Que França é esta?

Campanha para presidente escancara um país ansioso e difícil de enquadrar

Luiz Felipe de Alencastro

Quaisquer que sejam os resultados das presidenciais no primeiro e no segundo turno, as eleições de 2007 marcam o fim de uma época na história contemporânea da França. Diversos fatores explicam a singularidade da situação atual.
Pela primeira vez, desde 1965, quando ocorreu a primeira eleição presidencial direta, com a vitória do general De Gaulle, já presidente eleito pelo voto indireto, nenhum dos atuais candidatos ocupou ou ocupa o cargo de presidente ou de primeiro-ministro.
No regime semipresidencialista, o posto de primeiro-ministro funciona como uma rampa de lançamento de candidaturas à Presidência. Desse modo, o fato de que nenhum dos três ex-primeiros ministros partidários de Chirac (Juppé, Raffarin e Villepin) apareça - no final de dois mandatos do atual presidente - como candidato à sua sucessão ilustra o esgotamento do gaullismo. Na oposição, a passagem para o segundo plano de ex-primeiros-ministros (Fabius, Roccard e Jospin) e ex-ministros potencialmente presidenciáveis revela o colapso das alianças de esquerda que levaram o socialista François Mitterrand à presidência (1981 e 1988) e Jospin ao posto de primeiro-ministro (1997).
Reflexo da exaustão partidária, a campanha está sendo liderada por candidatos que obtiveram sua investidura contra as direções de seus respectivos partidos. Tanto Nicolas Sarkozy quanto Ségolène Royal tiveram que derrotar rivais poderosos e dobrar resistências no seu próprio campo antes de se afirmarem como presidenciáveis. As repercussões desses enfrentamentos espoucaram na campanha. Figurões do PS continuaram dando rasteiras em Ségolène, enquanto Chirac e Villepin apoiaram Sarkozy apenas com a ponta dos lábios. Mesmo François Bayrou, representante do campo centrista, fez uma campanha fora dos parâmetros de seu partido (a UDF), até então aliado tradicional da direita. Seu sucesso nas sondagens deve-se, justamente, ao abandono do alinhamento automático com os gaullistas e a seus apelos ao eleitorado de esquerda. Por esse motivo, o ex-presidente Giscard d'Estaing, fundador da UDF e aliado tradicional dos gaullistas, renegou a candidatura Bayrou e manifestou seu apoio a Sarkozy. Nessa ordem de idéias, o avanço de Bayrou nas pesquisas - um dos fatos mais importantes da campanha - configura-se como causa e efeito da indecisão dos eleitores e das incertezas que caracterizam a eleição.
Por certo, o país continua atravessado por correntes políticas e ideológicas bem enraizadas. Como em todas as sete presidenciais realizadas desde 1965, nenhum candidato presumiu que pudesse eleger-se logo no primeiro turno nessa campanha. Mas o fato é que o atual quadro partidário parece desconectado de boa parte das preocupações do eleitorado. Assim, as eleições também servirão para consolidar novas lideranças e definir outras correlações de forças na política francesa.
Alguns elementos podem ser alinhados para explicar o porquê da recomposição política e partidária que se anuncia. Há, evidentemente, uma alternância de gerações que projeta em primeiro plano três presidenciáveis beirando os 50 anos e joga para escanteio lideranças mais antigas e estreitamente incorporadas aos aparelhos partidários, como Villepin ou Jospin. Tal evolução constitui, em si mesma, um fator importante num país marcado pela longevidade de seus dirigentes e cujo presidente obteve seu primeiro cargo ministerial há 40 anos. Mais próximos da média de idade do eleitorado e sem experiência na chefia do governo, os presidenciáveis suscitam ataques mais impregnados de emotividade do que de ideologia. Daí as críticas renitentes feitas ao caráter supostamente “agitado” (“ansiógeno”, gerador de ansiedade) de Sarkozy, a cisma com o alegado jeito “gafento” de Ségolène e a “vacuidade” imputada às propostas de Bayrou.
Outro fator que pesa sobre o escrutínio é a mudança do campo de inserção da França no mundo. Nas últimas décadas, o país registrou uma série de recuos que reduziram sua influência internacional. A perda das colônias na Indochina e na África deixou seqüelas duráveis. Em particular, a guerra da Argélia (1954-1962) agravou o contencioso com os árabes e com a generalidade dos muçulmanos que constituem, atualmente, a segunda religião da França. Durante algum tempo, imaginou-se que as relações clientelísticas entre Paris e suas ex-colônias da África ocidental podiam manter o prestígio do país na região. Mas a recorrência de conflitos políticos e militares mostrou os limites da diplomacia francesa nessa parte do mundo.
Num movimento paralelo - mas de conseqüências mais graves porque concerne ao futuro e não ao passado da França -, Paris também começou a perder espaço na União Européia (UE). Fundadora e principal motor, junto com a Alemanha, da construção européia, a França conheceu, na virada do século, uma seqüência de desentendimentos com a UE. O ponto alto desses desencontros se sucedeu em 2005. Naquele ano, contra a orientação dos grandes partidos de direita e de esquerda, contra a opinião dos principais jornais do país, o eleitorado votou majoritariamente pelo “não” no referendo sobre o estabelecimento de uma Constituição européia.
Esse resultado negativo do referendo paralisou as instituições européias e, no plano interno, desarticulou as lideranças dos partidos políticos. No campo conservador, os dirigentes gaullistas, a começar pelo presidente Chirac, e centristas sentiram-se desautorizados pelos eleitores. Duramente atingido pela derrota de seu candidato, Lionel Jospin, no primeiro turno das presidenciais de 2002, o Partido Socialista (PS) sofreu outro trauma com a vitória do “não” e as divisões internas geradas pela campanha do referendo.
Até então, o PS seguira uma marcha ascendente no campo da esquerda francesa. No final dos anos 1970, tirando as lições de suas duas derrotas nas eleições presidenciais, François Mitterrand agregou setores de extrema-esquerda e da “nova esquerda” (ecologistas, feministas, etc.) no PS. Tal estratégia, que contava ainda com o suporte do eleitorado consistente do Partido Comunista, permitiu a vitória de Mitterrand em 1981 e 1988. Parte das idéias e das reivindicações formuladas pelo movimento de maio de 1968 chegou às reuniões governamentais nesse período.
No entanto, o declínio contínuo do PC francês começou a privar os socialistas de uma reserva importante de votos para os segundos turnos das eleições parlamentares e presidenciais. Depois de perder a presidencial de 1995, Jospin logrou formar uma aliança eleitoral viável, apoiando-se no Partido Verde e no que restava do PCF para vencer as eleições parlamentares de 1997.
Contudo, seu governo não conseguiu estancar o enfraquecimento da esquerda dita “de governo” (por oposição à esquerda dita “contestação”, formada pelos partidos e candidatos de extrema-esquerda). O PCF continuou perdendo força eleitoral - na atual campanha sua candidata obtém apenas cerca de 3% dos votos nas sondagens -, enquanto o Partido Verde estiolava-se em lutas internas. Desse ponto de vista, o PS ainda não saiu do impasse estratégico surgido na esquerda “de governo” com o declínio do PCF. No meio tempo surgiram novos problemas com os quais nem a esquerda, nem a direita conseguem lidar adequadamente. O crescimento relativamente medíocre da economia francesa nos últimos anos, somado ao aumento de desemprego e ao movimento de dessindicalização, gerou tensões sociais nas subúrbios da grandes cidades.
Como se sabe, existe na França, e mais precisamente em Paris, uma tradição de protestos de massa que às vezes tomam um caráter quase insurrecional. Tais eventos, cuja expressão mais recente foi a greve estudantil de maio de 2006, geralmente mobilizados por movimentos estudantis e organizações de extrema-esquerda, incorporam-se em seguida a práticas consensuais e absorvem-se nas instituições. Todavia, os levantes dos subúrbios (banlieues), em outubro e novembro de 2005, não corresponderam a esse tipo tradicional de protestos de massa. Desorganizadas, sem lideranças nem plataformas políticas, incendiando por vezes escolas e pondo em perigo vidas humanas, as manifestações de 2005 revelaram uma grave crise social que escapava ao enquadramento sindical e às referências politico-partidárias.
Diante dos desafios internos e externos que mergulham o país numa inédita perplexidade, duas candidaturas irão provavelmente enfrentar-se no segundo turno.
Articulada contra os dirigentes do PS, a candidatura de Ségolène tenta resolver o impasse estratégico da esquerda “de governo”, operando uma saída para o centro que combina as reivindicações tradicionais de esquerda (direitos trabalhistas, defesa dos serviços públicos e do Estado de Bem Estar Social) à temática mais centrista e conservadora (ênfase no sentimento patriótico, nos valores familiais e na paz social).
Nicolas Sarkozy propõe soluções que também são heterodoxas no seu próprio campo político. Rompendo com a tradição gaullista encarnada por Chirac, que desenvolve uma diplomacia independente e por vezes confrontativa com os Estados Unidos, Sarkozy retoma a política “atlantista” dos centristas e propõe-se a estabelecer uma aliança constante com Washington. No plano nacional, ele defende uma liberalização da economia e a diminuição do peso do Estado francês.
Ao fim e ao cabo, haverá um novo embate político na França. Do lado da esquerda, a primeira mulher com chance de chegar à presidência, a qual, em nome do realismo, afasta-se do militantismo herdado de maio de 1968 e orienta sua plataforma para o centro do espectro político. No campo conservador, surge pela primeira vez no pós-guerra um líder verdadeiramente de direita, decidido a abandonar o gaullismo social para chegar mais perto do neoliberalismo. Será mesmo o fim de uma época!

SEXTA, 20 DE ABRIL: A dúvida de Ségolène
Na antevéspera da eleição presidencial, dois dos três principais jornais da França, Le Monde e Libération, se unem em editoriais a favor da candidata de esquerda Ségolène Royal, do Partido Socialista, que corre o risco de não chegar ao segundo turno no pleito.


Luiz Felipe de Alencastro, professor de História do Brasil na Universidade de Paris Sorbonne

[O Estado de São Paulo, 22/04/2007]

0 Responses