Nas fronteiras entre os reinos humano e animal

Valores humanos, dignidade humana, direitos humanos. Há muitos anos invocamos tais coisas como favas contadas de argumentos irrespondíveis, diante dos quais os diálogos se encerram e todos se calam. Enquanto isto, surgidas nas mal resolvidas fronteiras entre a ciência e a filosofia, inúmeras pesquisas vão silenciosamente detonando todos os nossos conceitos de 'humanidade' e teimando em nos puxar de volta para a consciência das continuidades que nos ligam ao resto da criação. Então Você Pensa Que É Humano? - Uma Breve História da Humanidade, do historiador de Oxford, Felipe Fernandez-Armesto é resumo lúcido e atualizado de todas essas novas pesquisas e suas implicações culturais e morais.

A evolução da espécie tomou a forma da iconografia de uma escada, que virou um lugar-comum: é uma seqüência linear de formas progressivas, geralmente dispostas da esquerda para a direita, quase sempre indo de um macaco encurvado para um homem empinado. Tal imagem se tornou tão execravelmente errada e preconceituosa, que deveria ser definitivamente abolida de todos os livros e manuais científicos. Sondagens e descobertas isoladas da última década pulverizaram todas as cronologias. A paleoantropologia até já desistiu de dar uma resposta conclusiva à pergunta: até que ponto remoto no passado evolutivo podemos distinguir os humanos de outros seres? O exemplo-chave é o dos neandertais: se encontrássemos um deles na rua, certamente experimentaríamos o mesmo senso de parentesco, de reconhecimento instantâneo - tirando, é claro, diferenças de aspecto e problemas de comunicação, típico de encontros corriqueiros ente humanos modernos esclarecidos de diferentes culturas.

A primatologia deste início de século, tem acumulado pesquisas com fortes exemplos de como nós, humanos, somos semelhantes a outros macacos, sobretudo bonobos e orangotangos. Impossível esperar de orangotangos qualquer destreza sintática, mas eles parecem ter sistemas de comunicação capazes de atingir o alcance da fala humana - ou seja, eles se comunicam para os seus próprios fins, usando com parcimônia, vocalizações dentro do âmbito permitido pelos seus órgãos de fala, suplementados por gestos e caretas. Já os chimpanzés têm se mostrado melhores, de modo geral, em aprender a linguagem humana do que os pesquisadores humanos em dominar a comunicação dos macacos - um resultado notavelmente antevisto por Montaigne, quando disse que 'os macacos bem podem nos considerar animais, assim como nós os consideramos'. Num grau modesto, a história do Dr. Doolittle bem que poderia se tornar realidade, mas, pelas pesquisas recentes, é muito mais provável que o próprio Dr. Doolittle seja um animal não humano.

Armesto mostra que os termos com os quais os modernos paleoantropólogos debatem a natureza dos neandertais são assustadoramente semelhantes aos dos debates do século 19 sobre os negros, quando povos pigmeus chegaram a ser definidos como formas degeneradas dos babuínos. Tudo conduziu a justificar racialmente a vitimização de vários grupos na história. Abandonamos o olhar racista do passado, mas resvalamos noutro tipo de sutil preconceito: o 'especieísmo' -, a idéia de que a espécie humana seria única e superior, arrogantemente colocada no pináculo da escala da vida. História de chimpanzés como Lucy ou Washoe mostram que tais criaturas escolhiam a quietude para preservar a liberdade e abstinham-se da fala para conservar a inocência. As experiências com as duas tornaram realidade a conhecida fábula chinesa dos macacos sábios, os quais, graças à sua prudência, não escutam, não vêem e, portanto, não verbalizam o mal. Emoções e moralidades especificamente humanas? Eis aí mais uma das muitas certezas atenuadas. Os últimos anos de vida de Washoe em cativeiro foram abalados pela tragédia da morte de seu bebê. E cada vez que alguém se aproximava da sua jaula, ela exclamava, através de sinais: 'Traga o bebê, traga o bebê!'

Sem resvalar no sectarismo, Armesto ilustra como o lobby dos direitos dos animais tem obtido um sucesso extraordinário em nos desafiar a identificar aquilo - se é que existe algo assim - que nos dá direito a um tratamento privilegiado em relação aos outros animais. O fato é que, para além da diversidade humana, existe uma fronteira indistinta entre os reinos humano e animal - que outrora se imaginava serem mutuamente excludentes. Afinal, o que diferencia a espécie humana das outras? A resposta é irônica, mas incisiva: a nossa espécie só é única no seu desejo de se diferenciar de todas as outras.

Num capítulo fascinante, Armesto ainda examina o conceito de humanidade nos cenários de futuros pós-humanos, desenhados pelas promessas (ou ameaças) da genética e da robótica. Para além de suas aplicações na medicina, a pesquisa genética tem nos oferecido, cada vez mais, um modo de medir os candidatos a membros de nossa espécie e, simultaneamente, de calibrar quanto temos em comum com todas as outras. E o estudo do genoma humano promete ou ameaça tornar realidade o projeto do Dr. Moreau: híbridos com qualidades humanas enxertados em receptores não-humanos. O problema não é só o de classificar tais criaturas, mas questionar: como é que o próprio fato de serem concebíveis afeta o conceito que temos de nós mesmos? Um livro brilhante e provocador, que deixa longe o debate entre criacionistas e darwinistas, conduzindo a polêmica a um novo e surpreendente patamar.

Enfim, ser humano nunca pareceu tão bestial. Em face dos últimos avanços, a idéia de que os humanos são os únicos seres racionais, intelectuais, espirituais, autoconscientes, criativos, morais ou divinos - virou mais um artigo de fé, um mito silencioso ao qual, contra todas as evidências, nos apegamos. Mas também sabemos quanto é impossível voltar ao zero de nossa condição. Armesto reconhece que ainda é possível buscar o potencial humano para transcender nossos fracassos e defeitos e resgatar aquela preciosa auto-insatisfação, que é um dos nossos bens mais preciosos. E afinal, já que não dá mais mesmo para descartar o mito da 'espécie humana', será que não podemos tentar viver à altura dele?

Elias Thomé Saliba é historiador, professor da USP e autor dos livros As Utopias Românticas e Raízes do Riso

Então Você Pensa Que É Humano?, Felipe Fernandez-Armesto, Companhia das Letras, 184 págs., R$ 37,50

[O Estado de São Paulo, 08/04/2007]

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