EUA criam ajuda de US$ 200 bi a imobiliárias

Governo anuncia pacote para salvar as duas empresas que dominam o setor de crédito destinado à compra de imóveis
Gigantes do mercado estão sob intervenção federal, por tempo indeterminado, e já funcionam como se fossem duas estatais

FERNANDO RODRIGUES, ENVIADO ESPECIAL A NOVA YORK

O governo dos Estados Unidos anunciou ontem um pacote de salvamento de até US$ 200 bilhões para as duas empresas que dominam o setor de crédito imobiliário do país, a Fannie Mae e a Freddie Mac. Esse valor será usado para eventualmente comprar ações preferenciais das gigantes do mercado, que estão desde ontem sob intervenção federal e já funcionando como se fossem duas estatais. Ficarão nessa situação por tempo indeterminado.
Depois de concluída, essa operação de resgate deve ser a maior da história dos Estados Unidos. No primeiro semestre, o recorde já tinha sido estabelecido com a participação do Federal Reserve (BC dos EUA) bancando uma operação de venda do banco de investimento Bear Stearns para o JPMorgan. Nessa ocasião, o Fed teve de empenhar US$ 29 bilhões.
Ainda não está claro o custo final, para os contribuintes, do salvamento da Fannie Mae e da Freddie Mac. Pelo tamanho das empresas, estima-se que o valor final passará com folga a marca do socorro usado no caso do Bear Stearns.
A Fannie Mae e a Freddie Mac são empresas que trabalham no mercado de compra e venda de títulos baseados nos empréstimos imobiliários oferecidos por todo o sistema financeiro dos Estados Unidos. Nos últimos do
is anos, esse mercado começou a esfriar, com toda a economia do país.
A inadimplência atingiu 9,2% dos empréstimos, segundo a Mortgage Bankers Association. Esse é o maior percentual dos últimos 39 anos, desde que o levantamento começou a ser realizado. Juntas, tiveram prejuízo de US$ 14 bilhões nos últimos 12 meses.

Evitar crise maior
As duas empresas entraram em parafuso por causa da alta concentração dos negócios dentro de suas carteiras, sendo muitos dos papéis de má qualidade. Em 2005, ambas respondiam por 38% do mercado de compra e venda de títulos de empréstimos imobiliários.
Conforme o setor foi se desfazendo dos ativos podres, elas foram absorvendo-os -segundo informações iniciais disponíveis, de maneira imprudente.
Ontem, o jornal "The New York Times" publicou reportagem afirmando que as empresas maquiaram seus balanços inflando artificialmente o valor das reservas que teriam para cobrir perdas por inadimplência. Essa contabilidade problemática acabou sendo um dos fatores principais para que o governo decidisse intervir de uma vez para evitar uma crise generalizada no mercado.
De 2005 para cá, a Fannie Mae e a Freddie Mac aumentaram seu domínio do mercado de 38% para 68%, o que equivale a US$ 5,3 trilhões em garantias a empréstimos ou empréstimos concedidos. Como comparação, o PIB do Brasil foi estimado em 2007 em US$ 1,31 trilhão (as duas empresas equivalem a mais de quatro "brasis").

Se ficassem apenas à mercê do mercado, haveria risco real de crise sistêmica, foi o argumento do governo. "Um fracasso de uma das duas poderia causar grande desarranjo nos nossos mercados financeiros e no mundo todo", disse Henry Paulson, secretário do Tesouro dos EUA (equivalente ao ministro da Fazenda no Brasil).
A decisão de fazer uma intervenção federal foi tomada nos últimos dias e foi apenas comunicada ao público ontem para evitar turbulência maior nos mercados acionários. O anúncio também foi feito logo cedo nos EUA para que as Bolsas de Valores na Ásia tivessem tempo de digerir todos os detalhes.
O comunicado oficial foi feito por Paulson e por James Lockhart, diretor da agência federal que supervisiona empréstimos imobiliários, a FHFA (do nome em inglês "Federal Housing Finance Agency"). Caberá a este a responsabilidade pelas empresas enquanto elas estiverem sob o comando de interventores.
Em resumo, o pacote tem os seguintes itens principais:
1) intervenção: desde ontem as duas empresas estão sob o controle de dois interventores federais por tempo indet
erminado. Herb Allison responderá pela Fannie Mae e David Moffett pela Freddie Mac;
2) demissão: foram afastados os executivos Richard Syron e Daniel Mudd, da Freddie Mac e da Fannie Mae, respectivamente. Eles aceitaram colaborar com a transição e devem, em tese, ajudar os interventores na fase inicial do processo de saneamento. Ambos receberão normalmente as indenizações previstas em seus contratos (Syron deve embolsar até US$ 15 milhões; Mudd, cerca de US$ 14 milhões);
3) funcionamento: as duas empresas abrem hoje normalmente;
4) dividendos: serão suspensos os pagamentos de dividendos para todas as ações preferenciais e ordinárias. Essa medida deve dar uma economia de US$ 2 bilhões por ano para as duas empresas;
5) saneamento: para assegurar que as empresas não fiquem sem dinheiro na fase inicial, o Tesouro comprará US$ 1 bilhão de ações preferenciais de cada uma delas, imediatamente;
6) novo modelo: o secretário Paulson deseja remodelar o sistema de títulos do setor imobiliário. O objetivo será evitar a concentração que ocorreu nos últimos dois anos. Durante a intervenção, deve ser reduzida à força a hegemonia das empresas, fator apontado como um dos principais para o descontrole do mercado.

[Folha de São Paulo, 08/09/2008]


Mercado de mentiras e seqüestros

Atendendo a pedidos do mercado, EUA estatizam quase metade do mercado de financiamento imobiliário

VINICIUS TORRES


O GOVERNO dos EUA estatizou quase metade do mercado de financiamento imobiliário. Não foi estatização? Hum. O governo americano tem agora 80% das ações preferenciais das duas maiores empresas do ramo, botou para fora seus diretores, nomeou os novos, cancelou os dividendos dos acionistas e, divertidíssimo, as proibiu de fazer lobby no Congresso. Qual o nome disso? Se fosse na Venezuela, seria estatização, certo? Antes de alguns detalhes, porém, algumas conclusões:
1. O governo Bush, "antiestatista", termina com a maior intervenção do Estado na economia americana desde a Grande Depressão dos anos 30. Mas os lucros ficaram com quem criou a lambança financeira;
2. O governo procura evitar mais quebradeiras. Sim, este é um caso de "risco sistêmico" -o risco de a quebra de instituição financeira importante provocar um dominó de falências que prejudica até quem nada tem a ver com o pato. Mas o "racional" e "eficiente" mercado financeiro oligopolizado ("muito grande para quebrar") tem o monopólio da desculpa esfarrapada "técnica". Merece o privilégio sistêmico de ser socorrido quando ameaça todo o resto da economia, mas não paga por isso nos tempos de bonança. O outro nome dessa desculpa, "risco sistêmico", é seqüestro: se você não pagar o resgate, eu mato todo mundo;
3. O mercadismo critica de boca cheia "instituições capturadas por grupos de interesse", os quais "politizam a gestão econômica em busca de rendas". Vivem a dizer que "instituições como bancos centrais e agências" têm de ser "independentes" e "técnicas", que o Estado não deve subsidiar empresas etc.
Divertido é que, para essa gente, os "rent seekers", os seqüestradores das instituições públicas e devoradores de subsídios e impostos, são sempre os outros -nunca a finança. E agora? Ah, ah, ah. Mostrem-me um liberal. O governo americano estatizou as duas maiores financiadoras imobiliárias do país a fim de evitar que elas "desmoronassem", como dizia ontem um ex-diretor do Banco Central americano. Freddie Mac e Fannie Mae, como são apelidadas, têm ou garantem US$ 5,6 trilhões do mercado de dívida imobiliária americano, de US$ 12 trilhões. Se quebrassem, poderia ocorrer um "tsunami financeiro", como dizia na quinta Bill Gross, diretor do maior gestor de fundos de renda fixa do planeta, o Pimco (US$ 850 bilhões). Gross pedia ainda que o governo dos EUA comprasse papéis imobiliários podres no mercado. Ontem, além de estatizar Freddie "Fraudy" Mac e Fannie "Phony" Mae, como eram reapelidadas as empresas, o governo anunciou que vai comprar papéis imobiliários. Gross, que tem muitos desses títulos, se dizia ontem "sorridente". O que fazem Freddie e Fannie? Grosso modo, concedem, compram e revendem financiamentos imobiliários. Isto é, negociam títulos de investimento que têm como fonte de renda a prestação da casa própria (títulos lastreados em hipotecas, "mortgage backed securities", ou MBS). Os calotes na prestação da casa própria e a perda de valor de tais títulos estão na origem da crise financeira e bancária que jogou areia nas rodas da economia mundial. Se Freddie e Fannie fossem à breca, a economia iria ao brejo. O que pode acontecer? Quem entende muito disso dizia ontem que pode tanto haver festa no mercado como mais medo. Bancos, fundos, hedge funds, BCs pelo planeta e outros detentores e/ou inventores da complexa dívida imobiliária americana podem respirar um pouco. Por ora, ao menos, o círculo vicioso de desvalorização pode ser atenuado. O fato de o governo ter ordenado que as empresas financiem mais hipotecas pode ajudar a derrubar os juros da prestação, que não caíram com a crise e os cortes do Fed. Mas muita ente acha que a crise não vai parar enquanto os compradores de casas endividados não receberem ajuda direta. Outros lembram que muito banco tinha ações de Freddie e Fannie, que nesta segunda devem valer menos do que pó-de-traque queimado. Mas o mais importante de tudo é: o governo americano diz e repete que não vai deixar a peteca cair.

[Folha de São Paulo, 08/09/2008]
0 Responses