Uma década depois: um menino fenomenal e uma criança trabalhadora

Rob Hughes

Ronaldo, o homem que marcou mais gols em Copas do Mundo do que qualquer outro na história, está trabalhando duro, suando o excesso de peso em busca de uma última volta ao estrelato.
Ele tem 32 anos e sonha com a África do Sul em 2010. Apesar de tecnicamente desempregado, está treinando no Flamengo, em sua cidade natal do Rio de Janeiro.
Seu contrato com a Nike extingue qualquer idéia de pobreza, mas Ronaldo quer, desesperadamente, jogar no mais alto nível novamente.
Tahira Bibi, uma punjab que pode ter costurado as bolas dos jogos brasileiros nas quatro Copas do Mundo das quais Ronaldo participou, ainda está tentando ganhar vida.
A história dela é de sucesso comparativo. Conheci Tahira quando era criança, costurando diligente e incessantemente painéis que se tornavam bolas da Adidas pelo equivalente de US$ 0,33 (cerca de R$ 0,66) por bola. Costura por costura, painel por painel, ela e sua mãe Haleema sustentavam a família que incluía dois meninos e uma menina. O pai tinha se enforcado em uma árvore perto de casa.
Foi em 1998 o verão do estranho comportamento de Ronaldo, quando ele sofreu convulsões às vésperas da final da Copa contra a França em Paris. Em vez dele, Zinedine Zidane tornou-se o astro, apesar de o fenômeno, como os brasileiros conhecem o Ronaldo, voltar a eclipsar todos os outros e lançar o Brasil de volta ao título em 2002.
Seu trauma agora está no joelho esquerdo, onde um ligamento rompeu-se no dia 13 de fevereiro, junto com seu orgulho após seu último time profissional, o AC Milan, pagar sua saída no verão. Ele diz aos repórteres que vai, como antes, provar que os críticos estão errados e recuperar-se de sua mais recente lesão que ameaça sua carreira.
Ronaldo, de certa forma, ainda é uma criança, ainda convencido de que pode reconquistar a forma de sua juventude comparativa, ainda seguro de que tem os instrumentos para ganhar seu próximo milhão e ainda desafia os que dizem que ele veio da pobreza e fará um círculo completo.
Ele tem que reconquistar a rapidez especial de corpo e o instinto que lhe conferiram 62 gols em 97 jogos para o Brasil e 319 gols em 452 jogos nos maiores times do Brasil, Holanda, Espanha e Itália. Ele começou a treinar no Flamengo na semana passada, e seu progresso interessa ao Manchester City, ao Paris Saint-Germain e a um time da série A italiana que ele não quer mencionar.
Enquanto isso, Tahira Bibi ultrapassou suas primeiras dificuldades. Ela amadureceu e deixou de ser uma menina de 11 anos de idade com uma agulha de costura na mão e conseguiu chegar à sexta série, graças ao programa dirigido pelo Escritório Trabalhista Internacional (ILO).
Os agentes do ILO voltaram à aldeia de Tahira na semana passada e descobriram que estava casada, com dois filhos e que sua mãe agora a ajuda.
O esforço infindável do ILO contra o trabalho infantil, por meio de projetos como os que giram em torno das fábricas de costura de Sialkot, sempre trabalhou com extremos. Uma criança costurando até que seus dedos e olhos fiquem ameaçados é persuadida a voltar para a sala de aula; os fabricantes que exploram seu trabalho barato enriquecem astros de futebol com patrocínios.
A indústria de futebol não gosta dessa conotação, tampouco os agentes de Michael Jordan ou de Tiger Woods, que, como Ronaldo, são homens da Nike, assim como David Beckham é um ícone da Adidas.
A crise financeira que todos nós confrontamos afetará todos os lados dessa equação. Juan Somavia, diretor-geral da ILO, disse em Genebra na segunda-feira que o número de desempregados no mundo pode subir de 190 milhões em 2007 para 210 milhões no final de 2009. Ele estima que aqueles que subsistem com menos de US$ 1 por dia podem chegar a 40 milhões, e os que ganham US$ 2 por dia a mais de 100 milhões.
Nesse ambiente, o esporte certamente terá que encolher parte de sua grandeza. Os jogos da Liga de Campeões Européia, envolvendo 32 clubes, têm implicações financeiras que chegam a US$ 1 bilhão (cerca de R$ 2 bilhões).
O atual campeão, o Manchester United, tem um empréstimo bancário maior que essa soma, mas arrecadou cerca de US$ 57 milhões (R$ 104 milhões) só da Liga de Campeões na última temporada. No total, 13 clubes da Inglaterra, Itália, Espanha, Alemanha tiraram US$ 25 milhões (cerca de R$ 50 milhões) daquele torneio.
Alguns deles dizem que não estão passando por qualquer tipo de contração no atual ano financeiro. Eles já gastaram os lucros antecipados desta temporada e, como os jogadores de renome que empregam, cada um desses clubes de elite tem mais de um pé firmemente enraizado no mercado de fabricantes de tênis.
A Nike vai substituir Ronaldo quando ele finalmente pendurar as chuteiras. Beckham vendeu 300 mil camisetas da Adidas, mas fez menos nesta temporada, com a queda de seu clube, o L.A. Galaxy, e presumivelmente venderá menos ainda quando seus talentos não forem tão rentáveis.
A indústria que torna os jogadores ricos além do que poderiam imaginar em suas infâncias os sustenta quando passam do seu ápice.
Enquanto isso, a Sialkot sozinha produziu mais de 40 milhões de bolas de futebol, valendo mais de US$ 250 milhões (cerca de R$ 500 bilhões) no ano passado, e as bolas não vão parar de rolar apenas por causa do desaquecimento econômico.
Na última década, enquanto Ronaldo esteve no topo, Tahira garantiu seu lugar no mundo.
O jogador teve seus relacionamentos e casamento rompidos sob os holofotes da celebridade. Tahira aparentemente está contente com sua situação familiar melhorada.
Quando a visitei, ela estava serena. Ronaldo nunca esteve. O sucesso foi temporário e agora é uma dor.
"Estou trabalhando duro para retomar minha forma antiga. Eu poderia ficar em casa, jogar com amigos, mas eu adoro futebol", disse ele.
"Quando fico exausto do treinamento, sempre penso que alguém vai pagar por todo este esforço. Acho que a defesa vai pagar."

Tradução: Deborah Weinberg
[International Herald Tribune. 22/10/2008]
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