Tóquio esquece suas escravas sexuais

A China critica o último deslize do primeiro-ministro japonês e os EUA pedem correção. Tóquio insiste em negar seu envolvimento no sistema de prostituição forçosa na 2ª Guerra Mundial

Rafael Poch, em Pequim

Um comentarista do jornal "Asahi" de Tóquio tentou certa vez dar nota à trajetória de seu país desde a II Guerra Mundial. Deu-lhe Excelente como "bom perdedor" da guerra e como "ótimo reconstrutor" no pós-guerra. Sugeriu um Notável no conceito de "bom cidadão", mas em seguida propôs um rotundo Reprovado em outra categoria, a de "bom vizinho". Em 1º de março passado, o primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, confirmou esse Reprovado. Abe negou qualquer responsabilidade do governo japonês no sistema de escravidão sexual organizado na Ásia durante a guerra e a ocupação do continente, que envolveu entre 80 mil e 200 mil mulheres coreanas, chinesas, filipinas, indonésias e algumas européias, empregadas nos bordéis do exército imperial.

Além de infame, a declaração foi muito torpe. Primeiro de março é o dia em que os coreanos comemoram os protestos antijaponeses de 1919. Além disso, este ano é o 70º aniversário do massacre de dezenas de milhares de chineses em Nanquim e o início da guerra em que morreram 23 milhões de chineses em toda a Ásia, segundo a estimativa documentada de Chalmers Johnson.

Abe disse que "não há evidências que provem que houve coerção" no caso do exército de mulheres obrigadas a se prostituir, uma realidade historicamente documenta na memória da Ásia, e pelo trabalho do historiador japonês Yoshiaki Yoshimi, que demonstrou em 1992 a participação no fato do exército e do governo imperiais. Oito dias depois o Executivo insistia no mesmo tom em outra declaração em que desculpava a si e ao exército.

Em 1993 o governo japonês expressou seu "pesar e remorso" por aquele drama de guerra, e tanto essa declaração parlamentar como outra posterior de Abe afirmavam basear-se naquela declaração de 1993. O resultado foi a habitual ambigüidade japonesa em assuntos de responsabilidade de guerra: mantêm-se as desculpas, mas sugere-se que não se acredite em todo o assunto. Isso obriga os políticos japoneses a todo tipo de declarações que são imediatamente desmentidas por outras, ou por atitudes concretas e claras. Quando lhes perguntam sobre o tema, estranham a insistência.

Neste caso, os coreanos se enfureceram. Os chineses minimizaram a afronta do dia 1º de março e divulgaram amplamente em sua imprensa a declaração oficial posterior, que afirmava a vigência da posição de 1993. Mas a reação mais incisiva se registrou nos EUA, onde uma declaração do Congresso pediu que Tóquio mudasse de atitude.

A amnésia e recusa em aceitar responsabilidades históricas, tão freqüente entre as potências européias, é rara em países que foram derrotados de forma tão contundente como aconteceu com o Japão. Ainda mais estranho é que essa insensibilidade em relação às vítimas estrangeiras seja compatível com Abe e seu governo, que fizeram do caso dos 16 cidadãos japoneses seqüestrados nos anos 1970 e 80 pelos serviços secretos norte-coreanos, um de seus principais temas diplomáticos.

Muitos na Ásia se perguntam sobre o motivo dessa atitude. O professor Lee Gi Ho, da Universidade de Sungkonghoe, na Coréia do Sul, diz que o Japão é "como uma criança que se nega a crescer e ser adulto", comparação que o general americano Douglas MacArthur, vice-rei do Japão no pós-guerra, já empregou em 1951. Outros opinam que o problema de desculpas convincentes para o Japão é que o país não acredita sinceramente ter feito nada de mal na guerra. Mas existe outro Japão, composto por cidadãos, juristas, historiadores e ativistas, com uma longa história de intervenções no tema da memória histórica da nação.


La Vanguardia, 14/04/2007
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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