Reino Unido celebra 200 anos da abolição

"Mea culpa" pela escravidão se sobrepõe à comemoração de lei que acabou com comércio de escravos, em março de 1807

Pedidos de perdão são polêmicos; para historiador, refletem mudanças que imigração provocou na sociedade britânica

Reuters
A "porta sem volta" do antigo entreposto na ilha de Gorée (Senegal), de onde escravos vieram para o Brasil, o Caribe e os EUA

MARCO AURÉLIO CANÔNICO, DE LONDRES

É com uma série de passeatas e polêmicas públicas que o Reino Unido celebra amanhã [25 de março] os 200 anos da abolição do comércio de escravos, buscando expurgar sua culpa na exploração dos africanos.
Aprovada pelo Parlamento em 25 de março de 1807, a lei que proibiu o comércio escravista está ganhando sua primeira celebração de destaque tanto por parte da sociedade quanto do governo, que investiu 20 milhões de libras (cerca de R$ 80 milhões) em eventos.
"Há 50 anos ninguém lembrou da data, mas hoje há muita discussão sobre ela", diz à Folha o professor John Oldfield, da Universidade de Southampton, um dos principais estudiosos britânicos da escravidão. "É um reflexo da mudança da sociedade britânica, que hoje é muito mais multicultural e etnicamente diversa e, por isso, demanda essa resposta."
Prova dessa demanda é o clima de "mea culpa" que predomina no país devido ao papel dos britânicos nos mais de quatro séculos de escravidão e que se sobrepõe às celebrações pelos atos libertadores.
O premiê Tony Blair expressou "profundo pesar", em novembro passado, pela liderança britânica no tráfico transatlântico de escravos. Na semana passada, voltou a se manifestar afirmando "sentir muito" pelos atos da nação no passado.
Já o prefeito de Londres, Ken Livingstone, foi mais enfático.
"Convido todos os representantes da sociedade a juntarem-se a mim para desculparmo-nos publicamente pelo papel que Londres teve nesse crime monstruoso", escreveu na última quarta, no jornal "The Guardian".
"Foram a resistência negra e o desenvolvimento econômico que destruíram a escravidão, não a filantropia branca", completou o prefeito, que também lembrou os pedidos de desculpas formais feitos pela Igreja Anglicana e pela cidade de Liverpool, outro importante centro do comércio escravista.
"No passado, quando falávamos de escravidão era para destacar o papel que tivemos em acabar com ela, para que pudéssemos nos sentir bem com nós mesmos", afirma Oldfield.
Para marcar a data, inúmeros museus -como o British Museum e o Victoria and Albert- estão sediando exposições que cobrem diversos aspectos da escravidão, desde seu impacto na África e no Caribe até os legados do sistema hoje.
O clima de reflexão sobre a culpa dos britânicos não é unânime, no entanto. Muitos grupos acham que a data devia ser lembrada pelas ações de abolicionistas como William Wilberforce (1759 -1833), parlamentar considerado o principal impulsionador do movimento.
"Recebi muitas mensagens reclamando que a data está sendo vista de modo a fazer os brancos sentirem culpa, em vez de celebrar a liberdade", diz o professor Oldfield.

Ruas renomeadas
Em Serra Leoa, ex-colônia britânica na África, o bicentenário está sendo marcado pela mudança dos nomes das principais ruas da capital, Freetown. Os nomes de personagens britânicos serão substituídos pelos de africanos do movimento abolicionista.
Projeto semelhante foi aventado na britânica Liverpool, uma das cidades que mais lucrou com o comércio escravista. A substituição dos nomes de ruas pelos de abolicionistas foi abortada, no entanto, após esbarrar em um nome clássico: a Penny Lane, tornada célebre na canção homônima, dos Beatles.
A rua foi nomeada em homenagem a James Penny, um dos maiores comerciantes de escravos do Reino Unido.


No Brasil, historiadores também divergem
FLÁVIA MARREIRO
, DA REDAÇÃO

Historiadores brasileiros ouvidos pela Folha usam lentes diferentes para analisar o bicententário do veto britânico ao tráfico negreiro e a onda de pedidos de desculpas dos europeus pela escravidão.
Para Manolo Florentino, historiador da UFRJ, os pedidos de perdão como o do prefeito de Londres, Ken Livingstone, são um exercício do politicamente correto, uma demonstração do que chama de "fascismo bem comportado".
Autor de "Tráfico, Cativeiro e Liberdade" (ed. Civilização Brasileira), Florentino diz que a "escravidão é uma tragédia da humanidade". "Quero ver é os africanos pedirem desculpas por também terem vendido escravos aos ingleses", diz.
Para Luiz Felipe de Alencastro, professor na Universidade de Paris-Sorbonne, os pedidos de desculpa estão "na ordem do dia" -antes dos ingleses foram os EUA e até o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pediu desculpas em visita à África.
"É um absurdo esse argumento de que já havia escravidão na África. O Ocidente provocou a maior migração forçada da história da humanidade", afirma Alencastro, que escreve no blog sequenciasparisienses. blogspot.com.
O que explica a nova onda de pedidos de perdão, diz o professor, é a ascensão política de afrodescendentes na Europa. "O debate sobre a indenização às vítimas do Holocausto, que vinha desde 1945, mas foi relançado com o fim da Cortina de Ferro, criou evidentemente um espaço mais propício sobre a questão da reparação moral dos negros", agrega.
No caso brasileiro, e à luz da emergência do movimento negro, o tema das desculpas, do papel dos africanos no tráfico e das mazelas da escravidão vem coalhado pelo debate inflamado sobre racismo e cotas.
Por causa disso, Flávio Gomes, também historiador da UFRJ, diz valorizar o esforço de não "infantilizar" o papel da África no tráfico, mas argumenta: "O debate deve buscar, sem cinismos ou falsas polêmicas, possibilidades interpretativas e novos significados de temáticas e datas".

O bicentenário e o Brasil
Para além das divergências sobre o trato contemporâneo da questão, Alencastro e Florentino concordam que a decisão inglesa de interromper o tráfico -e a forma como o Brasil reagiu e resistiu a ela por quase meio século- foi crucial na formação do país.
De 1807 até 1850 -quando o Brasil proibiu de fato o tráfico de negros-, há um período longo em que a diplomacia da Colônia e do Império negociaram frente à pressão inglesa. Uma lei de 1831 tornou o tráfico ilegal -mas "só para os ingleses verem", daí o ditado.
"O fantástico é que Brasil consegue resistir por quase meio século à proibição da Inglaterra, a maior potência da época. Isso só se explica pela força política que [envolvidos com o tráfico] tinham", diz Florentino. Para Alencastro, foi essa permissividade quanto ao tráfico que forjou a unidade brasileira: o Império não teria força para exigir que as oligarquias abrissem mão do negócio mais lucrativo da época.


[Folha de São Paulo, 24/03/2007]
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