Guerra Civil Espanhola, 70 anos

Leia mais sobre o episódio clicando aqui...
Veja uma análise da obra Guernica, de Picasso:
clique aqui.

Ensino religioso em escolas públicas pode gerar discriminação, avalia professor

Da Agência Brasil
O ensino religioso que aborda uma doutrina específica pode gerar discriminação dentro das salas de aula, segundo o sociólogo da Unesp (Universidade Estadual Paulista), José Vaidergorn. "O ensino religioso identificado com uma religião não é democrático, pode ser considerado discriminatório", disse em entrevista à Agência Brasil.

Segundo Vaidegorn, o ensino voltado para uma determinada religião pode constranger os alunos que não compartilham dessas ideias. O professor ressalta ainda a possibilidade de que, dependendo da maneira que forem ministradas, as aulas de religião podem incentivar a intolerância entre os estudantes. "Em vez da educação fazer o seu papel formador, o seu papel de suprir, dentro das suas condições, as necessidades de formação da população ela passa a ser também um campo de disputa política e doutrinária."

As aulas de religião estão previstas na Constituição de 1988. No entanto, um acordo entre o governo brasileiro e o Vaticano, em tramitação no Congresso Nacional, estabelece o ensino católico e de outras doutrinas.

O presidente da CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação), Roberto Leão, contesta a justificativa apresentada na lei de que o ensino religioso é necessário para a formação do cidadão. "Não podemos considerar que a questão ética, a questão moral, o valores sejam privilégios das religiões", ressaltou. A presença do elemento religioso não faz sentido na educação pública e voltada para todos os cidadãos brasileiros, segundo ele. " A escola é pública, e a questão da fé é uma coisa íntima de cada um de nós".

Ele indicou a impossibilidade de todos os tipos de crença estarem representados no sistema de ensino religioso. Segundo ele, religiões minoritárias, como os cultos de origem afro, não teriam estrutura para estarem presentes em todos os pontos do país.

Além disso, as pessoas que não têm religião estariam completamente excluídas desse tipo de ensino, como destacou o presidente da Atea (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos), Daniel Sottomaior. "Mesmo que você conseguisse dar um ensino religioso equilibradamente entre todos os credos você ia deixar em desvantagem os arreligiosos e os ateus."

Sottomaior vê com preocupação a possibilidade de a fé se confundir com os conhecimentos transmitidos pelo sistema educacional."Como o aluno pode distinguir entre a confiabilidade dos conteúdos das aulas de geografia e matemática e o conteúdo das aulas de religião?"

Para o presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), dom Geraldo Lyrio Rocha, a religião é parte importante no processo educacional. "Uma educação integral envolve também o aspecto da dimensão religiosa ao lado das outras dimensões da vida humana", afirmou.

Daniel Mello, UOL Educação

A biblioteca Google, uma utopia que suscita inquietações

Alain Beuve-MéryRichard Ovenden é diretor das coleções raras da Biblioteca Bodleiana, a mais antiga e mais prestigiosa das 34 bibliotecas incorporadas à Universidade de Oxford. Fundada por Thomas Bodley em 1602, a "Bod", como os estudantes familiarmente a chamam, é a pérola das bibliotecas inglesas. Ela guarda especialmente manuscritos iluministas que remontam ao século 15.
Contra todas as expectativas, Richard Ovendan foi o responsável por uma aposta audaz: ele seguiu todas as etapas do acordo assinado com o motor de busca Google em dezembro de 2004. Graças a essa aliança, foram digitalizadas 400 mil obras (das onze milhões que estão guardadas em Oxford) em um tempo recorde.
Entretanto, está fora de questão que o Google escaneie o acervo mais antigo e frágil da biblioteca. O acordo se refere exclusivamente aos volumes do século 19. Obras de ficção, mas também livros científicos em inglês, francês, latim, etc. Assim, desde abril deste ano, está disponível online a primeira edição de "A Origem das Espécies" de Charles Darwin.
Hoje, o programa de digitalização do acervo da biblioteca já foi concluído. O Google já retirou o equipamento que havia instalado em um dos edifícios da universidade, para instalá-lo novamente em outro lugar e continuar com a realização de seu projeto de biblioteca digital universal.
Para a empresa de Montain View, Califórnia, tudo começou em 2004 com a decisão de digitalizar em seis anos 15 milhões de livros guardados nas grandes bibliotecas dos Estados Unidos e Europa. Menos conhecido que o Google Maps, que oferece consulta gratuita a mapas e fotos da Terra, e que o YouTube (comprado pelo Google em 2006), que difunde vídeos do mundo inteiro pela internet, o objetivo do programa "busca de livros"é fazer com que o maior número de obras se torne acessível ao maior número de pessoas.
O Google não se dirigiu somente às bibliotecas. Ele também oferece a digitalização gratuita de obras para as editoras que desejam incorporar seus títulos à base de dados, a fim de que sejam consultadas pela internet. Até hoje, 25 mil editoras assinaram acordos, especialmente editoras pequenas e especializadas, pois as grandes editoras preferem se manter à margem disso por enquanto.
"Aceitei porque considerei que nosso catálogo não estava bem representado nas bibliotecas públicas", explica Michel Valensi, fundador das edições de l'Eclat, primeiro editor francês que se aliou ao Google, e que foi seguido depois pelas editoras Vrin, L'Harmattan, Le Petit Futé e Champ Vallon.
Consultar livros do mundo inteiro com apenas um clique é o sonho louco e generoso que propõe o programa concebido pela empresa norte-americana. A imagem mais simples que vem à mente é a de uma enorme reserva para a qual basta escrever um título para consultar.
Entretanto, até agora, esta biblioteca universal parece um cano gotejante. Para mostrar, basta um botão: se buscarmos agora as obras de Victor Hugo encontramos uma versão francesa de "Nossa Senhora de Paris", editada por Charpentier em 1857. Mas se buscarmos "Os Miseráveis", as únicas versões que se encontram estão em inglês.
Além disso, desde que foi lançado em 2004, o programa "busca de livros", que agrupa 29 bibliotecas, sete delas na Europa, também suscitou inúmeras reservas de ambos os lados do Atlântico. De fato, para lançá-lo de forma rápida e eficaz, o Google não vacilou em digitalizar o acervo das bibliotecas norte-americanas sem parar para verificar se os livros estavam isentos de direitos autorais. Por outro lado, os acordos concluídos na Europa se referem apenas a obras que já são de domínio público.
Hoje em dia, o Google tem uma carteira digital de dez milhões de obras, das quais a metade está em inglês. Desse total, 1,5 milhão de obras pertencem ao domínio público e podem ser consultadas gratuitamente desde que se tenha acesso à internet; 1,8 milhão correspondem aos acordos estabelecidos com os editores. No que se refere aos 6,7 milhões de títulos restantes, estes se encontram em uma área cinzenta. Na maioria dos casos trata-se de obras esgotadas, mas que ainda estão cobertas por direitos autorais, e por isso os internautas só podem ler breves trechos.
"Graças à internet podemos dar uma segunda vida a milhões de obras que, de outro modo, estariam perdidas sem remédio", explica entusiasmado Santiago de La Rosa, responsável pelo programa "busca de livros" para a Europa, África e Oriente Médio.
Pura generosidade? Na realidade não. Para além das nobres intenções mostradas pela empresa norte-americana, vislumbra-se um objetivo comercial cada vez com mais clareza. De biblioteca universal, o projeto desliza para uma livraria. Uma evolução já indicada pelo historiador norte-americano Robert Darnton. "Quando uma empresa como o Google pensa numa biblioteca, não necessariamente vê um templo do saber. Mas pensa sim numa enorme jazida de 'conteúdo' que pode explorar a céu aberto", escreveu em fevereiro o diretor da biblioteca de Harvard no The New York Review of Books.
Nessas condições, é preciso temer o Google? As opiniões estão divididas. Por parte dos responsáveis pelas bibliotecas européias que assinaram acordos que afetam apenas as obras de domínio público, a confiança é admissível. Esse é o caso de Richard Ovenden, assim como de Sylvia Van Peteghen. A bibliotecária da universidade de Gante, Bélgica, explica que ela nunca viu o Google como um "diabo comercial".Mas, para ela, o motor de busca norte-americano realiza o sonho de seu predecessor Paul Otlet (1968-1944), pai da classificação moderna, que se perguntava "de que serve colecionar livros se ninguém os lê", e que produziu catálogos detalhados para trocar com seus colegas de Londres."Ele tinha a intuição da internet, sem ter as ferramentas", resume Sylvia Van Peteghen.
Igualmente, para Patrick Bazin, diretor da biblioteca municipal de Lyon, França, que assinou em julho de 2008 um acordo com o Google para digitalizar suas obras patrimoniais, "esta biblioteca digital já é a maior e a que melhor funciona. Além da quantidade, a força que esta biblioteca está enraizada na enorme diversidade de livros digitalizados e a ausência de hierarquização acadêmica ou cultural".
Em troca, o programa suscita muita hostilidade por parte dos editores e dos autores. Nos Estados Unidos inclusive foram abertos processos legais contra o Google que, para por fim a isso, aceitou em outubro de2008 criar um registro que permitirá identificar os titulares de direitos e indenizá-los com um pacote global de 125 milhões de dólares. Para entrar em vigor, entretanto, o acordo deverá ser aprovado em 7 de outubro pela Justiça norte-americana.
A inquietação também é forte na Europa. Em 7 de setembro, a Comissão Européia celebrará uma audiência com os responsáveis pelo Google, três dias depois da data fixada pela empresa para que os titulares de direitos decidam se querem participar do programa ou não. Segundo esse acordo, se o titular renunciar a toda demanda judicial contra o Google, recebe 60 dólares por obra digitalizada e dois terços do preço do livro quando este for vendido. Se rejeitar o acordo, não recebe nada, mas conserva o direito de atacar o Google.
O motor de busca norte-americano ficará numa situação quase monopólica, principalmente porque seu único rival sério, a biblioteca digital europeia Europeana, cujo catálogo compreende quatro milhões de documentos, avança muito mais lentamente. O Google, portanto, está em vias de se transformar de uma só vez na biblioteca mais completa e na livraria mais poderosa do mundo.
Tradução: Eloise De Vylder

[El Pais, 13/11/2009]

13 de agosto de 1961: O dia em que nasceu o Muro de Berlim

Nesta semana a capital alemã recorda uma manhã de verão muito diferente em 1961. Em 13 de agosto daquele ano, as primeiras barricadas entre as metades leste e oeste da cidade foram levantadas. Aquelas barricadas acabariam conhecidas como Muro de Berlim.
Naquela época, ninguém sabia que os rolos de arame farpado se transformariam no símbolo supremo da Guerra Fria. Mas, quando os moradores de Berlim acordaram em 13 de agosto de 1961, policiais e soldados no setor soviético da cidade já haviam começado a bloquear as ruas e a fechar as vias de circulação com caminhões, tanques, tijolos e arame. Cidadãos perplexos observavam a cena impotentes, enquanto a cidade era dividida em duas partes.
A reação foi mais de confusão do que de indignação. Ninguém sabia quanto tempo o novo obstáculo duraria: os berlinenses haviam passado por muitas dificuldades nos 15 anos decorridos desde o final da guerra. Eles não tinham como saber que esta última surpresa acabaria dominando a cidade - e a atenção do mundo - durante os próximos 40 anos. O Muro de Berlim não nasceu de forma espetacular, mas sim com um suspiro de frustração.
Após quase 15 anos de tensão, o muro era visto como apenas mais um episódio de uma longa série de provocações soviéticas. Os berlinenses vivenciaram a traumática ocupação soviética, os anos de fome desesperadora após a guerra e um bloqueio soviético à cidade em 1948. Em 1953, as tropas soviéticas esmagaram uma revolta de trabalhadores em Berlim e em centenas de outras cidades menores na Alemanha Oriental, matando centenas de pessoas.
Após todos esses traumas, os berlinenses sentiram-se como peões no tabuleiro de xadrez da Guerra Fria. A cidade era administrada de acordo com o tratado assinado ao final da Segunda Guerra Mundial, que a dividiu em quatro setores. Na prática, os setores americano, francês e britânico formavam Berlim Ocidental, e o setor soviético era Berlim Oriental.
Impedindo ações de "criminosos"A partir de 1958, o primeiro-ministro soviético Nikita Kruschev começou a pressionar os governos norte-americano, francês e britânico para deixarem a cidade. Eles formavam uma ilha no meio da Alemanha e tornaram-se um espinho cravado no flanco do bloco soviético. O presidente norte-americano John Fitzgerald Kennedy reagiu, deixando claro que os aliados ocidentais estavam compromissados com Berlim.
Temendo a situação precária, os berlinenses deslocaram-se em números cada vez maiores para o setor oeste. De 1949 a 1961, quase 2,5 milhões de alemães orientais fugiram para começar vida nova no setor oeste. A situação atingiu um ponto crítico em 1961. Apenas em julho, 30 mil alemães orientais mudaram-se para Berlim Ocidental.
Em 12 de agosto, a liderança alemã-oriental decidiu que tinha aguentado o suficiente. Às 16h, o líder da República Democrática Alemã, Walter Ulbricht, assinou a ordem de fechamento da fronteira. Em uma questão de horas, a cidade foi cercada de arame farpado e muros de tijolos toscamente construídos, uma barreira de 44 quilômetros que serpenteava pela cidade. A medida funcionou como um bloqueio invertido: em vez de lacrar os moradores de Berlim Ocidental dentro das suas fronteiras, a República Democrática Alemã estava impedindo o seu próprio povo de entrar na área ocidental. Oficialmente, o muro servia para proteger os alemães orientais dos males do capitalismo, para impedir "criminosos e indivíduos belicosos" de vitimizarem a nova nação. Mas, informalmente, ele foi uma tentativa drástica de salvar o Estado alemão oriental do colapso que seria provocado pela emigração.
Os efeitos foram dramáticos. Durante os próximos 38 anos, os berlinenses orientais foram proibidos de viajar ao setor oeste daquela que no passado fora a sua cidade. Naquela época, "Der Spiegel", criada em 1947, apelidou a barreira de "Muralha da China de Ulbricht", mas ela mais tarde ficaria famosa em todo o mundo como Muro de Berlim.
"A zona soviética foi transformada em um campo de concentração"Fazendo uma retrospectiva, a construção do Muro de Berlim foi um dos acontecimentos mais famosos do século 20, a manifestação física de um mundo bipolar. Mas, à época, o arame farpado instalado ao longo da Brunnen Strasse e em frente ao Portão de Brandemburgo pareciam ser mais uma aposta em um jogo de poder. Pelo menos, como muitos disseram à época, nenhum tiro foi disparado - a sangrenta invasão da Hungria de 1956 ainda era uma memória forte. "Qualquer coisa, contanto que não haja uma Budapeste", disse aos repórteres o político berlinense ocidental Joachim Lipschitz, enquanto inspecionava as barreiras de arame farpado.
Na verdade, as palavras mais fortes foram dirigidas contra os aliados ocidentais da Alemanha. Dias depois da construção do muro - ou, conforme "Der Spiegel" disse na época, "88 horas após a zona soviética ter sido transformada em um campo de concentração" - 250 mil pessoas reuniram-se em Berlim Ocidental para protestar contra a reação "suave" das potências ocidentais. O embaixador britânico na Alemanha Ocidental visitou o setor leste da cidade após a construção do muro, aproveitando-se do acordo de divisão da cidade, que garantia aos cidadãos das quatro potências aliadas o direito de visitar livremente qualquer ponto de Berlim. Ao retornar, ele foi recebido com faixas acusatórias. "Traídos pelo Ocidente", "Onde estão as nossas potências defensoras?", "Será que o Ocidente não entende o que se passa?".
Antes de vir abaixo, 20 anos atrás, o Muro de Berlim acabaria sendo o pano de fundo para alguns dos discursos mais dramáticos e dos momentos mais carregados de emoção da Guerra Fria. Ele também custaria a vida de 136 pessoas que foram mortas ao tentar fugir para a zona ocidental.
Mas, em 13 de agosto de 1961, tudo isso ainda estava muito distante. Seriam necessários mais dois anos de indecisões diplomáticas para que John Fitzgerald Kennedy proferisse o seu famoso discurso "Ich bin ein Berliner". E, quando Reagan gritou, "Senhor Gorbachev, derrube este muro!", em 1987, o muro já não dizia respeito apenas a Berlim. Ele transformara-se em uma metáfora do comunismo e de todo o bloco soviético.
Tradução: UOL

[Der Spiegel, 13/08/2009]

Argentina acerta contas com a ditadura: Militares são condenados à prisão pelo assassinato de um jovem em 1976

Alejandro Rebossio, em Buenos Aires (Argentina)

A justiça argentina começou na quarta-feira a condenar os militares e policiais que sequestraram, torturaram e mataram no maior centro clandestino de detenção do exército na última ditadura (1976-1983), o regimento de Campo de Mayo (a 26 km a noroeste de Buenos Aires). O tribunal condenou à prisão perpétua o general aposentado Santiago Omar Riveros, de 86 anos, ex-comandante da 6ª região do exército argentino, pela detenção ilegal, tortura e homicídio de um adolescente de 14 anos, Floreal Avellaneda, que militava na Federação Juvenil Comunista. Outros quatro militares e um ex-policial receberam penas de prisão entre oito e 25 anos pelo mesmo caso.

Pelo Campo de Mayo desfilaram durante a ditadura militar mais de 5 mil detidos ilegalmente. Ali eram submetidos a torturas para que revelassem informação sobre os grupos guerrilheiros ou os movimentos de esquerda. Diante da grande quantidade de denúncias sobre os delitos ali cometidos, fala-se na "megacausa" judicial de Campo de Mayo, que reúne 40 processos abertos.

O primeiro desses julgamentos abordou o caso de Floreal, cujo crime já tinha sido relatado no julgamento das juntas militares de 1985, no qual Riveros também foi condenado. Mas ele e os outros condenados receberam o indulto em 1990 pelo então presidente Carlos Menem. Aqueles indultos e a anistia para os comandos médios e baixos das forças de segurança (as Leis de Obediência Devida e Ponto Final, conhecidas como "leis do perdão") foram declarados inconstitucionais pela Suprema Corte de Justiça, sob o estímulo do governo de Néstor Kirchner (2003-2007), e por isso os crimes considerados de lesa-humanidade não prescreveram e agora estão sendo julgados.

Militares disfarçados invadiram a casa de Floreal Edgardo Avellaneda, "El Negrito", na madrugada de 15 de abril de 1976, poucas semanas depois do golpe militar. Buscavam seu pai, também chamado Floreal, um operário comunista que participava do comitê de empresa de uma indústria têxtil e que fora qualificado pelas forças de segurança como um "combatente". Os militares metralharam a porta da residência da família no norte da Grande Buenos Aires, cortaram o cabo do telefone, roubaram os salários dos pais de Floreal, mas não encontraram o procurado.

Então levaram o adolescente e sua mãe, Iris Pereyra, também militante do Partido Comunista, à delegacia policial de Villa Martelli. Ali os separaram para torturá-los, mas Iris, que conseguiu sobreviver, ouvia os gritos de seu filho. "Diga a eles, mamãe, que papai escapou!", Floreal chegou a gritar para sua mãe de uma sala para outra. Depois foram transferidos para El Campito, como era conhecido o centro de detenção de Campo de Mayo.

Como muitos outros desaparecidos, o jovem Floreal foi atirado às águas do rio da Prata. Seu corpo apareceu em 14 de maio de 1976, dia em que completaria 15 anos, no litoral do Uruguai. Tinha sinais de tortura e de que fora morto pelo método de "alavancamento", que consiste em atravessar uma estaca ao longo do torso. Sua mãe foi transferida para uma prisão comum e recuperou a liberdade em 1978.

Riveros deverá cumprir a pena em uma prisão comum, como os outros sentenciados. Não poderão se alojar em celas militares, como pretendiam. O general inclusive insistiu em sua alegação que desconhecia a autoridade dos juízes que o julgavam, Lucila Larrandart, Marta Milloc e Héctor Sagretti. "Vocês são juízes da democracia, não podem ser juízes de militares, não nos conhecem bem, não sabem o que sofremos", argumentou.

Também foram condenados o ex-chefe de inteligência de Campo de Mayo, general Fernando Verplaetsen, a 25 anos de prisão, mas devido a seu estado de saúde pedirá a prisão domiciliar; o ex-chefe da Escola de Infantaria, general Osvaldo García, a 18 anos; o ex-policial Alberto Aneto, a 14 anos, e dois capitães que participaram do sequestro e do roubo, César Fragni e Raúl Harsich, a 8 anos.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

[El Pais, 14/11/2009]

Pós-11 de setembro

Scott Shane, em Washington (EUA)

Jim Mitchell e Bruce Jessen eram psicólogos e militares aposentados à procura de oportunidades de negócios. Eles encontraram um cliente excelente na CIA, onde em 2002 eles se tornaram os arquitetos do mais "importante" programa de interrogatório na história do contraterrorismo americano.
Eles nunca realizaram um interrogatório de verdade, apenas sessões simuladas no treinamento militar que supervisionavam. Eles não tinham um trabalho acadêmico relevante; os trabalhos de Ph.D. deles tratavam de pressão arterial alta e terapia familiar. Eles não tinham conhecimentos linguísticos nem perícia na Al Qaeda.
Mas contavam com credenciais de psicologia e um conhecimento íntimo do regime de tratamento brutal usado décadas atrás pelos comunistas chineses. Para um governo ávido em ser duro com aqueles que mataram 3 mil americanos, isso bastava.
Assim, "Doc Mitchell" e "Doc Jessen", como eram conhecidos na Força Aérea, ajudaram a levar os Estados Unidos a um doloroso debate sobre tortura, terror e valores, que sete anos depois ainda não se esgotou.
Mitchell, com um sotaque sulista carregado e com uma confiança às vezes arrogante de um homem que venceu por esforço próprio, foi um ex-especialista em explosivos da Força Aérea e um vendedor natural. Jessen, criado em uma fazenda de batatas em Idaho, se juntou ao seu colega da Força Aérea para formar um próspero negócio, que rendeu milhões de dólares com a venda de serviços de treinamento e interrogatório para a CIA.
Sete meses após o presidente Barack Obama ter ordenado o fechamento do programa de interrogatório da CIA, suas consequências ainda chamam a atenção. Nas próximas semanas, o secretário de Justiça, Eric Holder, deverá decidir se dará início a uma investigação criminal, na qual o papel dos psicólogos provavelmente será averiguado. O escritório de ética do Departamento de Justiça deverá concluir um relatório sobre os advogados que consideraram os métodos legais. E a CIA em breve divulgará um relatório de 2004, altamente crítico do programa, feito pelo inspetor-geral da agência.
O coronel Steven M. Kleinman, um oficial de inteligência e interrogador da Força Aérea que conhece Mitchell e Jessen, disse achar que a lealdade deles ao seu país nos tempos de pânico pós-ataques do 11 de Setembro os levou à incursão no campo de interrogatórios. Ele acredita que o resultado foi uma tragédia para o país, assim como para eles.
"Eu sinto que a motivação principal foi que acharam que seus conhecimentos e percepções tornariam o país mais seguro", disse Kleinman. "Mas pessoas boas em circunstâncias extremas podem fazer coisas horríveis."
Para a CIA, assim como para Mitchell, 58 anos e cavanhaque grisalho, e Jessen, 60 anos e cabelo curto e escuro, a mudança de governo foi desconcertante. Por anos, o presidente George W. Bush declarou o programa de interrogatório como sendo legal e o elogiou por impedir ataques. Obama, por sua vez, afirmou que sua brutalidade serviu para atrair mais recrutas para a Al Qaeda; chamou um de seus métodos, a simulação de afogamento, de tortura; e, em sua primeira visita à CIA, sugeriu que o programa de interrogatório estava entre os "erros" da agência de espionagem.
A subsequente queda em desgraça dos psicólogos foi tão rápida quanto sua ascensão em 2002. Hoje, os escritórios da Mitchell Jessen & Associates, o lucrativo negócio que operavam de um simpático prédio centenário no centro de Spokane, Washington, está vazio, com seus contratos com a CIA cancelados abruptamente meses atrás.
Com a possibilidade de um inquérito criminal, Mitchell e Jessen mantiveram um renomado advogado de defesa, Henry F. Schuelke III. O advogado disse que eles não fariam comentários para este artigo, que se baseia em dezenas de entrevistas com colegas dos médicos e atuais e ex-autoridades do governo.
Em uma breve troca de e-mails em junho, Mitchell disse que seu acordo de sigilo com a CIA o impedia de comentar. Ele sugeriu que seu trabalho foi caracterizado de forma errada.
"Pergunte por aí", escreveu Mitchell, "e estou certo que você encontrará todo tipo de 'especialistas' que estarão dispostos a inventar o que você estiver interessado em ouvir, sem se preocupar com a realidade".
Uma mudança de carreiraNa época dos ataques do 11 de Setembro, Mitchell tinha acabado de se aposentar de seu último posto militar, como psicólogo de uma unidade de elite de operações especiais na Carolina do Norte. Mostrando seu lado empresarial, ele abriu uma empresa de treinamento chamada Knowledge Works, que operava de sua nova casa na Flórida, para complementar sua aposentadoria.
Mas para alguém com o histórico de Mitchell, era evidente que a campanha contra a Al Qaeda ofereceria oportunidades. Ele começou fazer uso de toda uma carreira de contatos que desenvolveu nos círculos militares e de inteligência.
Ele cresceu pobre na Flórida, disse Mitchell aos amigos, e entrou para a Força Aérea em 1974 em busca de aventura. Estacionado no Alasca, ele aprendeu a arte de desarmar bombas e obteve diplomas de bacharel e mestrado em psicologia.
Robert J. Madigan, um professor de Psicologia da Universidade do Alasca que trabalhou estreitamente com ele, lembrou de ter encontrado Mitchell anos depois. Ele tinha concluído um doutorado pela Universidade do Sul da Flórida em 1986, comparando dieta e exercício no controle da hipertensão, e estava trabalhando para a Força Aérea em Spokane.
"Eu me lembro dele ter dito que estavam preparando pessoas para interrogatórios intensos", disse Madigan.
O treinamento militar de sobrevivência foi expandido após a Guerra na Coréia, quando confissões falsas por prisioneiros americanos levaram a acusações sensacionais de "lavagem cerebral" comunista. Os oficiais militares disseram que dar aos membros do serviço militar um gosto do estilo de interrogatório chinês os prepararia para suportar a agonia.
O treinamento de sobrevivência da Força Aérea foi consolidada em 1966, na Base da Força Aérea em Fairchild, nas colinas nos arredores de Spokane. O nome do treinamento, Sobrevivência, Evasão, Resistência e Fuga, ou Sere (na sigla em inglês), sugere sua amplitude: homens e mulheres da Força Aérea aprendem a viver da terra e evitar captura, assim como se comportar caso se tornem prisioneiros.
Nos anos 80, Jessen se tornou psicólogo do Sere na Escola de Sobrevivência da Força Aérea, selecionando instrutores que se passavam por interrogadores inimigos em um falso campo de prisioneiros, assim como cuidando para que o tratamento duro não fosse longe demais. Ele cresceu em uma comunidade mórmon com vista do (monte) Grand Teton e obteve um doutorado pela Universidade Estadual de Utah estudando "escultura familiar", na qual os pacientes fazem modelos físicos de sua família para retratar os relacionamentos familiares.
Jessen se mudou em 1988 para o cargo máximo de psicólogo de uma "escola de doutorado" paralela de treinamento de sobrevivência, a uma curta distância da escola da Força Aérea. Mitchell ocupou seu lugar.
Os dois homens se tornaram parte do que alguns membros do Departamento de Defesa chamavam de "máfia da resistência", especialistas em resistir ao interrogatório inimigo. Ambos tenentes-coronéis e ambos casados e com filhos, eles passaram a viajar juntos nos fins de semana para escalar.
Apesar de muitos subordinados os considerarem líderes capazes e intelectuais, alguns colegas psicólogos eram mais céticos. Em uma conferência anual de psicólogos do Sere, lembraram dois colegas, Mitchell apresentou longas queixas às apresentações que não o agradavam.
Na escola da Força Aérea, Mitchell era conhecido por garantir a segurança dos interrogatórios; poderia surpreender seus críticos posteriores saber que ele eliminou uma tática chamada "manhandling" após ela produzir uma série de ferimentos de pescoço, disse um colega.
Na escola de doutorado do Sere, Jessen é lembrado por uma troca estranha de emprego, de psicólogo supervisor para falso interrogador inimigo.
Jessen se tornou tão agressivo nesse papel que colegas intervieram para contê-lo, mostrando a ele um vídeo de seu desempenho "muito assustador", lembrou outro oficial.
Como sempre, disseram oficiais antigos e atuais do Sere, é entendido que o treinamento imita os métodos de adversários inescrupulosos.
Mark Mays, o primeiro psicólogo da escola da Força Aérea, disse que para tornar a prisão falsa realista, os oficiais consultaram prisioneiros de guerra americanos que tinham acabado de voltar dos terríveis campos do Norte do Vietnã.
"Estava claro que era aquilo que esperaríamos de nossos inimigos", disse Mays, atualmente um psicólogo clínico e advogado em Spokane. "Não era algo que eu imaginaria americanos fazendo."
Início do programaEm dezembro de 2001, um pequeno grupo de professores e agentes de inteligência e da lei se reuniram nos arredores da Filadélfia, na casa de um proeminente psicólogo, Martin E.P. Seligman, para ter ideias a respeito do extremismo muçulmano. Entre eles estava Mitchell, que participou juntamente com um psicólogo da CIA, Kirk M. Hubbard.
Durante uma pausa, Mitchell se apresentou a Seligman e disse o quanto admirava o trabalho do homem mais velho sobre "impotência aprendida". Seligman ficou tão impressionado com os elogios incontidos de Mitchell, como ele lembrou em uma entrevista, que ele comentou com sua esposa naquela noite. Posteriormente, ele disse, ele ficou "pesaroso e horrorizado" ao saber que seu trabalho tinha sido citado para justificar os interrogatórios brutais.
Seligman tinha descoberto nos anos 60 que cães que aprendiam que não podiam fazer nada para evitar pequenos choques elétricos se tornavam apáticos e simplesmente choramingavam e suportavam os choques, mesmo após receberem uma chance de escapar.
A impotência aprendida, que posteriormente se tornou um conceito influente no tratamento da depressão humana, também era muito discutida no treinamento militar de sobrevivência. Os instrutores tentavam parar antes de produzir a impotência nos aprendizes, já que a meta deles era fortalecer o espírito dos militares capturados por inimigos.
Mitchell, disseram colegas, acreditava que a produção da impotência aprendida em um membro interrogado da Al Qaeda poderia assegurar que ele atenderia às exigências de seu captor. Muitos interrogadores experientes discordavam, afirmando que um prisioneiro tão desmoralizado diria qualquer coisa que achasse que o interrogador desejasse ouvir.
Na CIA em dezembro de 2001, as teorias de Mitchell estavam atraindo atenção do alto escalão. Diretores da agência pediram que ele revisasse um manual da Al Qaeda, capturado na Inglaterra, que treinava os agentes terroristas a resistirem aos interrogatórios. Ele contatou Jessen e os dois homens escreveram a primeira proposta para transformar as técnicas brutais do inimigo -tapas, posições estressantes, privação de sono, choques contra a parede e simulação de afogamento- no programa americano de interrogatórios.
No início de 2002, Mitchell era consultor do Centro de Contraterrorismo da CIA, cujo diretor, Cofer Black, e o diretor-chefe de operações, Jose A. Rodriguez Jr., ficaram impressionados por sua combinação de dureza visceral e jargão psicológico. Uma pessoa que ouviu algumas das discussões disse que Mitchell deu às autoridades da CIA aquilo que queriam ouvir. Nas palavras dessa pessoa, Mitchell sugeriu que os interrogatórios exigiam "um nível comparável de temor e brutalidade ao de lançar aviões contra prédios".
No final de março, quando membros da agência capturaram Abu Zubaydah, inicialmente descrito como o Nº 3 da Al Qaeda, o plano de interrogatório de Mitchell e Jessen estava pronto. Em uma prisão secreta da CIA na Tailândia, como noticiado anteriormente, dois agentes do FBI usavam métodos convencionais de formação de um laço de entendimento para extrair informações vitais de Zubaydah. Então a equipe da CIA, incluindo Mitchell, chegou.
Com o apoio do quartel-general da agência, Mitchell ordenou que Zubaydah fosse despido, exposto ao frio e bombardeado com rock em alto volume para privá-lo de dormir. Não apenas os agentes do FBI, mas também membros da CIA presentes, ficaram incomodados com o tratamento brutal. Entre aqueles que questionaram o uso de pressão física, segundo uma autoridade presente, estavam o chefe da base tailandesa, o oficial que supervisionava a prisão, um interrogador chefe e um importante psicólogo da agência.
Se eles protestaram junto aos seus chefes na CIA não se sabe, devido ao volumoso tráfego de mensagens entre o quartel-general e a base na Tailândia permanecer confidencial. Uma testemunha disse acreditar em "revisionismo", já que a controvérsia da tortura levou alguns participantes a exagerar suas objeções.
À medida que as semanas passavam, o importante psicólogo da agência partiu, seguido por um agente do FBI e depois o outro. Mitchell começou a dirigir os interrogatórios e ocasionalmente falava diretamente com Zubaydah, disse um funcionário.
No final de julho de 2002, Jessen se juntou a seu parceiro na Tailândia. Em 1º de agosto, o Departamento de Justiça concluiu um parecer legal formal autorizando os métodos do Sere, e os psicólogos aumentaram a pressão. Ao longo de cerca de duas semanas, Zubaydah foi confinado em uma caixa, lançado contra a parede e submetido à simulação de afogamento 83 vezes.
O tratamento brutal parou apenas quando Mitchell e Jessen decidiram que Zubaydah não tinha mais informações a oferecer. Diretores do quartel-general chegaram e assistiram mais uma simulação de afogamento antes de concordar que o tratamento poderia parar, segundo um parecer legal do Departamento de Justiça.
Trabalho lucrativoO caso Zubaydah deu motivos para se questionar o plano de Mitchell e Jessen: o prisioneiro tinha fornecido sua informação mais valiosa sem coerção.
Mas o comando da CIA não promoveu mudanças e os métodos seriam usados em pelo menos 27 outros prisioneiros, incluindo Khalid Shaikh Mohammed, que foi submetido 183 vezes à simulação de afogamento.
Os planos de negócios de Mitchell e Jessen, enquanto isso, estavam funcionando de forma excelente. Cada um deles recebia de US$ 1 mil a US$ 2 mil por dia, disse um funcionário. Eles tinham mesas permanentes no Centro de Contraterrorismo e agora podiam alegar experiência genuína no interrogatório de membros importantes da Al Qaeda.
Mitchell também podia continuar trabalhando fora da CIA. No Ritz-Carlton em Maui, em outubro de 2003, ele participou de um caro seminário para corporações sobre como se comportar em caso de sequestro. Ele criou novas empresas, como a Wizard Shop, posteriormente rebatizada de Mind Science, e a What If. Sua primeira empresa, a Knowledge Works, recebeu em 2004 pela Associação Psicológica Americana o certificado de promotora de educação profissional contínua. (A APA anulou a certificação no ano passado.)
Em 2005, os psicólogos formaram a Mitchell Jessen & Associates, com escritórios em Spokane e Virgínia e cinco acionistas adicionais, quatro deles do programa Sere militar. Em 2007, a empresa empregava cerca de 60 pessoas, algumas delas com currículos impressionantes, incluindo Deuce Martinez, um importante interrogador da CIA de Mohammed; Roger L. Aldrich, um lendário treinador militar de sobrevivência; e Karen Gardner, uma alta oficial de treinamento da Academia do FBI.
Os contratos da CIA com a empresa são confidenciais, mas totalizam milhões de dólares. Em 2007, em um subúrbio de Tampa, Flórida, Mitchell construiu uma casa com piscina, atualmente avaliada em US$ 800 mil.
A influência dos psicólogos permaneceu forte sob quatro diretores da CIA. Em 2006, quando a secretária de Estado, Condoleezza Rice, e seu consultor legal, John B. Bellinger III, pressionaram contra o programa secreto de detenções da CIA e seus métodos, o diretor na época, Michael V. Hayden, pediu a Mitchell e Jessen que prestassem informações às autoridades do Departamento de Estado e as persuadissem a abandonar suas objeções. Eles não foram bem-sucedidos.
Àquela altura, o debate nacional sobre tortura já tinha começado e acabaria com os negócios dos psicólogos.
Em uma declaração aos funcionários em 9 de abril, Leon Panetta, o diretor da CIA de Obama, anunciou a "desativação" das prisões secretas da agência e repetiu a promessa de não usar coerção. E havia mais um item: "Empresas contratadas pela CIA não realizarão interrogatórios".
Membros da agência encerraram os contratos com a Mitchell Jessen & Associates e os lucrativos sete anos dos psicólogos chegaram ao fim. Em questão de dias, a empresa deixou seus escritórios em Spokane. Os telefones foram desativados e, nas empresas vizinhas, ninguém tinha conhecimento de algum endereço para encaminhamento da correspondência.

A história das prisões secretas da CIA
David Johnson e Mark Mazzetti, em Washington (EUA)


Em março de 2003, dois agentes da CIA surpreenderam Kyle D. Foggo, na época o chefe da principal base europeia de suprimentos da agência, com um pedido incomum. Eles queriam a ajuda dele para construir prisões secretas para deter alguns dos terroristas mais ameaçadores do mundo.
Foggo, apelidado de Dusty, era conhecido dentro da agência como um operador que bebe uísque e fuma charuto, alguém que consegue que um avião de carga voe em qualquer parte do mundo ou obtém rapidamente armas, dinheiro, alimentos - qualquer coisa que a CIA precisar. Sua unidade em Frankfurt estava sobrecarregada pelas operações da agência de espionagem no Afeganistão e no Iraque, mas Foggo aceitou a tarefa.
"Era um assunto sensível demais para ser tratado pelo quartel-general", ele disse em uma entrevista. "Eu estava orgulhoso em ajudar meu país."
Foggo passou a supervisionar a construção de três centros de detenção, cada um construído para abrigar cerca de meia dúzia de detidos, segundo ex-funcionários da inteligência e outros informados sobre o assunto.
Uma prisão ficava em um prédio reformado em uma rua movimentada de Bucareste, Romênia, revelaram os funcionários. Outra ficava em uma estrutura de vigas de aço em um local remoto no Marrocos, que aparentemente nunca foi usada. A terceira, outro projeto de reforma, ficava nos arredores de outra cidade do antigo bloco Oriental. Elas foram projetadas para parecer idênticas, de forma que os prisioneiros ficariam desorientados e não saberiam onde estavam caso fossem levados de um lugar para outro. Eles eram mantidos em celas isoladas.
A existência da rede de prisões para deter e interrogar agentes importantes da Al Qaeda há muito é conhecida, mas os detalhes sobre elas eram mantidos em segredo. Em entrevistas recentes, entretanto, vários ex-funcionários da inteligência forneceram um relato mais amplo de como foram construídas, onde ficavam localizadas e como era a vida dentro delas.
Foggo reconheceu seu papel, que nunca antes tinha sido informado. Ele se declarou culpado no ano passado de uma acusação de fraude envolvendo uma empresa que equipou as prisões da CIA e forneceu outros suprimentos para a agência. Ele agora está cumprindo uma pena de três anos em um presídio em Kentucky.
As prisões da CIA se transformariam em um dos programas mais extraordinários de contraterrorismo do governo Bush, mas montá-las foi bastante mundano, segundo funcionários da inteligência.
Foggo fez uso dos contadores e engenheiros da CIA e de trabalhadores das empresas prestadoras de serviço para construir as prisões. Quando elas se aproximaram da conclusão, ele se voltou para uma pequena empresa ligada a Brent R. Wilkes, um velho amigo e um prestador de serviços para as forças armadas em San Diego.A empresa fornecia toaletes, equipamento de água e esgoto, equipamento de som, videogames, roupa de cama, óculos de visão noturna, tampões de ouvido e óculos de sol. Alguns produtos eram comprados na Target e no Wal-Mart, entre outras lojas de varejo, e enviados para o exterior. Nada exótico era necessário para as infames simulações de afogamento -elas eram preparadas na hora com materiais disponíveis localmente, disseram os funcionários.
Foggo, 55 anos, não discutiu os detalhes confidenciais a respeito das prisões. Ele não foi acusado por nada envolvendo as prisões secretas, mas sim acusado de desviar outros negócios da CIA para as empresas de Wilkes em troca de férias caras e outros favores. Antes de deixar a CIA em 2006, ele era o terceiro na hierarquia, e sua declaração de culpa foi um embaraço para a agência.
Após os ataques terroristas de 2001, a adoção pela inteligência mundial de abduções na calada da noite, prisões escondidas e táticas de interrogatório que os críticos condenam como tortura, mancharam a reputação da CIA e levaram a processos legais, investigações e divisões internas que podem levar anos para serem resolvidos. O Departamento de Justiça agora está considerando abrir uma investigação criminal, com grande parte da atenção voltada para a rede de prisões secretas da agência, que se tornaram conhecidas como "black sites" (locais negros).
As exigências das guerras no Iraque e Afeganistão transformaram Foggo de uma figura marginal a um homem indispensável da CIA. Antes dos ataques do 11 de Setembro, a base de Frankfurt era um centro sonolento de distribuição de suprimentos, realizando um ou dois voos por mês para bases próximas. Poucos dias após os ataques, Foggo tinha um orçamento de US$ 7 milhões, que rapidamente triplicou.
Ele dirigia dezenas de funcionários, direcionando quase que diariamente voos de aviões de cargas carregados com suprimentos, incluindo selas, rédeas e ração para cavalo para forças montadas tribais recrutadas pela agência de espionagem. Em semanas, ele esvaziou o estoque da CIA de rifles AK-47 e munição de um depósito no Meio-Oeste.
Foggo era a opção lógica para o projeto de prisões: agressivo, cheio de recursos, patriota, pronto para distribuir favores; algumas pessoas dentro da CIA o comparavam brincando a Milo Minderbinder, o personagem fictício que ascende de responsável pelo refeitório a magnata do mercado negro no romance passado na Segunda Guerra Mundial, "Ardil 22", de Joseph Heller.No início da luta contra a Al Qaeda, os membros da agência dependiam muito dos aliados americanos para ajudar a deter os suspeitos de terrorismo em instalações improvisadas em países como a Tailândia. Mas quando dois funcionários da CIA se encontraram com Foggo em 2003, esse arranjo estava ameaçado, segundo pessoas informadas sobre a situação. Na Tailândia, por exemplo, as autoridades locais estavam ficando cada vez mais incomodadas com o black site nos arredores de Bancoc, de codinome Olho de Gato. (A agência posteriormente mudaria o codinome da prisão tailandesa, temendo que pareceria racialmente insensível.) A CIA queria seus próprios centros de detenção mais permanentes.
No final, a rede da agência abrangeria pelo menos oito centros de detenção, incluindo um no Oriente Médio, um no Iraque, um no Afeganistão e o de segurança máxima e longa duração em Guantánamo, Cuba, que foi apelidado de Strawberry Fields, disseram os funcionários. (Ele foi apelidado com a canção dos Beatles pois os membros da CIA brincavam que os detidos seriam mantidos ali, como diz a letra da música, "para sempre".)
A CIA nunca revelou oficialmente o número exato de prisioneiros que manteve detidos, mas altos funcionários colocam o número em menos de 100.
Nos centros de detenção que Foggo ajudou a construir, disseram vários ex-funcionários da inteligência, as prisões eram pequenas, e apesar de terem sido construídas para receber cerca de meia dúzia de detidos, eles raramente mantinham mais do que quatro.
As celas foram construídas com materiais especiais para impedir que os presos se ferissem durante os interrogatórios: pisos antiderrapantes e paredes flexíveis, revestidas de madeira compensada para absorver parte do impacto de ser atirado contra a parede.
Os detidos, mantidos em celas com distância suficiente para impedir que se comunicassem uns com os outros, eram mantidos em confinamento solitário 23 horas por dia. Para sua única hora de exercício diário, eles eram retirados de suas celas por seguranças da CIA usando máscaras de esqui para ocultar suas identidades e intimidar os detidos, segundo os funcionários de inteligência.
Assim como nos presídios nos Estados Unidos, os carcereiros impunham um sistema de recompensa e punição: os detidos bem-comportados recebiam livros, DVDs e outras formas de entretenimento, que eram retiradas quando se comportavam mal, disseram os funcionários.
Analistas da CIA serviam por 90 dias nas prisões para auxiliar nos interrogatórios. Mas quando as novas prisões foram construídas em meados de 2003 ou depois, as práticas mais duras de interrogatório da CIA -incluindo a simulação de afogamento- foram abandonadas.
O sucesso de Foggo em Frankfurt, incluindo seu trabalho nas prisões, lhe renderam uma promoção em Washington. Em novembro de 2004, ele foi nomeado diretor executivo da CIA, na prática seu chefe administrativo do dia a dia.
A nomeação causou certo incômodo na agência. "Foi como pegar um oficial não comissionado e lhe dizer que agora comanda o regimento", disse A.B. Krongard, o diretor executivo da CIA de 2001 para 2004. "Isso fez as pessoas arregalarem os olhos."
Mas Foggo logo se envolveu em disputas internas na agência. A CIA estava cambaleando devido às críticas de que tinha exagerado os programas de armas do Iraque. Foggo foi para Washington como parte de uma nova equipe que imediatamente começou a demitir altos membros da CIA, causando uma reação negativa entre agentes secretos veteranos. A rápida ascensão e abordagem dura de Foggo incomodaram algumas pessoas no quartel-general, segundo Brant G. Bassett, um ex-funcionário da agência e amigo que serviu com Foggo.
"Dusty chegou lá com um maçarico", disse Bassett. "Algumas pessoas ficaram contentes, mas outras disseram: 'Nós temos que derrubar esse cara'."
Em 2005, antes de ser investigado, Foggo e outros membros da agência, incluindo John Rizzo, o principal advogado da CIA, fizeram uma rara visita a algumas prisões, assegurando aos funcionários da agência que suas atividades eram legais, segundo ex-funcionários da inteligência. Foggo também se encontrou com representantes dos serviços de segurança do Leste Europeu que ajudaram com as prisões. Ele expressou gratidão e ofereceu assistência -um gesto que os representantes educadamente recusaram.
Em fevereiro de 2007, Foggo e Wilkes foram indiciados. Os promotores acreditavam que a CIA tinha pago um preço superfaturado para a Archer Logistics, uma empresa ligada a Wilkes que tinha um contrato de fornecimento de suprimentos para a CIA no valor de US$ 1,7 milhão.
"Eu estava viajando com meu melhor amigo", disse Foggo em sua defesa. "Pode parecer algo ruim, mas nós viajamos juntos desde que tínhamos 17 anos."
Foggo disse que recorreu às empresas de Wilkes para contornar a desajeitada burocracia da CIA, não para beneficiar seu velho amigo. "Eu precisava de algo feito por alguém em quem confiava no setor privado", disse Foggo.
Wilkes mantém sua inocência, mas no final foi condenado em um escândalo de propina envolvendo o ex-deputado Randall Cunningham, da Califórnia. Foggo se declarou culpado e está cumprindo uma pena por fraude, mas ainda sustenta que foi processado injustamente.
Seu advogado, Mark J. MacDougall, disse acreditar que os problemas legais de Foggo derivam em parte de suas controvérsias durante seu cargo como diretor executivo. "Ninguém nunca acusou Dusty Foggo de embolsar um centavo, não cumprir seu dever ou comprometer a segurança nacional", disse MacDougall. "Dusty pode ter cometido alguns erros, mas este caso foi movido por animosidade profissional na CIA e por ambição pessoal."
Quando os advogados de Foggo tentaram sem sucesso obter acesso aos documentos da agência sobre seu papel no programa de prisões, os promotores se queixaram de que ele estava tentando revelar um programa sensível. Foggo alegou que estava relutante em divulgar seu papel em programas secretos e se declarou culpado, em parte, para evitar revelar seus segredos.
Em uma carta de 1º de agosto de 2007, um advogado da CIA informou aos advogados de Foggo que não poderiam analisar quaisquer documentos confidenciais relacionados às prisões. A carta da agência concluiu: "Diante das declarações do presidente em relação ao valor extraordinário e sensibilidade do programa da CIA de detenção e interrogatório de terroristas, a agência nega totalmente seu pedido".

Tradução: George El Khouri Andolfato

[The New York Times, 14/11/2009]

Euclides da Cunha, 100


Visite a página da ABL dedicada a Euclides
clicando aqui...
Conheça o projeto 100 anos sem Euclides.

15 a 17 de agosto, 1969. Bethel, New York...