Obama e o capitalismo corsário

Clóvis Rossi

O setor púbico salva sempre o privado, que "agradece" atacando cofres públicos e, no percurso, destruindo países

HÁ ALGO de profundamente errado na governança global e na maneira como está funcionando o capitalismo quando os cofres públicos se abrem regularmente para salvar o setor privado, mas o setor privado conspira abertamente para arrombar ainda mais os cofres públicos -e, no percurso, destruir países.
Refiro-me às ajudas públicas para evitar o colapso de empresas privadas e, por extensão, da economia, durante a crise ainda em curso.
Mas me refiro também ao recente caos aéreo na Europa. Há indícios de que os governos sairão mais cedo do que tarde em ajuda das empresas aéreas. O argumento para tanto foi dado por Giovanni Bisignani, diretor-geral da Iata (Associação Internacional de Transporte Aéreo):
"É uma situação extraordinária à que chegamos não por conduzir mal nossos negócios mas por coisas que escapam a nosso controle".
De acordo: erupção de vulcões escapam de fato ao controle das companhias aéreas. Mas o argumento deveria ser usado também no caso dos governos agora sob ataque continuado dos corsários do sistema financeiro. Antes que alguém se queixe da expressão "corsários", passo a palavra a um certo Barack Obama, em seu discurso da quinta-feira:
"Acredito no poder do livre mercado. Acredito em um setor financeiro forte que ajude as pessoas a levantar capital e conseguir empréstimos e investir suas poupanças. Mas um mercado livre jamais deveria ser uma licença para tomar o que quer que possa, de qualquer maneira que possa. Foi isso o que aconteceu com excessiva frequência nos anos que levaram a esta crise".
Não é a descrição de um "modus operandi" de piratas? Volto ao fio da meada: nem todos os governos que se endividaram geriram mal seus negócios. Foram forçados pela dimensão da crise ou das tais "coisas que escapam a nosso controle", para usar o argumento da Iata.
Mas o setor privado, em vez de ajudar a apagar o fogo, vai ao ataque, derruba a Grécia, volta a mira para Portugal agora e, amanhã, sabe-se lá para que país.
É verdade que o governo grego anterior exagerou nos gastos e ainda por cima falsificou os dados sobre o deficit. Mas é igualmente verdade que foi auxiliado na maquiagem por firmas financeiras, que, no entanto, detêm o poder de vida ou morte sobre as finanças públicas.
E foram elas que "conduziram mal os seus negócios", de que dão prova ao menos dois fatos recentes:
1 - A Goldman Sachs está sendo investigada por manobras com instrumentos opacos de investimento. George Soros, que atua às vezes como corsário, mas tem agudo senso autocrítico, comenta no "Financial Times": "Seja a Goldman culpada ou não, a transação em questão claramente não tem benefício social".
2 - Uma investigação do Senado americano mostrou que as duas principais agências de avaliação de risco, a Standard&Poor's e a Moody's, foram indevidamente influenciadas por banqueiros de investimento que pagam suas taxas. Ignoraram propositadamente sinais de fraude na indústria de empréstimos na caminhada rumo à crise.
Não obstante, são avaliadoras como essas que determinam ou influenciam no preço que o Tesouro grego tem que pagar a quem compra seus papéis. Não seria mais correto e justo que os governos é que cobrassem da indústria financeira uma taxa para tapar os rombos que elas ajudaram a criar, sem qualquer "benefício social"?

[Folha de São Paulo, 24/04/2010]
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