Shakespeare foi Shakespeare

Patricia Tubella, em Londres

O especialista James Shapiro desmonta as teorias que negam sua existência

Shakespeare escreveu as obras de Shakespeare? A verdadeira identidade do maior dramaturgo de todos os tempos, que legou obras repletas de símbolos universais como a paixão, a ambiguidade, a sátira ou o instinto político, continua dividindo os círculos culturais quase 400 anos depois da morte do bardo de Stratford-upon-Avon (1564-1616). Foi um impostor, uma fraude, a assinatura encobridora de um personagem mais ilustre? As teorias conspiratórias nunca deixaram de estar em voga, mas na era da internet dispõem inclusive de uma melhor tribuna.

Representantes da nata teatral britânica, como Derek Jacobi ou Vanessa Redgrave, aderiram a essa corrente de ceticismo. O diretor Mark Rylance afirma sem recato que a criação de Hamlet, Otelo ou Macbeth foi produto de uma "cabala literária", da qual fazia parte sir Francis Bacon. Antes deles, outras figuras de renome como Mark Twain, Henry James ou Sigmund Freud demonstraram preconceitos culturais semelhantes, apoiando-se em um certo esnobismo e em algumas pistas mais que precárias, na opinião do escritor americano James Shapiro, que desmontou todas essas teorias em seu livro "Contested Will: Who Wrote Shakespeare?" [Testamento contestado: quem escreveu Shakespeare?].

Como pôde o filho de um simples comerciante de lã, açougueiro e meeiro, um homem de estudos limitados que escrevia para pagar suas dívidas e que nunca viajou, entender o mundo de reis e cortesãos, tratar de assuntos de Estado, filosofia, leis, música ou a arte da falcoaria? Shapiro, professor da Universidade Columbia e especialista na obra do autor inglês (a quem já dedicou o livro "Um Ano na Vida de William Shakespeare: 1599"), propõe um percurso histórico por algumas das teorias negacionistas de maior repercussão para salientar, antes de tudo, seu anacronismo: as suspeitas sobre a pluma de Shakespeare só surgem 200 anos depois de sua morte. Ninguém antes encarou a leitura de suas obras levando em conta a biografia do criador.

Denso em histórias e argumentos, ao mesmo tempo que ameno, "Contested Will: Who Wrote Shakespeare?" relata como as teorias alternativas nascem no início do século 19, quando se fortalece a suposição de que os trabalhos artísticos são reflexo das chaves pessoais do autor e devem ser interpretados como uma autobiografia, inclusive espiritual, segundo os românticos.

A americana Delia Bacon, filha de um pregador visionário, afirmou em um estudo publicado em 1857 que Shakespeare era "um iletrado e ator de quarta categoria, simples demais" para ter concebido uma obra que manifesta "os últimos refinamentos da mais alta educação parisiense". Escolheu como alternativa o poeta, filósofo e cientista Francis Bacon (do qual não era parente), com o argumento de que seu ódio secreto ao despotismo monárquico o obrigava a recorrer a um pseudônimo.

Influenciada pelas ideias de Mark Twain - que também afirmava que Elisabeth 1ª era na verdade um homem -, Delia Bacon não trouxe mais que elucubrações para o debate, embora, ao morrer em um hospital psiquiátrico, uma nova geração tenha tomado seu lugar com uma vasta produção de artigos. Em 1920, o professor T. J. Looney atribuiu em um livro a autoria das obras a Edward de Vere, conde de Oxford, baseando-se em seus conhecimentos de falcoaria, na coincidência de que tinha três filhas - como o rei Lear - e outras generalidades. Looney passa por alto que o conde morreu em 1604, antes de ter sido escrito o grosso da obra shakespeariana. Isso não foi obstáculo para que Sigmund Freud abraçasse a teoria como alimento de suas próprias obsessões: relacionou o complexo de Édipo de Hamlet com o de Edward de Vere, impotente diante do casamento de sua mãe com outro homem depois de enviuvar.

Outra tese afirma que o dramaturgo e poeta inglês Christopher Marlowe - assassinado em 1593 - fingiu sua morte para continuar escrevendo sob o nome de William Shakespeare, de quem era contemporâneo. Essa teoria denota, segundo Shapiro, a resistência entre um vasto setor do mundo acadêmico a aceitar que William Shakespeare escreveu várias de suas obras em coautoria. Porque Marlowe foi um desses colaboradores, em uma prática habitual nos tempos do teatro elisabetano. Inclusive hoje, acrescenta Shapiro, os estudiosos estão muito longe de entender como o bardo e seus coautores dividiam tramas e personagens, revisavam seus respectivos trabalhos ou unificavam estilos.

A verdade é que apenas um punhado de documentos confirma a trajetória privada do escritor que deixou tal marca na literatura universal. Nem sequer existe absoluta certeza sobre seus verdadeiros traços físico, objeto de perene controvérsia entre historiadores e especialistas do mundo da arte. Mas o veredicto de Shapiro é uma defesa a toda regra do homem de Stratford. Seu retrato o apresenta como um homem de teatro, que lia, observava, escutava e colocava tudo em obras que refletem o gênio da imaginação. Sim, conclui Shapiro, Shakespeare escreveu Shakespeare.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
[El Pais, 10/04/2010]
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