2010 - Ano Joaquim Nabuco


"A história da escravidão africana na América é um abismo de degradação e miséria que se não pode sondar."

Diplomata, político, jornalista, reformador social, historiador, literato e, sobretudo, pensador, Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo nasceu em 19 de agosto de 1849 (Recife, PE) em faleceu em 17 de janeiro de 1910 (Washington, EUA).

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O IDEAL ABOLICIONISTA

   Compare-se com o Brasil atual da escravidão o ideal de Pátria que nós, Abolicionistas, sustentamos: um país onde todos sejam livres; onde, atraída pela franqueza das nossas instituições e pela liberdade do nosso regímen, a imigração européia traga, sem cessar, para os trópicos uma corrente de sangue caucásico vivaz, enérgico e sadio, que possamos absorver sem perigo, em vez dessa onda chinesa, com que a grande propriedade aspira a viciar e corromper ainda mais a nossa raça; um país que de alguma forma trabalhe originalmente para a obra da humanidade e para o adiantamento da América do Sul.

   Essa é a justificação do movimento Abolicionista. Entre os que têm contribuído para ele e cedo ainda para distribuir menções honrosas, e o desejo de todos deve ser que o número dos operários da undécima hora seja tal que se torne impossível, mais tarde, fazer distinções pessoais. Os nossos adversários precisam, para combater a idéia nova, de encará-la em indivíduos, cujas qualidades nada têm que ver com o problema que eles discutem. Por isso mesmo, nós devemos combater em toda a parte tendo princípios, e não nomes, inscritos em nossa bandeira. Nenhum de nós pode aspirar à glória pessoal, porque não há glória no fim do século XIX em homens educados nas idéias e na cultura intelectual de uma época tão adiantada como a nossa, pedirem a emancipação de escravos. Se alguns dentre nós tiverem o poder de tocar a imaginação e o sentimento do povo de forma a despertá-lo da sua letargia, esses devem lembrar-se de que não subiram à posição notória que ocupam senão pela escada de simpatias da mocidade, dos operários, dos escravos mesmos, e que foram impelidos pela vergonha nacional, a destacarem-se, ou como oradores, ou como jornalistas, ou como libertadores, sobre o fundo negro do seu próprio país mergulhado na escravidão. Por isso eles devem desejar que essa distinção cesse de sê-lo quanto antes. O que nos torna hoje salientes é tão-somente o luto da pátria: por mais talento, dedicação, entusiasmo e sacrifícios que os Abolicionistas estejam atualmente consumindo, o nosso mais ardente desejo deve ser que não fique sinal de tudo isso, e que a anistia do passado elimine até mesmo a recordação da luta em que estamos empenhados.

   A anistia, o esquecimento da escravidão; a reconciliação de todas as classes; a moralização de todos os interesses; a garantia da liberdade dos contratos; a ordem nascendo da cooperação voluntária de todos os membros da sociedade brasileira: essa é a base necessária para reformas que alteiam o terreno político em que esta existiu até hoje. O povo brasileiro necessita de outro ambiente, de desenvolver-se e crescer em meio inteiramente diverso.

   Nenhuma das grandes causas nacionais que produziram, como seus advogados, os maiores espíritos da humanidade, teve nunca melhores fundamentos do que a nossa. Torne-se cada brasileiro de coração um instrumento dela; aceitem os moços, desde que entrarem na vida civil, o compromisso de não negociar em carne humana; prefiram uma carreira obscura de trabalho honesto a acumular riqueza fazendo ouro dos sofrimentos inexprimíveis de outros homens; eduquem os seus filhos, eduquem-se a si mesmos, no amor da liberdade alheia, único meio de não ser a sua própria liberdade uma doação gratuita do Destino, e de adquirirem a consciência do que ela vale, e coragem para defendê-la. As posições entre nós desceram abaixo do nível do caráter; a maior utilidade que pode ter hoje o brasileiro, de valor intelectual e moral, é educar a opinião (feliz do que chega a poder guiá-la), dando um exemplo de indiferença diante de honras, distinções e títulos rebaixados, de cargos sem poder efetivo. Abandonem assim os que se sentem com força, inteligência e honradez bastante para servir à pátria do modo mais útil, essa mesquinha vereda da ambição política; entreguem-se de corpo e alma à tarefa de vulgarizar, por meio do jornal, do livro, da associação, da palavra, da escola, os princípios que tornam as nações modernas fortes, felizes e respeitadas; espalhem as sementes novas da liberdade por todo o território coberto das sementes do dragão; e logo esse passado, a cujo esboroamento assistimos, abrirá espaço a uma ordem de coisas fundadas sobre uma concepção completamente diversa dos deveres, quanto à vida, à propriedade, à pessoa, à família, à honra, aos direitos dos seus semelhantes, do indivíduo para com a nação, quanto à liberdade individual, à civilização, à igual proteção a todos, ao adiantamento social realizado, para com a humanidade que lhe dá o interesse e participação - e de fato o entrega tacitamente à guarda de cada um - em todo esse patrimônio da nossa espécie.

   Abolicionistas são todos os que confiam num Brasil sem escravos; os que predizem os milagres do trabalho livre, os que sofrem a escravidão como uma vassalagem odiosa imposta por alguns, e no interesse de alguns, à nação toda, os que já sufocaram nesse ar mefítico, que escravos e senhores respiram livremente; os que não acreditam que o brasileiro, perdida a escravidão, se deite para morrer, como o romano do tempo dos Césares, porque perdera a liberdade.

   Isso quer dizer que nós vamos ao encontro dos supremos interesses da nossa pátria, da sua civilização, do futuro a que ela tem direito, da missão a que a chama o seu lugar na América; mas, entre nós e os que se acham atravessados no seu caminho, quem há de vencer? É esse o próprio enigma do destino nacional do Brasil. A escravidão infiltrou-lhe o fanatismo nas veias, e, por isso, ele nada faz para arrancar a direção daquele destino às forças cegas e indiferentes que o estão, silenciosamente, encaminhando.
(O abolicionismo, 1883.)
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