Passado que condena

A ensaísta argentina Beatriz Sarlo fala como a sociedade hoje revisita a história construindo museus e parques, e parece sofrer de amnésia Antonio Gonçalves Filho Afirmar que o testemunho de uma vítima da ditadura militar argentina não é capaz de oferecer uma nova perspectiva sobre o passado pode parecer escandaloso, mas não quando quem afirma é a crítica literária argentina Beatriz Sarlo, argumentando que a história de seu país precisa ser revista com base em outras fontes. A ensaísta, que vem a São Paulo em maio para um debate no Instituto Cervantes, é considerada por muitos como a mais séria candidata ao posto deixado por Susan Sontag. Como a falecida crítica americana, Beatriz Sarlo, aos 64 anos, tem estudos sobre as mais diversas áreas do conhecimento e ainda encontra tempo para editar a revista Punto de Vista. De Buenos Aires, Beatriz Sarlo falou com a reportagem do Estado sobre seu livro Tempo Passado, que a Companhia das Letras publica em co-edição com a Universidade Federal de Minas Gerais. A seguir, sua entrevista.

Você sustenta em Tempo Passado que o testemunho não é infalível, em particular numa sociedade pouco propensa à autocrítica, mas foram os depoimentos de militantes e familiares de desaparecidos peças fundamentais na transição democrática de países como a Argentina e o Brasil. Como mudar a forma de reconstrução do passado sem o testemunho de seus protagonistas?

A história se constrói com documentos. No caso de terrorismo de Estado ou de outras matanças, muitas vezes os responsáveis destroem todas as provas. Essa é uma preocupação presente desde a 2ª Guerra Mundial, quando os nazistas, ao abandonar os campos de concentração, destruíram as provas do que se passava lá dentro. Portanto, quando elas são destruídas, a única alternativa é o testemunho das vítimas, tanto para a reconstrução da história como para um possível processo judicial contra os criminosos. No caso argentino, foi possível reconstruir a disposição dos campos de concentração, como o de Córdoba, graças ao depoimento de alguns sobreviventes ali torturados. A pergunta que me faço é o que acontece quando o testemunho se contrapõe a outros documentos.

Ao privilegiar a memória, o mundo globalizado parece assegurar uma ordem dentro de sua fragmentação. A fixação por museus na sociedade pós-moderna não seria uma tentativa de transformar a memória em espetáculo?

Poderia dizer, como se diz na Europa, que vivemos num estado de memória, não apenas pelo auge dos museus como pela reconstrução de paisagens e aldeias supostamente originais. Ou seja, prevalece a idéia da teatralização da memória. No caso americano, formas materiais do passado são reconstruídas em parques temáticos como Williamsburg, em que empregados simulam ser cidadãos do século 18, ao vestir figurinos de época e trocar saudações como habitantes de uma cidadela colonial americana. Assim funciona o mercado e a reconstrução de certos conteúdos do passado, banalizados por ele.


Tempo Passado, Beatriz Sarlo, Companhia das Letras, 130 págs., R$ 33,50
[Estado de São Paulo, 01/04/2007]


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