer dar a impressão de que ele atribui uma importância excessiva a este relatório, e prefere evitar atiçar a polêmica", explicam assessores do ministro. A presidência, por sua vez, não fez nenhuma declaração política, enquanto a sua assessoria aconselhou os interessados a consultarem os técnicos especialistas no dossiê. Apenas o ministro da defesa, Hervé Morin, manifestou-se, denunciando durante entrevista a Radio France Internationale, na manhã de quinta-feira, "um processo insuportável para a memória dos militares franceses" que "salvaram milhares de vidas humanas dentro de condições abomináveis".

Sublinhando a "dimensão política" do relatório ruandês, no qual a sua atuação durante os eventos é questionada, o general Jean-Claude Lafourcade, que foi o comandante da operação "Turquesa", qualifica este documento de "uma trama de mentiras" e denuncia "a manipulação da boa-vontade das testemunhas" por parte de Ruanda. "250 jornalistas e cerca de mil humanitários se encontravam na área dos conflitos. Vocês acham mesmo que eles não teriam visto nada?", declarou, em entrevista ao "Le Monde".

As outras personalidades cuja atuação foi questionada, tanto as de direita como de esquerda, se mostraram mais discretas. Hubert Védrine, que era o secretário-geral da presidência em 1994, referiu-se a um texto de sua autoria que já foi publicado, no qual ele qualifica de "monstruosas (...), absurdas (...), mas, sobretudo falsas" as acusações proferidas pelas autoridades de Kigali. Contatado pela agência de notícias AFP, o antigo ministro das relações exteriores Alain Juppé preferiu remeter seu interlocutor a um artigo de opinião que ele postou no seu próprio blog em janeiro. Por sua vez, Edouard Balladur, que na época era o primeiro-ministro, nomeado por François Mitterrand, não quis se manifestar.

"Tentar convencer as pessoas de que a França participou da preparação de um genocídio é simplesmente monstruoso", declarou Paul Quilès, que foi o presidente em 1998 da Missão de Informação Parlamentar sobre Ruanda. "Tudo o que nós pudemos comprovar, foi que erros foram cometidos na época, os quais foram apontados em nosso relatório".

A associação "Survie" (Sobrevivência), especializada na denunciação da "Françáfrica" (o suposto neocolonialismo francês neste continente) foi a única a defender o relatório ruandês. Ela considera "indispensável que a França crie uma comissão de inquérito parlamentar".

Ruanda rompeu suas relações diplomáticas com a França em novembro de 2006, depois da decisão do juiz Bruguière que acusou o presidente Kagamé de envolvimento no assassinato do seu predecessor. O magistrado antiterrorista havia emitido então nove mandatos de prisão contra dirigentes ruandeses. Paralelamente, a justiça espanhola lançou mão de outras acusações, as quais colocaram entraves na liberdade de viajar de vários dirigentes ruandeses. As autoridades de Paris enxergam no relatório ruandês "uma resposta direta a essas perseguições", informaram assessores da presidência francesa.

Em Kigali, a ministra ruandesa da informação, Louise Mushikiwabo, explicou numa declaração que "o governo pediu às autoridades judiciárias ruandesas para se valerem deste relatório. Nós esperamos que um processo judiciário decorra da sua publicação". Contudo, segundo assessores franceses, "nenhuma dessas providências se mostra contrária à vontade comum de tentar resolver a situação. Os ruandeses estão tentando tomar a iniciativa nas discussões para alcançarem uma posição de força, de modo que nós reduzamos nosso nível de agressividade para com eles".

Em relação ao fundo da questão, as autoridades francesas, que se recusaram a se reunirem com os autores do relatório ruandês quando estes estiveram na França em fevereiro de 2007, avaliam que nenhum relatório conseguiu comprovar que houve uma participação direta dos soldados franceses em quaisquer exações.

Tradução: Jean-Yves de Neufville
[Le Monde, 08/08/2008]

Generais sem estrelas

Em artigo dirigido às Forças Armadas dos Estados Unidos, um tenente-coronel do Exército americano aponta as responsabilidades pelo fracasso de seu país na guerra do Iraque
Paul Yingling - [clique aqui para ler na íntegra]

[Revista Piauí]

Lições do Século XX: O que aprendemos, se é que aprendemos algumas coisa?

De que serve o culto moralista da memória? Para que repetir "nunca mais" se a tortura de Estado voltou e é defendida por políticos e intelectuais?
Por Tony Judt - [clique aqui para ler na íntegra]

[Revista Piauí]

Propaganda

A alma do negócio
A publicidade não pode espelhar a realidade – e este talvez seja seu grande malefício sócio-cultural. Toda propaganda é enganosa e, quanto mais enganosa, melhor. Não importa que a harmonia doméstica nada tenha a ver com o uso de um creme dental ou com a margarina Qualy
[clique aqui para ler...]

Consumidores, uni-vos!
Há um truque banal no recém-lançado "manifesto" dos publicitários. Ao apresentar a propaganda como base da liberdade de expressão, ele despreza público e sociedade. Mas ignora os movimentos pela radicalização da democracia — que exigem, inclusive, um novo padrão de propaganda
[clique aqui para ler...]

Como ocorreu a revolução republicana nos Estados Unidos

Daniel Vernet, em Ripon, Wisconsin

Ao longo de um século e meio, a "pequena escola branca" não mudou. A madeira pintada da parte externa continua querendo lembrar o mármore dos palácios gregos ou romanos. A antiga estufa segue instalada no meio da sala quadrada, a única dependência desta construção, e as carteiras permanecem alinhadas em volta dela. Ela foi construída em 1853 para o vilarejo de Ripon, que contava então 200 habitantes. A escola tornou-se um museu, que vem sendo conservado rigorosamente por dois devotos de Abraham Lincoln (1809-1865, o 16º presidente dos Estados Unidos), por ela ter sido o palco, em 1854, da primeira reunião daquilo que iria tornar-se o Partido Republicano.

Naquela época, o país estava travando um grande debate a respeito da escravidão. Dois anos antes, em 1852, fora publicado "A Cabana do Pai Tomás" (da escritora Harriet Beecher Stowe, 1811-1896), um livro publicado inicialmente em forma de novela pelos jornais, e que comoveu a América. A escravidão reinava então nos Estados do Sul. O Norte fora poupado desta praga, mas, o que aconteceria nos novos Estados que estavam se constituindo aos poucos, à medida que os pioneiros seguiam conquistando as terras dos índios no Centro e no Oeste? A lei Kansas-Nebraska visava a deixar que os habitantes dos novos Estados exercessem seu direito de decidir se eles aceitavam ou não a escravidão em seu território. Esta determinação deixou os abolicionistas indignados.

Reuniões foram realizadas por toda parte no Norte da União. Ripon é uma localidade vizinha de Ceresco, uma comunidade fundada, em 1844, por discípulos do filósofo francês Charles Fourier (1772-1837). Em 20 de março de 1854, eles se reuniram na "pequena escola branca". Lá estavam, acotovelados em volta da estufa à lenha, cerca de cinqüenta homens e três mulheres com uma criança. Eles decidiram que, caso a lei Kansas-Nebraska fosse adotada, eles fundariam um novo partido, cujo único objetivo seria de impedir a expansão territorial da escravidão. Ele se chamaria de Partido Republicano, conforme uma recomendação que fora feita por Horace Greeley, o editor do "New York Tribune".

Lincoln não esteve presente na reunião de Ripon. E tampouco fora visto alguns meses mais tarde em Jackson (Michigan), uma cidade que também reivindica até hoje o título de berço dos republicanos. Em 6 de julho, uma convenção foi convocada para reunir os adversários da escravidão, ou, mais exatamente, da sua propagação. "Uma vez que no dia da convenção o calor era intenso e que a imensa multidão não poderia caber naquela sala, a reunião foi transferida para Oak Grove, nos arredores de Morgan's Forty, nos subúrbios da cidade. Lá, uma amostragem de candidatos na escala nacional foi escolhida. O Partido Republicano havia nascido", explica uma placa na encruzilhada da Franklin com a Second Street. Em 8 de novembro de 2007, John McCain, que ainda não passava de um pré-candidato à investidura republicana para a eleição presidencial, apareceu no local para pronunciar um discurso, "debaixo dos carvalhos".

"O Partido Republicano é um fenômeno único em nossa história política", escreve o cientista político Wilfred Binkley, "pelo fato de ele ter nascido espontaneamente, sem a ajuda de um líder inconteste, como Washington [George Washington, 1732-1799, o 1º presidente] para os federalistas; ou como Jefferson [Thomas Jefferson, 1743-1826, o 3º presidente] para os primeiros republicanos, ou Jackson [Andrew Jackson, 1767-1845, o 7º presidente] para os democratas, ou ainda Clay [Henry Clay, 1777-1852, homem político] para os whigs [Partido liberal de direita, fundado em 1833]". E, ao mesmo tempo, ele é o primeiro partido moderno que, a partir do triunfo durante a guerra civil, dominará a vida política americana até o final do século 19.

Aparentemente, a política americana vem se estruturando desde aquela época em torno dos dois principais partidos, o Partido Republicano e o Partido Democrata. Contudo, esta estabilidade esconde de fato transformações profundas. Os especialistas distinguem cinco sistemas, que se diferenciam entre si, sobretudo, pelo lugar ocupado pelos partidos terceiros, vinculados a uma orientação extrema ou a fortes personalidades. Por mais que essas pequenas agremiações, quase sempre efêmeras, chegaram a perturbar o sistema, elas nunca conseguiram representar uma ameaça séria contra ele.

Os primeiros tempos haviam sido complicados. Na União que estava nascendo, as divisões políticas se criavam e se desfaziam no âmbito de uma mesma opinião, a qual era chamada na Europa de "liberal". Conforme escreveu em 1950 o sociólogo Lionel Trilling, "o liberalismo não é apenas a tradição intelectual dominante [nos Estados Unidos], como é até mesmo a única". A distinção entre esquerda e direita, entre reformistas e conservadores, se define a partir da interpretação e da implementação de princípios idênticos, aqueles que foram incluídos na Declaração da Independência e na Constituição. Os partidos trocam de nome e de programa, adotando em muitos casos os dos seus adversários derrotados. Entretanto, uma divergência, que permeia a história americana como um todo, opõe os partidários de um governo central forte aos partidários dos direitos dos Estados federados. Enquanto os primeiros eram chamados de federalistas, os segundos, antifederalistas, haviam adotado com Jefferson o nome de republicanos, mudando pouco depois para democratas republicanos, e, por fim, para democratas, uma vez que não existiam monarquistas aos quais eles deveriam se opor na qualidade de partidários da República!

Em meados do século 19, a defesa da escravidão, encampada pelos democratas, e a ênfase dada aos direitos dos Estados costumam ser associadas numa causa comum. E, inversamente, muitos adversários da escravidão, e, sobretudo, da sua difusão nos novos Estados, estão decididos a priorizar a União e o governo central.

Abraham Lincoln é um destes últimos. Ele opta por aguardar durante dois anos, até a vitória de 1856 para se juntar ao Partido Republicano, em torno do qual vão se reunindo aos poucos simpatizantes dos Whigs (do nome do partido reformista na Inglaterra), federalistas, membros do Partido do Solo Livre (Free Soilers), além de democratas que se opõem à escravidão. Lincoln faz constantemente referências a Jefferson e à Declaração da Independência, a qual ele considera como um instrumento da democracia, e não uma teoria formal.

Um herói da luta contra a escravidão, Lincoln é um homem de personalidade complexa, "o primeiro autor da sua própria lenda e o maior dos dramaturgos" da sua própria vida, conforme escreveu o melhor observador dos partidos políticos americanos, Richard Hofstadter. Antes de ser eleito presidente dos Estados Unidos, em 1860, ele tornou-se célebre por conta de ardorosos discursos e dos seus debates com Stephen Douglas, um senador democrata que também acalentava o sonho de se tornar o ocupante da Casa Branca. Em Springfield - hoje a capital do Illinois, onde Barack Obama lançou a sua campanha em 10 de fevereiro de 2007, dois dias antes do aniversário do nascimento de Lincoln -, e depois, alguns dias mais tarde, em Peoria, Lincoln assume posição contra a lei Kansas-Nebraska, que é defendida por Douglas com o objetivo de atrair a simpatia dos democratas do Sul.

Lincoln não é o que se pode chamar propriamente de um abolicionista: libertar os escravos e enviá-los de volta para a Libéria? Ou libertá-los e fazer deles os iguais do homem branco? "Os meus próprios sentimentos não admitem nenhuma dessas possibilidades", diz. Entretanto, ele não aceita que a escravidão se dissemine rumo ao norte e ao oeste da União, isso porque "a maior parte da humanidade considera a escravidão como um grande mal moral". Não é apenas uma questão de princípios, mas também de eficiência. "Os novos Estados devem ser os refúgios dos homens brancos livres. E isso não será possível se a escravidão se disseminar"; isso porque "os Brancos pobres logo estarão ameaçados de sofrer a destino dos Negros", declarou o futuro presidente em Peoria, num discurso que durou três horas.

Num dos morros que dominam a cidade, um busto comemora este momento histórico, durante o qual, segundo a reportagem de um jornal local, "Abraham Lincoln estava com as mangas da camisa levantadas quando ele subiu à tribuna. Pude constatar", prossegue o jornalista, "que, embora estivesse um pouco sem jeito, ele não estava nem um pouco constrangido. Ele começou falando lentamente e com hesitação, mas em momento algum cometeu qualquer erro nem se confundiu com palavras, datas ou fatos. Era evidente que ele dominava seu assunto; que ele conhecia profundamente o que ele iria dizer, e que ele sabia que estava com a razão".

Alguns anos mais tarde, por ocasião dos seus debates com Douglas, Lincoln retomaria esses argumentos, os quais ele chegou a resumir numa carta a Horace Greeley: "Tudo o que andei fazendo a respeito da escravidão e das pessoas de cor, eu o fiz porque acredito que isso possa ajudar a salvar a União". Animado por esta vontade de "salvar a União", ele joga-se de cabeça na guerra contra os secessionistas do Sul. Esta constitui um meio para unir o Partido Republicano - o qual ele enxerga então como uma "casa dividida contra ela mesma, composta por elementos estrangeiros uns para os outros, discordantes e até mesmo hostis uns aos outros" -, abolicionistas e partidários da escravidão, além de fazendeiros e de operários, ou seja, um conglomerado que simboliza a situação, na época, dos partidos políticos americanos.

No século 20, as imagens dos dois partidos, Republicano e Democrata, acabarão se invertendo, mas, durante os anos 1850-1860, o GOP (Grand Old Party) desponta como o defensor do governo central, o dos "negro worshippers" (adoradores dos negros) ou "black republicans" (republicanos negros) e da população pobre. O GOP, no começo, apareceu como o partido da mudança radical, lembra Robert Dallek, autor da biografia de um grande número de presidentes americanos. Depois, a sua imagem e a sua natureza mudaram. Com o fim da guerra civil, os republicanos perderam o único tema que contribuía para garantir a sua unidade, a luta contra a escravidão, e, da mesma forma, a motivação que lhes servia como impulsão moral.

No final do século 19, com a chegada maciça dos imigrantes, a industrialização, e a expansão da pobreza, o "partido de Lincoln" abandonou o terreno, deixando-o para os democratas, os quais se lembraram de que nos primórdios o seu partido havia sido o "partido do homem simples" (Jefferson), contra os federalistas, elitistas. Enquanto os republicanos transformavam sua agremiação no partido do "big business" no Norte, a pátria política dos WASP (White Anglo-Saxon Protestant, protestantes brancos anglo-saxões), os democratas cuidavam de integrar os imigrantes pobres vindos da Europa, enquanto conservavam sua base racial no Sul.

A confusão das mensagens ideológicas é uma constante na vida dos partidos políticos americanos. Ela ressurgirá algumas décadas mais tarde, no embate entre duas figuras dos republicanos e dos democratas, Théodore e Franklin Roosevelt, dois homens que "se detestavam cordialmente" e que, contudo, tinham muito mais em comum do que eles próprios pensavam.

Tradução: Jean-Yves de Neufville

[Le Monde, 01/08/2008]

Ciganos, indesejáveis na França e na Europa

Anne Rodier e Laetitia Van Eeckhout

Os ciganos, também chamados de "roms" indesejáveis na França como em toda parte na Europa, empurrados de uma favela para outra, são alvo de evacuações regulares, o que permite expulsar progressivamente o conjunto da comunidade. Em Lille, 70 pessoas foram expulsas de seu terreno na última terça-feira (29) ; outras 55 foram expulsas de Saint-Etienne para a Romênia em 17 de julho. E até o fim de agosto cerca de 633 roms serão evacuados do maior acampamento da França, situado em Saint-Ouen (Seine-Saint-Denis), de um terreno onde deverão ser construídos conjuntos habitacionais.

A quarta-feira (30) foi o último dia concedido aos roms de Saint-Ouen para se candidatarem a um projeto de reinserção. O Estado e as coletividades locais vão criar na comuna uma "aldeia de inserção". Mais de 300 se candidataram, porém não mais de cem deles poderão se instalar. Os serviços sociais explicam que uma aldeia de inserção não pode receber mais de 20 famílias. As outras terão de partir. O subprefeito do distrito de Saint-Denis, Olivier Dubaut, avisa: "Não vamos tolerar acampamentos selvagens".

Em projetos semelhantes, somente 21 famílias foram escolhidas em Saint-Denis, e 18 em Aubervilliers. "Falta vontade política. Só um apoio financeiro europeu permitiria realizar projetos de maior amplidão", estima Marie-Louise Mouket, responsável pelo Pact Arim 93. Essa associação de inserção pela moradia foi encarregada pela prefeitura de Saint-Ouen de realizar uma pesquisa social. Ela permitirá que o prefeito julgue, conforme critérios à sua discrição, as famílias que têm "a vontade de se integrar na sociedade francesa", no plano profissional, escolar e lingüístico. "Os que não correspondem aos critérios terão a obrigação de deixar o território francês", afirma Dubaut.

Afinal, 400 ciganos de Saint-Ouen estão ameaçados de expulsão e 94 se inscreveram junto aos serviços de imigração (Anaem) para retornar voluntariamente à Romênia. Segundo o Ministério da Imigração, o valor da ajuda para o retorno está mantido em 300 euros por adulto. Mas em Saint-Etienne e em Saint-Ouen os roms afirmam que lhes prometeram apenas 150 euros.

Amostra de saliva
Seja como for, a maioria não quer voltar para a Romênia. "Queremos ficar na França. Quando fecharem o acampamento, iremos para outro lugar, não queremos voltar para a Romênia nunca. O que queremos? Ter o direito de trabalhar aqui", afirma Sorin Boti, 34 anos, azulejista, que vive no acampamento de Saint-Ouen. Retornando voluntariamente ou não, nada impede os que desejarem pegar mais um ônibus para a França.

Desde que entraram na União Européia, em 1º de janeiro de 2007, os romenos e os búlgaros continuam submetidos a dispositivos especiais em termos de trabalho. Mas eles são cidadãos europeus plenos, que se beneficiam da liberdade de circulação, como lembrou o Conselho de Estado em 19 de maio. Como os outros europeus, eles devem além de três meses de permanência "ou ter um emprego, ou possuir meios suficientes de subsistência", segundo a circular de 22 de dezembro de 2006, especialmente publicada pelo Ministério do Interior na véspera de sua entrada na União. Caso não cumpram as condições de permanência, romenos e búlgaros podem ser expulsos. Dos 23.186 estrangeiros expulsos em 2007, 2.271 romenos e 810 búlgaros foram devolvidos a seus países, por bem ou à força.

Os meios associativos denunciam regularmente o absurdo dessas expulsões, pois os roms voltam para a França. De 55 pessoas que partiram de Saint-Etienne em 17 de julho, duas já voltaram em duas semanas, afirma George Gunther, responsável pela Rede de Solidariedade com os Roms. Nessa aglomeração, a comunidade rom continua estável há cinco anos, com 250 a 300 pessoas.

Para evitar que eles voltem à França e se beneficiem várias vezes da ajuda de retorno humanitário, a lei de 20 de novembro de 2007 prevê um fichamento biométrico dos beneficiários da ajuda de retorno. O decreto de aplicação ainda está sendo preparado.

Mas na prática o recenseamento começou. Em Saint-Ouen, a pesquisa social - da qual os roms participaram maciçamente - constitui na verdade um fichamento preciso que será enviado à prefeitura: identidade, data de entrada na França, perfil profissional, médico e escolar. O recenseamento é completado pelos dossiês da Anaem, que trabalha em estreita colaboração com a polícia. Em Saint-Etienne, a prefeitura indica claramente que "o objetivo dos controles é registrar as identidades em um arquivo para entregar as OQTF [obrigação de deixar o território francês] em três meses, antes das evacuações".

Em Alès (Gard), os roms beneficiários da ajuda ao retorno foram convocados pela polícia para tirar impressões digitais, foto e amostra de saliva. "Um caso de proxenetismo envolvia menores, e é nesse âmbito que a autoridade judiciária procedeu à retirada de amostras", explica um conselheiro de Hortefeux. E este insiste: o fichamento biométrico não será aplicado só aos ciganos. De todo modo, na França, assim como na Itália, o fichamento dos roms começou.

Em Portugal, juiz qualifica ciganos de "pérfidos"
O julgamento provocou um clamor em Portugal. Em uma decisão proferida pelo tribunal de Felgueiras na quarta-feira (30) cinco ciganos condenados a penas de prisão por ter agredido policiais foram qualificados pelo juiz de "pessoas malvistas socialmente, marginais, pérfidos, totalmente dependentes do Estado e que lhe pagam desobedecendo e atentando contra a integridade física e moral de seus agentes". A juíza explicou que as condições de habitação dos cinco homens eram "ruins, não devido ao espaço físico em si, mas devido ao estilo de vida de sua etnia (pouca higiene)". Há 50 mil ciganos em Portugal. "Estamos cansados de discriminações", reagiu a Federação de Associações Ciganas do país.

Os ciganos na Europa
A maior minoria da Europa, os ciganos seriam 7 milhões, originários principalmente da Romênia e dos Bálcãs. Seu número é difícil de definir porque existem poucas estatísticas étnicas. O Conselho da Europa define dados que reúnem os ciganos e a "gente de viagem". A Romênia contaria com 1,8 milhão de ciganos e a Bulgária, 650 mil. Na França, 400 mil pessoas são recenseadas como "gente de viagem e roms". Entre elas, os ciganos são muito minoritários.

Os destinos preferidos pelos ciganos fora de seu país de origem são a Itália, com 200 mil roms, e a Espanha, com 700 mil. A Itália deverá fornecer no início de agosto à Comissão Européia um relatório sobre o recenseamento realizado nos acampamentos de Milão, Roma e Nápoles.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

[Le Monde, 01/08/2008]

Em 13 anos, fiscais libertam 30 mil ‘neo-escravos’

Artigo 1°: É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil.
Artigo 2°: Revogam-se as disposições em contrário.

Baixada em 13 de maio de 1888, a Lei Áurea é simples e direta. Não oferece margem a dúvidas.
A despeito disso, decorridos 120 anos do dia em que a princesa Isabel a assinou, ainda há no Brasil trabalho escravo.
É uma modalidade diferente de escravidão. Nada a ver com o comércio de negros de ontem.
Os escravos pós-modernos são submetidos à servidão por dívida. Um endividamento forjado pelos patrões e pelos “gatos.”
Gato é como é chamado, nos fundões do Brasil, o traficante de mão-de-obra.
Deve-se a Fernando Henrique Cardoso o reconhecimento formal do flagelo.
O ex-presidente criou, em 1995, o Grupo de Repressão ao Trabalho Forçado.
Foi pendurado no organograma do Ministério do Trabalho. Sob Lula, mudou de nome: Grupo Especial de Fiscalização Móvel.
Trabalha em regime de força-tarefa. Além de fiscais do trabalho, serve-se do auxílio da Polícia Federal e do Ministério Público.
Em seus 13 anos de existência, o grupo realizou 680 operações. Em oito anos de FHC, 177. Em 5 anos e meio de Lula, 503.
Foram varejadas 1.979 fazendas. Encontraram-se dois tipos de trabalhadores:
1. 28.411 traziam a carteira de trabalho devidamente registrada;
2. 30.036 trabalhavam em regime comparável ao de escravos.
Os “neo-escravos” foram postos em liberdade. Sob FHC, 5.893. Sob Lula, muito mais: 24.143.
Além da liberdade, ganharam dos patrões, na marra, o dinheiro que lhes era de direito.
As indenizações somam, até o momento, R$ 40,1 milhões. De novo, mais no período de Lula (R$ 38.606.181,73) do que na era FHC (R$ 3.515.192,56).
Só no primeiro semestre de 2008, foram libertados 2.269 trabalhadores submetidos a condições degradantes.
Nesse período, as indenizações somaram R$ 3,58 milhões.
Deu-se no ano passado o recorde histórico de liberações e de cobrança de indenizações.
Em 2007, foram resgatados 5.999 trabalhadores. Mais do que o registrado nos oito anos de tucanato.
As indenizações de 2007 alçaram à casa dos R$ 9,9 milhões. Num único ano, quase o triplo do que fora cobrado dos fazendeiros na era FHC.
Coordenador do grupo móvel de fiscalização, Marcelo Campos lista as características que levam os fiscais a tipificar a escravidão moderna.
Além do trabalho imposto por dívidas manipuladas, ele menciona: o cerceamento do direito de ir e vir, a submissão a jornadas exaustivas e a condições de trabalho degradantes.
Escrito pelo poeta pernambucano Medeiros e Albuquerque em 1890, dois anos depois da edição da Lei Áurea, o Hino da República contém dois versos curiosos:

“Nós nem cremos que escravos outrora
Tenha havido em tão nobre país...”

São versos que, apesar de soar peremptórios, ainda hoje carecem de comprovação. Num Brasil pouco nobre, convive-se, ainda hoje, com a escravidão de outrora.

[Blog do Josias de Souza às 17h35]