Che Guevara mais ambíguo vende ainda mais

O magnetismo do herói revolucionário cresce entre jovens que renunciam ao maniqueísmo

José Andrés Rojo

Foram os jovens da década de 1960 que transformaram o Che Guevara em um ícone que resumia sua rejeição radical à sociedade capitalista. E são os jovens de hoje que o levam incorporado como uma tatuagem ou em suas camisetas ou cinturões. A mensagem do guerrilheiro pegou naquela época, e ainda no final dos anos 1980, segundo Jon Lee Anderson, um de seus biógrafos, "havia em todo o mundo cerca de 40 guerrilhas que utilizavam a violência para mudar o mundo". Hoje, porém, não parece que a mensagem revolucionária seja a que pega entre a maioria dos jovens. "Não interessam mais os heróis íntegros, são os personagens ambíguos que atraem as novas gerações", afirma o sociólogo Enrique Gil Calvo.

Na última sexta-feira estreou a primeira parte do novo filme sobre Che Guevara dirigido por Steven Soderbergh e estrelado por Benicio del Toro. O personagem famoso, que há tempo é também ícone da cultura de massa, conserva uma excelente saúde. O filme é exibido na Espanha em 340 salas e, segundo os dados provisórios de bilheteria, foi o mais visto no último fim de semana.

O fascínio pelo revolucionário mítico se mantém intacto? As novas gerações incorporaram o guerrilheiro como referência de suas expectativas vitais? Ou o que ocorre corresponde simplesmente a estratégias de mercado, ao bom faro de garimpeiros que voltaram a explorar um filão riquíssimo?

"Vivemos em um mundo pós-ideológico, globalizado, em que reina o consumismo e o sentido pragmático e onde a pessoa real, que tem os pés na terra, está preocupada em pagar a hipoteca da casa, as promissórias do carro ou decidir para onde fará a próxima viagem. Que lugar há nesse contexto para a revolução?" Quem fala é o jornalista americano Jon Lee Anderson, autor da biografia mais célebre do guerrilheiro, "Che Guevara - Una vida revolucionaria" (ed. Anagrama), e assessor histórico de Soderbergh no filme.

"Refiro-me aos países ricos do Ocidente, mas não se deve esquecer o outro mundo. Aí ainda estão vigentes essas ideologias aparentemente esgotadas, e é onde o personagem histórico de Che tem muito a dizer. Incluso entre os novos russos, como Abramovitch, há ares de superpotência, e embora não creiam em uma revolução intercontinental não lhes parece ruim a identificação com um símbolo popular que fala de justiça e de ajuda aos desfavorecidos."

"O mito do Che cresceu alimentado pela sociedade em que vivemos, frívola e materialista, que está justamente nos antípodas dos valores que ele representa", explica o escritor argentino Pacho O'Donnell, autor de outra biografia do personagem, "Che - La vida por un mundo mejor" (ed. Plaza & Janés). "A queda do regime comunista também o privou de sua condição ideológica, e assim restaram dele o idealismo e sua força de personagem épico. Quanto mais crescer a carência de valores, mais crescerá esse mito."

Steven Soderbergh contou em Cannes, quando apresentou pela primeira vez as duas partes do filme, que a decisão final de rodá-lo o assaltou quando viu a imagem do revolucionário na nádega de uma mulher em Nova York. "Tenho certeza de que aquela garota não tinha idéia de quem era aquele sujeito que levava tatuado. E essa foi minha idéia: dar uma história à foto da camiseta."

O Che está em toda parte. Ou melhor, a imagem do Che que procede da fotografia que Alberto Korda fez dele em 1960 durante um comício em Havana está em toda parte. Há garotas que a levam pintada em cada uma das unhas, foi estampada em copos e chaveiros, está em latas, tatuado em qualquer parte do corpo. De que Che se fala então, se é que são diferentes? Do que esteve em Sierra Maestra combatendo Batista (entre muitas outras coisas), ou do que está estampado nos porta-copos de uma discoteca da moda? Têm algo em comum?

"A partir de 1956 os jovens radicais da Europa ocidental se afastaram da experiência comunista desanimadora da Europa do Leste para buscar inspiração em lugares mais distantes", conta Tony Judt em seu livro "Postguerra" (ed. Taurus). E a partir de 1967, ele explica, o movimento de contracultura adotou uma linha mais dura, "por associação com os relatos idealizados dos rebeldes da guerrilha do Terceiro Mundo". Em 1968 apareceu o pôster de Guevara, e uma imensa quantidade de jovens o transformou em referência. Fascinou sobretudo aos intelectuais europeus, comenta o ensaísta cubano Iván de la Nuez. "Procuravam causas distantes com as quais comungar, e houve muitos que se renderam diante da figura do Che, de Sartre a Wim Wenders. Ou Regis Debray, que aderiu à guerrilha na Bolívia."

E os jovens de hoje? "A imagem do Che faz parte da hagiografia interclassista pós-moderna de muitos jovens, ao lado de outras celebridades que funcionam como ícones românticos", comenta o sociólogo Gil Calvo. "Mas não creio que seja capaz de mobilizá-los para a esquerda. As coisas mudaram muito e os heróis atuais da juventude não são íntegros, lhes interessa mais a ambigüidade moral. Aí está o Darth Vader, o lado escuro da força."

De la Nuez dirige a programação do Palau de la Virreina em Barcelona, onde foi apresentada há um ano a exposição "Che! Revolución y mercado", que mostrava o destino que teve o ícone. "É curiosa a distância existente entre a unilateralidade do Che e a multilateralidade do ícone", diz ele. "A invenção do pôster é do editor italiano e militante de esquerda radical Giangiacomo Feltrinelli, que o publicou como apoio publicitário para acompanhar a promoção do 'Diario en Bolivia del Che'. O título dado tem um lado psicodélico e é um gesto a uma canção dos Beatles: 'Che in the sky with jacket'. Um homem fotogênico que morre jovem e deixa um belo cadáver. Que mais se pode pedir em uma época que cultuava a juventude?"

Jovem, bonito, viril. "O Che não é uma invenção de Andy Warhol", observa Jon Lee Anderson. "Por trás do ícone há a história de um revolucionário, e mesmo que tenha se transformado em um símbolo de consumo há quem pense que através do fetiche pode chegar a suas idéias." Gil Calvo não compartilha essa idéia, no que se refere aos jovens das sociedades ocidentais. "Não creio que possa lhes interessar nada que tenha a ver com a guerrilha e com ideais da velha esquerda tradicional. Estão mais próximos dos movimentos antiglobalização ou das idéias ecológicas."

O caso é que cada um interpreta a imagem a sua maneira. De la Nuez: "O personagem histórico tinha muito claro o que queria, e o deixou registrado nos livros que escreveu. Era um revolucionário, acreditava na violência como caminho para pôr o mundo do avesso e, diante da importância da revolução, sentia um profundo desprezo pela sua vida e a dos demais". No cartaz de Korda, por outro lado, observa que "cada um pode encontrar o que quiser: desejo de justiça, uma vida épica e romântica, a entrega aos outros, a autenticidade de princípios. Vale tudo".

Pacho O'Donnell ainda não viu o filme de Soderbergh. "Trata de sua infância?", pergunta. Não, não trata. Começa no México em 1955, quando ele conhece Fidel Castro. "É muito difícil conhecer o Che sem conhecer sua infância", ele diz. "Foi um menino contemporizador, conciliador, sem nenhuma tendência à violência. Não há histórias dele de brigas com companheiros ou com seus irmãos, tão próprias dos rapazes. Sua opção pela violência foi tardia e totalmente racional, ideológica. Pensava que à violência desenfreada de seus inimigos só se poderia responder com uma violência da mesma intensidade."

A primeira parte do filme se detém no caminho para Havana. Não se conta nada de seu trabalho imediatamente posterior na Fortaleza de la Cabaña, onde foi encarregado de liquidar, com julgamentos muito sumários, os assassinos e torturadores do regime de Batista. "Muitos afirmam que ele exagerou e de passagem cuidou de todos os dissidentes da revolução", comenta O'Donnell. "Em todas as revoluções há excessos, basta consultar a história, e do trabalho sujo da cubana o Che se encarregou", acrescenta.

O'Donnell lembra que Bernard-Henry Lévi lhe disse em Paris, quando lançou sua biografia na cidade, que o ideal da pureza na política é trágico porque leva ao fanatismo. Anderson observa que Soderbergh já se protegeu em Cannes das possíveis críticas quando disse que seu trabalho fala do Che que ele descobriu, e que não pretendia se deter em cada um dos episódios que ele viveu. "Talvez não tenha rodado 20 minutos de fuzilamentos, mas o Che doutrinário e rígido está em seu filme."

"Todo mundo fica com a idéia de que o Che era alguém disposto a morrer por um ideal, e se esquece de que também estava disposto a matar por ele", salienta O'Donnell. No filme ordena que fuzilem dois guerrilheiros que cometeram erros: um roubando os camponeses, outro violentando uma jovem. Em seu diário conta de maneira clara a execução de um traidor. O exército de Batista havia apanhado um guerrilheiro e perdoou sua vida em troca de informações. Mas os revolucionários o descobriram e Castro lhe anunciou que seria executado. O'Donnell cita em seu livro a referência que o Che fez do episódio: "A situação era incômoda para as pessoas e para ele, então acabei com o problema dando-lhe na fronte direita um tiro de pistola 32, com orifício de saída na têmpora esquerda. Estremeceu um pouco e ficou morto".

Portanto, o Che volta a fascinar, embora Gil Calvo indique que o faz "mais como ícone pós-moderno do que como revolucionário". Anderson salienta que esse Che é o de Soderbergh, que se poderiam fazer milhares de outros filmes concentrando-se em episódios diferentes. "Foi um revolucionário que nunca se interessou pela democracia", diz De la Nuez. O'Donnell salienta sua vocação de sacrifício: "Quando terminou a medicina, ia se dedicar à cura de leprosos na Venezuela, mas acabou na Guatemala. Ali assistiu à derrubada de Jacobo Arbenz por ter tocado nos interesses dos latifundiários, e entendeu de maneira radical que a violência era indispensável para impor mudanças profundas".

"Guevara foi a ponte que ligou 1968 com o que ocorreria depois", reflete De la Nuez. "A partir da utilização de sua figura, a revolução se transforma em uma questão estética e se torna frívola." Soderbergh não contribui para confirmar a lenda? Anderson considera a leitura de Soderbergh e de Del Toro tão legítima quanto qualquer outra. "O que importa é o debate, a discussão. Escrever sua biografia me exigiu vários anos, e só se investe esse tempo em um personagem que lhe seja simpático. No entanto, neste momento não sei o que penso do Che. Não sei se gosto dele ou não."

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

[El País, 03/09/2008]
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