Aiatolás ainda não resolveram os problemas que provocaram a revolta no Irã

"Cheguei a ver o rosto de Khomeini na lua", lembra, hoje incrédulo, A. H., que, como jovem oficial do exército do xá da Pérsia, participou da revolução que o derrubou em 1979. "Fui um revolucionário", admite com uma mescla de orgulho e desencanto. Como ele, milhões de iranianos seguiram o chamado de Khomeini no final de 1978 e início de 1979, para sair à rua e tirar do poder Mohamed Reza Pahlevi. Trinta anos depois, aquela geração continua governando, mas a República Islâmica ainda não resolveu alguns dos problemas provocados por um movimento revolucionário sem precedentes no mundo muçulmano.

"Éramos jovens; não analisávamos as coisas. Nos limitávamos a repetir os slogans e acreditávamos de pés juntos nas palavras do imã", afirma esse homem de 55 anos que fez a transição para as novas forças armadas e lutou durante os oito anos de guerra com o Iraque. Hoje aposentado, perdeu aquele entusiasmo. "Pouco a pouco, meus companheiros e eu percebemos que haviam nos enganado", admite, pesando suas palavras.

Poucos reconhecem em público que a revolução foi um erro. Uma revisão não só representa questionar o mito em que o regime transformou o momento de fundação da República Islâmica, como as próprias trajetórias de vida. Tratou-se de um levante popular que contou com o apoio de todo o espectro político. A oposição ao xá incluiu desde marxistas até partidários da monarquia constitucional, passando por intelectuais laicos. A figura de Khomeini serviu de aglutinador e o clero xiita atuou como amplificador ao levar a mensagem para as mesquitas das aldeias mais remotas.

Quaisquer que tenham sido as conquistas, porém, restam muitos assuntos pendentes. A própria chegada ao poder de Mahmud Ahmadinejad em 2005 se fez sobre uma plataforma que pedia a volta aos princípios revolucionários, dando a entender que em certa medida o Irã havia se afastado deles. Mas quais foram os pilares sobre os quais se levantou esse novo modelo que propunha combinar islamismo e democracia?

No âmbito interno, Khomeini prometeu um bom governo e uma sociedade justa, de acordo com a xariá ou lei islâmica. No externo, independência e soberania. Até que ponto se alcançaram esses objetivos é questão de debate no próprio Irã.

"Em termos econômicos os resultados não foram tão bons", admite Saeed Leylaz. Esse economista crítico cita como exemplo que o Produto Interno Bruto per capita não alcança o de 1976 a preços atuais, ou que o Irã está exportando o mesmo número de barris de petróleo que então (2,2 milhões diários). Mas salienta que a brecha social hoje é menor que há 30 anos, sobretudo entre o campo e a cidade. "Nesse sentido, o principal objetivo da revolução foi um êxito", afirma.

Para Leylaz, a maior conquista de todas foi sem dúvida transformar o Irã de uma sociedade rural em urbana. "A República Islâmica nos tornou cidadãos", afirma. Paradoxalmente, esse era o objetivo que se propunha o xá com suas medidas modernizadoras. No entanto, seu abandono do campo e sua revolução de cima para baixo, com a proibição do véu e outros costumes importados, produziram a reação oposta. "A sociedade rural era tradicional demais para isso", admite o analista.

Outro reformista destacado, Mohamed Atrianfar, corrobora essa idéia. "Melhoraram todos os indicadores de desenvolvimento, o nível de bem-estar, de educação, de saúde e inclusive o padrão de consumo", defende, antes de lembrar que seu país foi obrigado a enfrentar oito anos de guerra com o Iraque (1980-88) que retardaram esses avanços.

Na rua, muitos iranianos concordam, mas lamentam ter perdido no caminho o que o diretor de uma sucursal de banco resume como "alegria de viver". Tudo adquiriu um tom cinza neste país cujos poetas sempre enalteceram os prazeres da vida, o amor, as mulheres e o vinho. Mas os iranianos não estão para brincadeiras. Suas principais preocupações são o desemprego e a pobreza, segundo uma pesquisa realizada pela BBC por ocasião do lançamento de seu serviço na língua farsi no mês passado. Foi o que manifestaram 45% dos pesquisados. Só 1% salientou a falta de democracia ou a necessidade de reformas políticas.

A promessa de uma justiça distributiva fica duvidosa diante do fato de que 20% da população controlam 80% da riqueza do país. O agravo é ainda maior quando se considera que o Irã é o quarto exportador de petróleo do mundo. Além do desperdício de que os reformistas acusam Ahmadinejad, Leylaz fala de um problema estrutural que se arrasta desde antes da revolução: a dependência do petróleo. "Os petrodólares permitiram que 70% da economia estejam nas mãos do setor público, esqueceu-se o setor privado e como resultado nossa produtividade é mínima", explica.

Por isso o economista, que era um estudante de 16 anos quando eclodiu a revolução e participou muito ativamente dela, afirma que as transformações foram mais sociais e culturais que econômicas. "Foi uma grande revolução", resume com uma centelha de emoção nos olhos. Essa ternura ao recordar aqueles meses de protestos é algo que se repete em todos os entrevistados, inclusive entre os que hoje se mostram mais críticos desse momento histórico.

"Sem dúvida no campo cultural e científico fizemos avanços notáveis, sobretudo levando em conta que temos uma população muito jovem", indica por sua vez Atrianfar. Dois terços dos 70 milhões de iranianos têm menos de 30 anos e o país conta com 20 milhões de estudantes e 2,7 milhões de universitários. Ele também estava na universidade quando estourou a revolução e uniu-se à luta com a utopia de alcançar a democracia.

E se conseguiu? "Temos as estruturas necessárias, mas não podemos mostrar conquistas exemplares, e à vista está o atual governo", afirma. Atrianfar atribui a falta de entusiasmo da população na defesa dos valores democráticos ao controle estatal da economia. "Como não pagam impostos, os cidadãos não valorizam seu voto como é devido. É uma etapa que deve ser superada, mas não o conseguiremos enquanto não se corrigir o sistema econômico." Mesmo assim, sua avaliação global da revolução também é positiva. Esse engenheiro transformado em jornalista pela via de seu ativismo político se vê obrigado a admitir, no entanto, que "as liberdades como a de imprensa sofreram altos e baixos desde 1979". Na opinião dele, nesse tempo só houve dois períodos aceitáveis: entre 1989 e 1990, depois do fim da guerra contra o Iraque, e entre 1997 e 1998, depois da eleição de Khatami.

"Embora a sociedade tenha evoluído muito, a visão dos dirigentes em relação à imprensa não é diferente de antes da revolução", explica com a experiência de 2006, quando fecharam o "Sharg", jornal que ele dirigia. "A liberdade de imprensa não pode ficar às custas dos governos; enquanto não conseguirmos isso não ocorrerão as melhoras que esperam os defensores dos direitos humanos e as organizações internacionais", adverte. É nesse ponto que ficam mais claras as diferenças entre conservadores e reformistas.

Em política externa os dois grupos costumam concordar que a revolução permitiu recuperar a soberania e a independência. Do Ocidente, mas sobretudo dos EUA, cujo apoio ao xá só fez confirmar para os iranianos a atitude colonial de um país que haviam admirado até que apoiou o golpe de estado de 1953. Daí que a expressão desse objetivo se traduzisse em um antiamericanismo radical que encheu o país de pichações com a inscrição "Morte aos EUA". O slogan continua sendo repetido mecanicamente em cada grande acontecimento político, mas de tanto usá-lo se esvaziou de conteúdo.

O preço dessa obsessão pela independência foi o isolamento internacional em que se encontra o país hoje, por mais que seus dirigentes comprem com os lucros do petróleo amizades improváveis com regimes nas antípodas ideológicas, como a Cuba de Castro, a Nicarágua de Ortega ou a Bolívia de Morales. Mas nem sequer a ausência de verdadeiros aliados entre seus vizinhos promoveu um consenso sobre como se reintegrar à comunidade de nações e recuperar seu lugar de líder regional. (Claro que a desastrosa política de Bush no Oriente Médio os ajudou nos últimos anos a cavalgar sobre uma onda de antiamericanismo que reduz essa urgência.)

Em um recente artigo publicado na revista acadêmica americana "Current History", Mahmud Sariolghalam, professor de relações internacionais na Universidade Shaid Beheshti, aponta para um problema de identidade não resolvido. "O Irã deseja ser um estado normal que exerce as atividades correntes no mundo, ao mesmo tempo que se empenha em ser revolucionário com uma retórica desafiadora", descreve o acadêmico.

A alternância entre idealismo revolucionário e realismo político foi uma constante nessas três décadas que torna difícil para os demais países saber como tratar com a República Islâmica. Ainda hoje, apesar de seu comportamento regional demonstrar que o Irã favorece o "status quo", seu apoio aos grupos radicais palestinos, sua oposição às negociações de paz com Israel e seu programa nuclear despertam enormes receios.

Mas além da retórica exaltada de alguns de seus dirigentes há observadores que detectam a insegurança de um regime que não se sente plenamente reconhecido. Daí que, por ação ou omissão, o restabelecimento de relações diplomáticas com Washington paira sobre o resto das questões e constitui um elemento chave para intuir como o Irã vai evoluir nos próximos 30 anos.

Enquanto boa parte da sociedade opina com a Nobel Shirín Ebadí, que "não há diferença que não possa se resolver através de um diálogo franco", os setores mais recalcitrantes hesitam. A mudança não pode ser feita sobre a estrutura atual. Renunciar ao inimigo histórico deixaria a revolução sem um de seus pilares. Por enquanto, opor-se às políticas arrogantes do Grande Satã e de Israel constitui uma credencial de nacionalismo. Embora um novo clima internacional (que inclua a renúncia dos EUA a promover uma mudança de regime) e o próprio impulso das novas gerações acabarão, mais cedo ou mais tarde, devolvendo o Irã ao lugar que merece.

Ángeles Espinosa - Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

[El Pais, 11/02/2009]
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