Brincando de Deus, um jogo familiar

Seth Schiesel

Qual é a diferença entre um jogo e um brinquedo? Será que um jogo que se parece mais com um brinquedo - ainda que seja um brinquedo cintilante e instigante - está aquém de seu propósito? Ou basta ser apenas um bom brinquedo?

Essas dúvidas passavam pela minha cabeça o tempo todo, durante as mais de 60 horas que passei recentemente jogando "Spore", projeto novo e extremamente ambicioso de Will Wright. Mais conhecido por jogos que simulam o desenvolvimento urbano ("SimCity") e a vida nos subúrbios americanos ("The Sims"), Wright passou os últimos oito anos tentando descobrir como transformar o longo caminho desde a evolução de uma única célula até a exploração da galáxia numa experiência de entretenimento interativo. Sua resposta, "Spore", será lançada online e nas lojas, para PCs e Macs, sexta-feira na Europa e nesse fim de semana na América do Norte.

Como uma brincadeira inteligente através dos domínios às vezes contraditórios da ciência, mitologia, religião e da esperança em relação ao universo que nos rodeia, "Spore" tanto provoca quanto diverte. E como produto criativo, é um marco. As pessoas comuns nunca tiveram uma variedade tão grande de ferramentas para criar seus alter-egos digitais.

Começando com todos os tipos de criaturas bizarras - quer fazer um cefalópode roxo de sete pernas que parece ter surgido de algum lugar entre o rio Styx e o porão de seu cunhado? - e continuando com uma série de prédios e veículos, "Spore" dá aos usuários uma liberdade sem precedentes para transformar sua imaginação numa representação de vida digital. Nesse sentido, "Spore" é provavelmente o brinquedo mais legal e interessante que eu já experimentei.

Mas não é um grande jogo, e isso é algo totalmente diferente.

Os brinquedos arquetípicos, como uma bola ou um soldadinho de chumbo, cativam por sua versatilidade. As crianças podem enxergar o que desejarem num brinquedo, e ficam contentes com isso. Os adultos, entretanto, tendem a perder o interesse nos brinquedos depois de algum tempo. Por outro lado, eles têm um engajamento intelectual e às vezes emocional profundo com os jogos que surgem em torno daqueles brinquedos simples, como o futebol e o xadrez. Esses jogos são eternos não porque eu posso fazer com que minha torre se pareça com um alienígena ou porque David Beckham às vezes cria asas, mas por que sua dinâmica e regras básicas estão perfeitamente afinadas para gerar uma variedade interessante e quase infinita de táticas, estratégias e resultados.

"Spore" não tem essa mágica, pelo menos não num nível mais alto, que ele certamente poderia atingir. Aqueles que estiverem mais interessados em jogar "Spore" do que em brincar com "Spore" - ou seja, aqueles que estiverem mais interessadas num jogo do que num brinquedo - irão provavelmente ficar um pouco decepcionados.

Não dá para negar que "Spore" é bonito; Wright e a equipe de desenvolvimento da Maxis realizaram um prodígio técnico com a programação que permite que integrantes do bando de criaturas interestelares andem, persigam, caiam e voem enquanto fazem amigos e devoram uns aos outros. Para isso, Wright e seus editores na Electronic Arts merecem todo o crédito que receberam de alguns cientistas simplesmente por fazerem um jogo sobre evolução (lembrando que será fascinante ver como o jogo é recebido pelas pessoas que não acreditam na teoria da evolução). E sim, com certeza milhões de pessoas gastarão incontáveis horas, e dólares, no fabuloso brinquedo de computador que é "Spore". Nada de errado com isso.

Mas assim como eu, muitos jogadores terminarão desapontados com o fato de que a genialidade demonstrada nos recursos criativos de "Spore" com certeza não foi aliada a uma inspiração similar para criar um engajamento profundo no jogo. Infelizmente, por trás do colírio para os olhos, a maioria das dinâmicas básicas de jogo é fraca.

Até certo ponto isso parece intencional. De uma forma que talvez esteja de acordo com seu tema principal, "Spore" não é um jogo, mas uma coleção de cinco discretos mini-jogos, cada um refletindo um estágio da evolução biológica e social, e um estilo arquetípico diferente de jogo.

A vida começa no estágio da célula, que é basicamente um prólogo simples. Pense num Pac-Man mais colorido. Flutuando na sopa primordial, suas células comem barrinhas (plantas ou presas) e fogem de fantasmas (organismos maiores). Depois de cerca de 30 minutos (se você sobreviver), evolui para a terra, no estágio de criatura.

Esse estágio é onde a equipe de Wright parece ter mais se empenhado, e para mim foi de longe a parte mais divertida e interessante do jogo.
Todo o projeto "Spore" teria sido melhor trabalhado se os estágios de célula e criatura fossem lançados juntos há alguns anos por um preço menor (hoje, "Spore" custa US$ 49,95), permitindo que as fases posteriores, não tão interessantes, recebessem o mesmo tempo e atenção enquanto expansões.

Tenha em mente que "Spore" não permite vários jogadores em tempo real; que o monstro bizarro no horizonte não é diretamente controlado por outro jogador. Ainda assim, se você estiver conectado à Internet, o monstro pode ser criado por outro jogador, em seu universo solitário, e depois usado para popular o seu planeta.

Assim, o estágio das criaturas domina "Spore", porque só lá é possível apreciar por completo toda a variedade de expressão que o conjunto de ferramentas permite. Conforme você explora o planeta e encontra as criaturas de outros jogadores, o DNA que você coleta permite que você customize sua criatura com dúzias de diferentes partes do corpo. Várias bocas, mãos, pés e asas reúnem diferentes habilidades, como cantar ou dançar (para fazer aliados de outras
espécies) ou morder e agarrar (para lutar).

Mas "Spore" se perde um pouco quando chega à fase tribal e fases posteriores. Talvez o maior problema seja que todo o tempo que você passou esculpindo tão carinhosamente o seu avatar de outro mundo na fase de criaturas, basicamente, não tenha mais importência. Depois que a aparência visual das criaturas é determinada, você tem apenas algumas escolhas diferentes de armas e roupas. Na fase de civilização você escolhe aviões, veículos terrestres e navios; e na fase espacial você obviamente constrói naves espaciais. Mas à medida que o game continua, essas escolhas importam cada vez menos na forma de jogar.

Para passar das fases de tribo e civilização é preciso conquistar ou cooptar todas as tribos e cidades vizinhas. Essas histórias de "conquistar o mundo" são no mesmo estilo de alguns jogos de computador clássicos, e "Spore" empresta abertamente os mecanismos básicos de alguns dos melhores jogos de estratégia já feitos, como "Command & Conquer", "StarCraft" e "Civilization". (Por exemplo, ao enviar camponeses para reunir mantimentos enquanto você usa as tropas contra seus rivais.)

Uma vez que você pula para a fase espacial, a estratégia de jogo de se torna uma vaga lembrança de títulos como "Master of Orion" e "Galactic Civilizations", apenas com controles de interface horrendos, quase capazes de provocar tendinite, e ferramentas insuficientes para administrar o que deveria ser um império galáctico. A exploração e as funções de moldar planetas dessa fase são divertidas, mas são em grande parte obscurecidas por uma quantidade exagerada de tarefas de baixo nível como evitar invasões piratas e mover manualmente mercadorias de um sistema para o outro, o tempo todo. Em nenhum dos estágios mais avançados a profundidade de jogo de "Spore" chega perto de alcançar os melhores jogos disponíveis em cada uma das categorias que ele usa. Além disso, existem falhas inexplicáveis de funcionalidade básica, como a falta de um mecanismo automático para salvar o jogo. A primeira vez que o programa travar, provavelmente na fase espacial, e você perceber que horas de esforço foram perdidas, ficará furioso. Na segunda vez, você poderá parar de jogar para sempre.

Para ser justo, pode-se notar uma falta de profundidade similar nos sistemas de jogo básicos de "The Sims", que tem uma popularidade duradoura. Mas há algumas razões pelas quais isso funciona melhor em "The Sims" do que em "Spore".

Acima de tudo, "The Sims" é na essência um jogo não competitivo e tem um final aberto. "The Sims" é estruturado de forma que você possa ajudar sua família a viver em torno da casa para sempre. Há outras famílias na vizinhança para interagir, mas eles não tentam devorar seus filhos ou botar fogo na sua casa.

"Spore", assim como a vida real, gira em torno da sobrevivência do mais apto. Em cada estágio, ou sua espécie se torna dominante e evolui ou é extinta (o que significa que você deve tentar novamente até "ganhar"). Em "The Sims", criar uma família disfuncional é metade da graça do jogo. Em "Spore", uma espécie disfuncional perde o jogo. Essa natureza competitiva é a única razão pela qual, apesar da melhor aparência, "Spore" é direcionado tanto para adultos quanto para crianças. E o aspecto competitivo faz com que a relativa falta de mecanismos ricos e interessantes seja mais prejudicial para "Spore" do que para "The Sims".

A verdadeira frustração com "Spore" é que a equipe por trás do jogo foi capaz de uma grande conquista nas áreas em que se concentrou, enquanto outras partes ficaram esquecidas. A julgar por suas prodigiosas ferramentas de criação, o jogo é um sucesso nas áreas mais importantes para a mídia de hoje. Assim como o Facebook, o YouTube e a própria internet, "Spore" oferece às pessoas ferramentas de expressão e um grupo para compartilhar suas experiências. A diversão de trocar criaturas com os amigos e a família e explorar novos mundos em "Spore" provavelmente nunca irá acabar.

Agora, se Wright e a equipe da Maxis derem apenas mais alguns passos além dos últimos estágios de "Spore" e lançarem um grande pacote de revisão no ano que vem, eles podem finalmente terminar com um jogo que esteja à altura do grande brinquedo estelar que eles acabaram de colocar no mercado.

Tradução: Eloise De Vylder

[The New York Times, 07/09/2008]
0 Responses