A cor da pele de Obama na caverna de Platão

Carlos Eduardo Lins da Silva


O partidarismo político motiva as pessoas a olharem as outras de maneira consistente com suas convicções, em processo consciente ou não

Uma das reportagens mais interessantes de domingo passado é a que relata pesquisa acadêmica sobre como convicções ideológicas podem alterar a maneira de pessoas perceberem aspectos físicos da realidade. No caso, o tom da cor da pele do então candidato à Presidência dos EUA Barack Obama.

O trabalho de professores das universidades de Chicago, Nova York e Tilburg (esta na Holanda) mostra que, diante de um jogo de três fotos como as desta página, uma sem alteração e as outras acentuando ou atenuando o tom negro da pele, quem concordava com as posições políticas de Obama e tendia a votar nele achava que o verdadeiro era o mais claro e os que se opunham e iam votar no seu opositor o reconheciam como o mais escuro, em proporções estatisticamente significativas.

É fácil entender (embora muitos neguem, como se vê em polêmicas políticas, religiosas e esportivas) que a partidarização afeta as crenças.

Como argumenta o líder do grupo que fez esse estudo, Eugene Caruso, não é surpreendente que liberais e conservadores que tenham lido o mesmo texto da proposta de reforma do sistema de saúde dos EUA cheguem a conclusões muito diversas sobre seus méritos.

Muito mais impressionante é que adversários ideológicos olhem para uma só cópia material do projeto de lei e os que o combatem digam que ele é mais longo do que de fato é e os que o apoiam afirmem que ele é menos volumoso do que é na realidade (nos EUA, leis compridas são associadas pelo público com excesso de burocracia e intervenção estatal).
É isso que o resultado desse estudo sugere: nossas crenças afetam não apenas o modo como avaliamos valorativamente o mundo, mas até como percebemos concretamente pessoas e coisas no ambiente.

O partidarismo político motiva pessoas a olharem outras (e figuras públicas, sobretudo) de maneira consistente com suas convicções, em processo consciente ou não.

Diante da mesma mensagem ou até do mesmo objeto, cada um entende ou enxerga o que quer, consegue, pode ou deseja.
É claro que a realidade objetiva existe. As sombras do mito da caverna de Platão não passam de sombras. Mas, para efeitos práticos, podem ser dramáticas as consequências de contingentes enormes de cidadãos estarem convencidos de que as sombras são a verdade.

Também se deve considerar que o estudo trata de questão específica e muito intensa na sociedade americana, na qual foi realizado: as relações raciais (o livro e o filme aqui indicados expressam bem o problema). Mas ele não deixa de propor desafios a quem enfrenta situações similares em qualquer lugar.

A íntegra da pesquisa (em inglês) está em http://www.pnas.org/content/106/48/20168.full.pdf.

PARA LER
"A Marca Humana", de Philip Roth, tradução de Paulo Henriques Britto, Companhia das Letras, 2002 (a partir de R$ 47,16)


PARA VER
"Revelações", de Robert Benton, com Anthony Hopkins, 2003 (disponível em locadoras de vídeo)

*Carlos Eduardo Lins da Silva é o ombudsman da Folha

[Folha de São Paulo, 13/12/2009]
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