Estamos mudando...

Após 3 anos, CLIO Blog esta se mudando para um novo endereço:
cliohistoriablog.blogspot.com
A mudança se fez necessária para facilitar a administração dos blogs que mantemos.
Todos os posts já foram transferidos para o novo endereço, que manterá o mesmo layout.
Desculpe-nos o imprevisto. Continue sendo bem vindo!

Obama e o capitalismo corsário

Clóvis Rossi

O setor púbico salva sempre o privado, que "agradece" atacando cofres públicos e, no percurso, destruindo países

HÁ ALGO de profundamente errado na governança global e na maneira como está funcionando o capitalismo quando os cofres públicos se abrem regularmente para salvar o setor privado, mas o setor privado conspira abertamente para arrombar ainda mais os cofres públicos -e, no percurso, destruir países.
Refiro-me às ajudas públicas para evitar o colapso de empresas privadas e, por extensão, da economia, durante a crise ainda em curso.
Mas me refiro também ao recente caos aéreo na Europa. Há indícios de que os governos sairão mais cedo do que tarde em ajuda das empresas aéreas. O argumento para tanto foi dado por Giovanni Bisignani, diretor-geral da Iata (Associação Internacional de Transporte Aéreo):
"É uma situação extraordinária à que chegamos não por conduzir mal nossos negócios mas por coisas que escapam a nosso controle".
De acordo: erupção de vulcões escapam de fato ao controle das companhias aéreas. Mas o argumento deveria ser usado também no caso dos governos agora sob ataque continuado dos corsários do sistema financeiro. Antes que alguém se queixe da expressão "corsários", passo a palavra a um certo Barack Obama, em seu discurso da quinta-feira:
"Acredito no poder do livre mercado. Acredito em um setor financeiro forte que ajude as pessoas a levantar capital e conseguir empréstimos e investir suas poupanças. Mas um mercado livre jamais deveria ser uma licença para tomar o que quer que possa, de qualquer maneira que possa. Foi isso o que aconteceu com excessiva frequência nos anos que levaram a esta crise".
Não é a descrição de um "modus operandi" de piratas? Volto ao fio da meada: nem todos os governos que se endividaram geriram mal seus negócios. Foram forçados pela dimensão da crise ou das tais "coisas que escapam a nosso controle", para usar o argumento da Iata.
Mas o setor privado, em vez de ajudar a apagar o fogo, vai ao ataque, derruba a Grécia, volta a mira para Portugal agora e, amanhã, sabe-se lá para que país.
É verdade que o governo grego anterior exagerou nos gastos e ainda por cima falsificou os dados sobre o deficit. Mas é igualmente verdade que foi auxiliado na maquiagem por firmas financeiras, que, no entanto, detêm o poder de vida ou morte sobre as finanças públicas.
E foram elas que "conduziram mal os seus negócios", de que dão prova ao menos dois fatos recentes:
1 - A Goldman Sachs está sendo investigada por manobras com instrumentos opacos de investimento. George Soros, que atua às vezes como corsário, mas tem agudo senso autocrítico, comenta no "Financial Times": "Seja a Goldman culpada ou não, a transação em questão claramente não tem benefício social".
2 - Uma investigação do Senado americano mostrou que as duas principais agências de avaliação de risco, a Standard&Poor's e a Moody's, foram indevidamente influenciadas por banqueiros de investimento que pagam suas taxas. Ignoraram propositadamente sinais de fraude na indústria de empréstimos na caminhada rumo à crise.
Não obstante, são avaliadoras como essas que determinam ou influenciam no preço que o Tesouro grego tem que pagar a quem compra seus papéis. Não seria mais correto e justo que os governos é que cobrassem da indústria financeira uma taxa para tapar os rombos que elas ajudaram a criar, sem qualquer "benefício social"?

[Folha de São Paulo, 24/04/2010]

Nova lei do Arizona reacende batalha pela reforma da imigração

Randal C. Archibold, em Phoenix, Arizona (EUA)
A governadora do Arizona, Jan Brewer, sancionou em lei na sexta-feira o projeto mais duro do país sobre imigração ilegal; sua meta é identificar, processar e deportar os imigrantes ilegais.

A medida provocou protestos imediatos e reacendeu a batalha divisora em todo o país em torno da reforma da imigração.

Mesmo antes da governadora sancionar a lei em uma coletiva de imprensa ocorrida à tarde aqui, o presidente Barack Obama a criticou fortemente.

Falando em uma cerimônia de naturalização para 24 militares do serviço ativo no Jardim das Rosas da Casa Branca, ele pediu por uma reforma federal das leis de imigração, que os líderes do Congresso disseram estar preparando para tratar em breve, para evitar “a irresponsabilidade dos outros”.

A lei do Arizona, ele acrescentou, ameaça “minar as noções básicas de justiça que prezamos como americanos, assim como a confiança entre a polícia e nossas comunidades, o que é crucial para a manutenção de nossa segurança”.

A lei, que defensores e críticos dizem ser a medida de imigração mais ampla e mais rígida em gerações, tornaria o não porte de documentos de imigração em crime e daria à polícia amplo poder para deter qualquer um suspeito de estar no país ilegalmente. Os oponentes a chamam de um convite aberto ao molestamento e discriminação contra latinos, independente de seu status de cidadania.

O debate político que levou à decisão de Brewer e as críticas de Obama à lei –presidentes muito raramente discutem uma legislação estadual– ressaltam o poder do debate da imigração nos Estados ao longo da fronteira mexicana. Ele pressagia as discussões polarizadas que aguardam o presidente e o Congresso quando tratarem da questão nacionalmente.

O Ministério das Relações Exteriores do México disse em uma declaração que teme a respeito dos direitos de seus cidadãos e das relações com o Arizona. O arcebispo católico de Los Angeles chamou de nazismo o poder das autoridades de exigir documentos.

Enquanto centenas de manifestantes se reuniam, em grande parte pacificamente, na praça do Capitólio, a governadora, falando em um prédio do governo a poucos quilômetros de distância, disse que a lei “representa outra ferramenta para nosso Estado usar para resolvermos uma crise que não criamos e que o governo federal se recusa a consertar”.

A lei entrará em vigor 90 dias após o término do ano legislativo –o que significa em agosto. A lei provavelmente será contestada na Justiça.

Os latinos, em particular, que foram há não muito tempo cortejados pelo Partido Republicano como um bloco eleitoral indefinido, se mobilizaram contra a lei como sendo uma receita para discriminação étnica e racial. “A governadora Brewer cedeu à margem radical”, disse uma declaração do Fundo Mexicano-Americano de Defesa Legal e Educação, prevendo que a lei criaria “uma espiral de medo, desconfiança na comunidade, maior criminalidade e processos legais caros, com repercussões nacionais”.

Apesar de ser comum a polícia exigir documentos em metrôs, estradas e em lugares públicos em alguns países, como a França, o Arizona é o primeiro Estado a exigir que os imigrantes cumpram a exigência federal de portar documentos de identidade legitimando sua presença em solo americano.

Brewer reconheceu as preocupações dos críticos, dizendo que trabalhará para assegurar que a polícia tenha treinamento apropriado para executar a lei. Mas ela apoia os argumentos dos autores da lei, de que ela fornece uma ferramenta indispensável para a polícia em um Estado de fronteira que é um dos principais ímãs de imigração ilegal. Ela disse que a discriminação racial não será tolerada, acrescentando: “Nós temos que confiar em nossa polícia”.

A governadora e outros líderes eleitos estão sob intensa pressão política aqui, exacerbada pela morte de um fazendeiro no sul do Arizona, supostamente por um contrabandista, duas semanas antes da votação do projeto de lei pelo Legislativo estadual. Sua morte foi mencionada na quinta-feira por Brewer, enquanto ela anunciava um plano que pede ao governo federal para que posicione tropas da Guarda Nacional na fronteira.

O presidente George W. Bush tentou realizar uma reforma abrangente, mas fracassou quando seu próprio partido ficou dividido em torno do assunto. Novamente, os republicanos que estão enfrentando concorrência da direita nas primárias, incluindo Brewer e o senador John McCain, estão sob tremenda pressão para apoiar a lei do Arizona, conhecida como SB 1070.

McCain, que está enfrentando nas primárias um adversário que tem a imigração como tema de campanha, só demonstrou apoio à lei horas antes do Senado estadual aprová-la, na tarde de segunda-feira. Brewer, mesmo após a aprovação do projeto de lei pelo Senado, se manteve em silêncio sobre se o sancionaria. Apesar da expectativa de que ela o faria, dado sua disputa nas primárias, ela se recusou a declarar sua posição até mesmo em um jantar na quinta-feira, para uma organização latina de serviço social, Chicanos Por La Causa, onde vários membros presentes pediram pelo veto.

Entre outras coisas, a medida do Arizona é uma rejeição extraordinária a Janet Napolitano, que vetou repetidamente uma legislação semelhante como governadora democrata do Estado, antes de ser nomeada secretária de Segurança Interna por Obama.

A lei abre um profundo racha no Arizona, com a maioria de milhares de eleitores que telefonaram ao gabinete da governadora pedindo que ela a vetasse.

Nos dias que antecederam a decisão de Brewer, o deputado federal Raul M. Grijalva, um democrata, pediu por um boicote da convenção em seu Estado.

O projeto de lei, de autoria de Russell Pearce, um senador estadual e um agitador em questões de imigração, tem vários artigos.

Ele exige que os policiais, “quando viável”, detenham as pessoas que eles suspeitem, de forma razoável, que estejam no país ilegalmente e verifiquem seu status junto às autoridades federais, a menos que fazê-lo atrapalhe uma investigação ou um tratamento médico de emergência.

A lei também transforma em crime estadual –uma contravenção– não portar documentos de imigração. Além disso, ela permite que as pessoas processem as prefeituras ou agências caso acreditem que a lei estadual ou federal de imigração não esteja sendo cumprida.

Estados por todo o país propuseram ou aprovaram centenas de projetos de lei tratando da imigração desde 2007, a última vez em que um esforço federal para reforma da lei de imigração fracassou. No ano passado, houve um número recorde de leis aprovadas (222) e resoluções (131) em 48 Estados, segundo a Conferência Nacional dos Legislativos Estaduais.

A perspectiva de mergulho em um debate nacional de imigração está sendo cada vez mais discutida no Capitólio, promovida em parte pelas recentes declarações do senador Harry Reid, democrata de Nevada e líder da maioria, de que pretende apresentar uma legislação no plenário do Senado após o Memorial Day (dia em homenagem aos militares mortos no serviço ativo, celebrado na última segunda-feira de maio).

Mas apesar do debate da imigração poder ajudar a mobilizar os eleitores latinos e fornecer benefícios políticos para os democratas em dificuldades, que estão buscando a reeleição em novembro –como o próprio Reid– ele também poderia mobilizar os eleitores conservadores.

Também poderia desviar a atenção dos democratas de outras prioridades, como a medida de energia que a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, descreveu como sendo seu assunto principal.

Reid se recusou a dizer na quinta-feira que a lei de imigração é mais importante que a de energia. Mas ele a chamou de um imperativo: “O sistema está quebrado”, ele disse.

Pelosi e o deputado Steny H. Hoyer, democrata de Maryland e líder da maioria, disseram que a Câmara discutirá a política de imigração apenas se o Senado produzir um projeto de lei primeiro.

Tradução: George El Khouri Andolfato
[The New York Times News Service, 25/04/2010]

Quem manda na internet?

David Alandete

Quem manda na rede? As empresas de telefonia e cabo oferecem conexões pagas à internet. Os produtores de conteúdo, como Google ou Yahoo, contribuem com a informação, financiando-se com a venda de publicidade. Os usuários pagam pelo acesso à rede e com suas visitas geram tráfego, aumentando as receitas publicitárias. Nessa cadeia de serviços, quem administra o tráfego online? Quem tem o direito de dar mais ou menos velocidade às conexões? De quem é a internet?

Por enquanto, os que podem administrar fisicamente a rede são os provedores de internet. Na Espanha, são empresas como a Telefónica, que oferecem conexões e cobram por elas. Com a generalização da rede, esses provedores denunciam que lhes é negada uma oportunidade de negócio: os usuários usam a internet como desejam, os provedores de conteúdo enriquecem às suas custas, e apesar disso suas receitas se mantêm fixas.

Esse incômodo foi manifestado pelo presidente da Telefónica, César Alierta, em fevereiro passado. "É evidente que as máquinas de busca na internet utilizam nossa rede sem pagar nada, o que é uma sorte para eles e uma infelicidade para nós. Mas também é evidente que isto não pode continuar. As redes são implantadas por nós; os sistemas são feitos por nós; o serviço pós-venda é feito por nós. Isto vai mudar, estou convencido", ele disse.

O governo da França lançou uma pesquisa popular para saber a opinião dos cidadãos a respeito, e Bruxelas espera debater um modelo para a Europa antes do verão.

Alierta representa os interesses dos provedores de conexão, que não só pedem que se cobre das empresas de conteúdo, como também reclamam a capacidade de administrar suas redes, mesmo que isso represente certa discriminação contra alguns usuários. Já existe um pronunciamento judicial sobre o assunto nos EUA. Em 6 de abril um tribunal decidiu que o governo não tem o direito de obrigar as empresas de telefonia e cabo a serem neutras no tratamento dado a seus clientes. Isto é, um provedor (como a Telefónica ou, nos EUA, a Comcast) tem o direito de discriminar um usuário que utilize programas que ocupem muita largura de banda.

A Comcast, maior operadora de cabo dos EUA, começou em 2007 a desacelerar o tráfego de usuários que executam frequentemente programas de troca de arquivos P2P. Um deles, Raam Dev, de 28 anos, fez um teste com sua conexão. Era cliente da Comcast havia quatro anos. Começou a utilizar o programa de troca de arquivos BitTorrent e notou uma grande lentidão. Decidiu usar um programa para medir a velocidade dos downloads. Passaram 18.878 para 4.500 Kbps (kilobits por segundo), depois de baixar um arquivo legal através de um torrent (um programa de acesso a páginas de download).

"Repeti a experiência meia dúzia de vezes", ele explica. "Em cada ocasião minha conexão desacelerou de forma considerável, depois de passar 4 ou 5 minutos descarregando um torrent, e depois voltava à normalidade depois de 20 ou 25 minutos". Há anos ele deixou de ser cliente da Comcast, mas continua indignado por essa política. "É como se a companhia telefônica distorcesse as ligações quando seus clientes falam de assuntos de que a firma não gosta. É absurdo."

É a mesma opinião da agência do governo americano que regulamenta as comunicações, a Federal Communications Commission (FCC), que em 2008 advertiu verbalmente a Comcast por desacelerar conforme o tipo de tráfego. O então presidente da comissão, Kevin Martin, disse: "Alguém gostaria que o serviço de correio abrisse sua correspondência e decidisse que não quer ter o incômodo de entregá-la, devolvendo-a ao remetente com a desculpa de que não encontrou o destinatário?"

A Comcast se justificou dizendo que essas medidas correspondiam a uma mera "gestão da rede". "A grande maioria dos 9 bilhões de protocolos de controle de transmissão de redes P2P que ocorrem na rede da Comcast não são afetados por essa medida", explicou Sena Fitzmaurice, porta-voz da firma. "Só entre 6% e 7% de nossos clientes utilizam P2P semanalmente."

Ao longo dos anos, criaram-se dois campos na batalha pela neutralidade na internet. De um lado, as empresas provedoras de conteúdo online como Google, Amazon ou Skype, apoiadas pelo governo Obama. Por outro, a Comcast e outros grandes provedores, como Verizon ou AT&T, que consideram que a infraestrutura é sua e podem fazer o que quiserem.

Até os pais fundadores da internet se manifestaram, enviando em outubro uma carta aberta à FCC. "Acreditamos que as propostas de neutralidade na rede de não discriminação e transparência são componentes imprescindíveis de uma agenda de políticas públicas centrada na inovação de que este país precisa", disseram, entre outros, o vice-presidente da Google, Vint Cerf.

Durante meses a batalha parecia favorecer um lado. A neutralidade na rede se impunha. A tal ponto que em 22 de outubro passado a FCC apresentou seus princípios para conseguir a neutralidade total na internet. Entre suas propostas mais inovadoras, destacam-se três: que os provedores de internet não possam impedir que os usuários compartilhem informação legal na rede; que respeitem a livre concorrência entre provedores de conteúdo, sem favorecer uns ou outros, e que informem ao governo e a seus clientes como administram suas redes.

Obama disse, dias depois, que não poderia estar mais de acordo. "Esse é o papel do governo: investir para incentivar a inovação e impor normas de senso comum que assegurem que existe um campo de jogo nivelado."

A ascensão da neutralidade parecia inevitável, até que no último dia 6 um juiz de Washington sentenciou que o governo não tem o direito de ditar aos provedores de banda larga como devem administrar suas redes, e que a FCC havia se excedido em sua competência. Há um motivo principal para isso: segundo a lei de telecomunicações de 1996, a internet é um serviço de informação, e não de telecomunicações. A FCC só pode regulamentar serviços de telecomunicações (telefonia, emissão de rádio, satélite, cabo coaxial).

As firmas telefônicas e de cabo se felicitaram por essa vitória jurídica. Nem o governo nem a FCC reagiram ainda. Os líderes democratas no Congresso, sim. E anunciaram que tentarão reclassificar a internet e colocá-la na categoria da telefonia. Entre eles, o senador John F. Kerry, de Massachusetts: "A FCC deve ter autoridade legal sobre isso, e uma mudança semelhante seria coerente com a história das telecomunicações nos EUA".

"Pelo contrário", opina o pesquisador associado da faculdade de direito da Universidade de Stanford Larry Downes. "Se o governo ganhar a capacidade de regulamentar a internet, poderá impor tarifas e preços, lastreando o mercado. Esse tipo de regulamentação se aplicava no século passado, quando havia um monopólio legal na telefonia, algo que sucedeu até 1984. Além disso, implica que os governos estatais e locais também podem cobrar impostos e tarifas, fazendo que os serviços encareçam."

"Se uma coisa está funcionando, por que modificá-la?", explica Downes. "Apesar desses casos isolados, a internet funciona de forma imparcial. De nossas conexões, podemos ter acesso a qualquer site do mundo, desde que não haja censura. É anacrônico que o governo federal queira erigir-se como um policial da rede, tentando solucionar um problema antes que ele exista."

Por motivos comerciais, os provedores têm a mesma opinião. Em fevereiro, duas das grandes operadoras, AT&T e Verizon, redigiram uma carta aberta na qual diziam que reclassificar os serviços de internet seria uma medida "extremista". "Essa drástica mudança na normativa seria insustentável legalmente e no mínimo afundaria a indústria em anos de litígios e caos regulatório". Foi um aviso.

O caso da Comcast, no entanto, é isolado. Esse tipo de desaceleração ou bloqueio das conexões só ocorreu com outra empresa, a Madison River Communications, em 2005. "O risco de que uma companhia desacelere o tráfego de seus usuários está sendo exagerado", opina Robert Litan, economista e advogado do Instituto Brookings, em Washington. "O mercado de internet nos EUA é muito competitivo. As empresas oferecem serviços cada vez melhores por preços cada vez mais módicos. Só pela má publicidade que isso representa, é pouco provável que a Comcast volte a adotar uma medida semelhante."

Então, esse é um debate meramente teórico? É algo que só vai definir como os cidadãos navegam pela rede? Os provedores de conexão e muitos analistas opinam que não, e apontam para um setor específico que abriu o debate e se beneficiará de uma normativa como a proposta por Obama: as firmas que oferecem conteúdo, como Google, Microsoft, Yahoo ou Amazon. Pode ser que esse apoio angélico à neutralidade, à liberdade, à transparência na internet esconda interesses comerciais, dizem.

"As empresas que criam aplicativos, como Google, Amazon ou Ebay, são as grandes beneficiárias da neutralidade", explica Downes, de Stanford. "Com essas iniciativas, se garantem de forma preventiva que ganharão dos provedores de conexão. Na realidade, funcionam como um hobby: forçam um tipo de legislação para se beneficiar dela. Mas a verdade é que o controle governamental da rede só prejudicaria a competitividade no mercado. Que interesse terão as empresas de cabo e telefonia em melhorar as infraestruturas se não puderem obter um benefício adicional por isso?" Isto é, se Google e outras pagarem para usar a rede, a Comcast e a Telefónica terão mais incentivos para melhorar suas infraestruturas, beneficiando finalmente o usuário.

As organizações de cidadãos que defendem a imposição da neutralidade o fazem citando outras possíveis consequências. "Entendemos que as empresas querem fazer dinheiro", explica Liz Rose, porta-voz da Free Press, que processou a Comcast em 2007 pelo caso que agora foi decidido em Washington. "O que queremos é que os consumidores tenham direitos. Nenhuma empresa telefônica ou de cabo deveria censurar o que os internautas comunicam a seus amigos. Segundo estão as coisas hoje, podem fazê-lo. A Comcast não deveria poder censurar crenças políticas na rede, e o é. Não deveria poder espionar as comunicações de seus usuários e vender a informação para empresas publicitárias."

A menção à publicidade não é casual. E pode ser que eventualmente o debate da neutralidade na rede se concentre nas receitas de publicidade. A Comcast está em uma posição comprometida. Em dezembro, a General Electric anunciou sua intenção de lhe vender parte do conglomerado multimídia NBC. Isso significa que a maior operadora de cabo dos EUA também terá uma grande plataforma de conteúdos, que inclui redes de televisão como NBC, Bravo ou SyFy.

Com isto, se a Comcast decidir priorizar um tráfego em suas redes sobre outro, e se tiver o direito de fazê-lo, quem a impedirá de fazer que o conteúdo de seus canais e seus sites seja carregado mais rapidamente que os da concorrência, assim obtendo mais receitas de publicidade?

Nesse delicado equilíbrio que é a arquitetura comercial da rede, o conceito de neutralidade é tão complexo quanto mutável. Diz servir ao cidadão, mas não é um assunto exclusivamente de liberdades civis. Baseia-se em interesses econômicos subjacentes. Em meio à polêmica, os EUA poderão se tornar um exemplo de intervenção governamental, coisa que não ocorre com muita frequência.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
[El Pais, 25/04/2010]

Bagdá quer voltar a ser a capital cultural do mundo árabe

Ulrike Putz, em Bagdá (Iraque)

Durante décadas Bagdá foi a capital cultural do mundo árabe. A guerra mudou tudo isso e só agora a cena artística iraquiana está lentamente voltando a florescer. Enquanto os artistas lutam com as consequências do conflito e com a falta de patrocinadores, dizem que o estado da arte está intimamente ligado ao estado de seu país.

Sentado em seu jardim, Qasim Sabti fala veementemente sobre os terroristas “filhos da puta”, que repetidas vezes ameaçaram atacar sua galeria de arte no centro de Bagdá. Ele também reclama dos “pequenos homens cinza” no Ministério da Cultura, que colocam o pouco dinheiro que restou para as artes no Iraque diretamente em seus bolsos. Mas, sobretudo, ele reclama da “invasão das pessoas sem cultura”, que segundo Sabti é a pior tragédia do Iraque. “Primeiro, os americanos ocuparam nosso país. E a multidão veio logo atrás deles. Qualquer um que soubesse andar saiu do interior e veio para Bagdá. Essas pessoas destruíram tudo o que fazia de Bagdá a capital cultural do mundo árabe.”

Pode-se considerar o discurso de Sabti como nonsense e elitista: a maioria do povo iraquiano têm preocupações mais prementes do que o declínio da arte no país. A guerra, o terrorismo, a pobreza e o desemprego levaram milhões de pessoas para as cidades iraquianas onde elas esperam encontrar empregos e um pouco de segurança. Elas não estão muito preocupadas se sua presença nas cidades perturba os árbitros da cultura como Sabti.

Mas tampouco, Sabti não é qualquer um. O pintor e dono de galeria com excelentes conexões com o Ocidente, é uma espécie de autoridade não oficial para os artistas visuais do Iraque. Durante a tarde, ele se encontra com escultores, pintores, dramaturgos e poetas de Bagdá no jardim de sua galeria, a Hewar. Tomando chá e fumando um narguilé, eles falam sobre seus colegas e colecionadores que foram para o exílio, e sobre os problemas de dinheiro que afetam a maioria dos que permaneceram no Iraque.

Quer ver arte em Bagdá? Primeiro seu carro passará por uma vistoria antibombas
O exército iraquiano se certifica de que esses homens sejam capazes de se reunir em segurança. Como em muitos bairros da capital iraquiana, o bairro em que a galeria de Sabti está localizada é quase que hermeticamente fechado. Quem quiser ver arte em Bagdá precisa passar por vários postos de checagem e ter o carro vistoriado em busca de explosivos por soldados armados. No quintal de Sabti só dá para dizer que há uma guerra acontecendo por causa do barulho dos helicópteros militares norte-americanos voando acima e interrompendo as conversas por alguns segundos.

E sem compradores, não há comissões. Ser pago por seu trabalho sempre foi um problema para os artistas de todo o mundo. Mas para os artistas iraquianos, o conceito é relativamente recente – e é motivo de reclamações. Durante todo o século 20, o Iraque era visto como o centro cultural do mundo árabe. Durante o governo de Saddam Hussein, Bagdá era a Meca da criatividade árabe. O ditador gostava de ver a si mesmo homenageado em esculturas e pinturas e encorajava os artistas que tinham talento. Os cursos de arte eram gratuitos; até as telas e tintas importadas da França eram gratuitas. Se você fosse leal ao regime, tinha um meio de vida e recebia comissões regulares do governo ou um cargo de professor. Além disso, a rica classe média de Bagdá sentia que era chique colecionar a arte iraquiana.

Invasores internacionais se tornaram fãs de arte
Com a invasão das tropas norte-americanas em 2003, a cena de arte em Bagdá entrou em colapso. Os colecionadores fugiram do país e os pintores e escultores que tinham dinheiro para isso também fugiram. Entretanto, durante os primeiros anos da guerra, Sabti diz que muitos artistas locais ainda conseguiam sobreviver da arte. “Primeiro, os funcionários da ONU, jornalistas, e até soldados norte-americanos vinham à minha galeria para comprar arte”, explica. Com preços que variavam de US$ 800 a US$ 2.000 (entre R$ 1.400 e R$ 3.500) por uma pintura a óleo, muitos dos invasores encontraram um lugar em seus corações para a arte iraquiana.

Mas então veio o terrorismo e com ele uma queda nas vendas. “Em 2005, os estrangeiros não conseguiam mais se mover livremente. E desde então os negócios praticamente pararam”, diz Sabti. Culpar o povo iraquiano por isso, como faz Sabti, não é exatamente lógico. Mas a triste verdade permanece: a cultura de elite do Iraque diminuiu nos últimos anos.

“Bagdá pode se tornar uma cidade sem rosto”, diz o escultor e escritor Ahmed Abdullah Fadaam. As estátuas públicas e esculturas são sinais do caráter de uma nação, observa o artista. “Em Bagdá, os antigos trabalhos de arte estão sendo destruídos porque foram encomendados por Saddam. Mas, ao mesmo tempo, nada novo está sendo encomendado. O Iraque tornar-se-á uma sociedade sem face”, alerta ele.

Esculturas famosas retiradas por causa de mamilos à mostra
Com a ajuda de alguns colegas, Fadaam está tentando salvar o que pode. Durante anos a estátua do conhecido escultura Khalid Al-Rahal, chamada Virgem dos Banhados, ornamentou a praça central da Cidade Sadr, um subúrbio pobre de Bagdá. De acordo com Fadaam, quando os islamitas tomaram o poder, eles retiraram a figura feminina “porque seus mamilos podiam ser vistos vagamente”. Ele e outras pessoas que pensavam como ele tiveram dificuldades de convencer outros iraquianos a não derreter a escultura de bronze porque ela havia sido feita por um dos mais importantes artistas iraquianos do século 20. “Agora ela está juntando poeira no porão do Ministério da Cultura”, diz Fadaam.

Fadaam é um homem sensível e atento. Suas reflexões sobre a vida no Iraque, que foram encomendadas pela Universidade da Carolina do Norte, receberam vários prêmios internacionais. Atualmente, ele está transformando seus relatos, que foram originalmente concebidos como transmissões de rádio, num diário ilustrado para uma editora de quadrinhos.

A escultura oferece a Fadaam uma forma de mostrar tudo o que ele não quer expressar em sua escultura. “Logo que a guerra começou, parei de esculpir”, disse ele – porque não queria que ninguém tivesse de olhar para o terror da guerra numa peça de arte tamanho real. “Que bem faz eu traduzir meu horror, meu medo, em esculturas? Eu só levaria o observador ao mesmo tipo de desespero em que eu estava.”

A vida diária é tão deprimente que a criatividade é quase impossível
Fadaam diz que a arte contemporânea do Iraque é como o próprio povo do Iraque: uma vítima da guerra. A vida diária é tão deprimente que o trabalho criativo é quase impossível. “E aqueles que ainda conseguem pintar não conseguem vender nada, de qualquer forma. Quem quer pendurar um quadro de um corpo decapitado na sua sala de jantar?”, diz Fadaam.

Os pintores não podem senão recriar a realidade brutal, e os escultores preferem não trabalhar a espelhar o horror da guerra: Fadaam fala pelos melhores da comunidade artística iraquiana, ele fala por aqueles que têm necessidade de criar, pelos que são motivados. Entretanto, muitos dos artistas iraquianos pertencem a outra espécie: profissionais tecnicamente competentes mas sem inspiração, que foram educados nas artes durante a ditadura de Saddam. Seu trabalho, chamdo de Arte Jubileu, tampouco é requisitado. Esta é outra razão pela qual a cena artística do Iraque nunca voltará à sua condição anterior à guerra. “Mas essa redução é saudável”, explica Fadaam. “É amarga, mas também necessária.”

Fadaam tem grandes esperanças para a nova geração de iraquianos, os que estão hoje nas escolas de arte. “Há alguns talentos genuínos estudando”, diz ele. Em alguns anos iniciantes respirarão uma vida nova na cena artística iraquiana, transformando Bagdá novamente numa metrópole cultural. Faddam acredita que o estado da arte está intimamente ligado com o próprio futuro do país. “Se a situação melhorar, se os jovens forem capazes de expressar amor e felicidade em seus trabalhos, então não só a arte iraquiana terá um futuro, mas o próprio Iraque também o terá”, conclui.

Tradução: Eloise De Vylder
[Der Spiegel, 25/04/2010]

Brasília, 50 anos: um sonho no centro do Brasil

A “interiorização” da capital federal é um projeto do século XIX que o presidente Juscelino Kubitschek executou a partir de idéias que remetem ao período da Independência do nosso país
Da revista História Viva. Clique aqui para ler...

O curioso caso de James Cameron

Li e ri bastante a entrevista do diretor James Cameron às páginas amarelas da "Veja". Escrevi "diretor", mas estou a ser generoso. Cameron, de fato, dirigiu alguns filmes interessantes no século passado: os estimáveis "Aliens" ou mesmo "O Exterminador do Futuro". Bons tempos. Hoje, Cameron é o guru de uma igreja ambientalista que faz cinema para efeitos de propaganda. Um Michael Moore verde, em suma.
Cameron esteve no Brasil para participar no Fórum Internacional de Sustentabilidade, em Manaus. Diz a revista que sobrevoou a Floresta Amazônica, previsivelmente com reverência panteísta. E até pediu ao presidente Lula para não construir uma usina hidrelétrica no Xingu

Eu nunca sobrevoei a Amazônia. Eu nunca estive no Xingu. Eu não sei se o Brasil precisa de uma usina hidrelétrica. Mas sei que James Cameron precisa de tratamento urgente. Com uma pose ridícula de iluminado espiritual, Cameron começa por lamentar a alienação dos homens modernos, cada vez mais afastados da natureza e do contato com os outros seres humanos.

James Cameron tem da natureza a mesma idealização romântica que os românticos do século 19. Como se a natureza fosse lugar protetor da nossa existência terrena: uma fonte de bondade que revitaliza os nossos espíritos tresmalhados. Valerá a pena desmontar essa falácia? Valerá a pena dizer que a natureza é uma força indiferente e brutal, sem qualquer dimensão ética?

Cameron discorda. Não sei se os milhares de passageiros retidos nos aeroportos da Europa por causa da natureza "benigna" de um vulcão concordam com Cameron. Duvido.

E também duvido da dimensão humanista de Cameron. O "diretor" lamenta que os homens estejam afastados uns dos outros. E culpa a tecnologia, a internet, as "redes sociais" por oferecerem simulacros de realidade.

Em teoria, sou capaz de concordar com Cameron. É por isso que uso a internet esparsamente e não frequento "redes sociais". Mas levar a sério uma condenação da tecnologia feita pelo mais adolescente entusiasta dela é como ouvir um discurso feminista pela boca de Osama Bin Laden. Um paradoxo.
Aliás, tudo em Cameron é paradoxal. A começar pela justificação da sua derrota no Oscar desse ano. Para Cameron, "Avatar" é tão visualmente deslumbrante que os membros da Academia não deram grande crédito à história. Infelizmente, a "Veja" não formulou a questão fundamental: "Mas que história, Padre Cameron?"

"Avatar", em termos narrativos, não se distingue dos clichês habituais sobre a ganância do "homem branco" e a grandeza moral de qualquer tribo indígena que desconheça o papel higiênico. Até o momento em que o "homem branco" se converte ao nativismo, usando folhas de árvore para o serviço e olhando com repugnância para a sua própria cultura "imperialista" e ocidental.

Não sei quantas vezes assisti a esse sermão. Mas sei que o sabor do refogado não se altera com temperos tecnológicos. "Avatar" é um exercício moralista e pedestre construído por um milionário californiano que jamais abandonaria os confortos da civilização "branca" e "imperialista" para se entregar à pureza das florestas.

João Pereira Coutinho, 33 anos, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.