"A mudança chegou aos Estados Unidos"?

YES!

O mundo respirou história nesta semana

Renato Janine Ribeiro

A MUDANÇA chegou aos Estados Unidos, disse Obama, na primeira frase de efeito de um discurso repleto de expressões bem escolhidas para entusiasmar o povo.
Quer dizer, a mudança veio de fora.
Quer dizer, os Estados Unidos estavam atrasados. Bush representava o atraso. A Europa, outros países, inclusive o nosso, escolheram a mudança antes deles. No século 19, a liberdade estendia seus braços para acolher no porto de Nova York os mal-amados do velho mundo. A "América" era pioneira. Hoje, com a eleição de seu primeiro presidente negro, os Estados Unidos recebem uma mudança cujos ventos já sopravam em outras partes.
Mais para o fim do discurso, porém, Obama retoma a crença norte-americana de que seu país é líder do mundo, um "povo eleito" moderno: "Esse é o verdadeiro talento da América -a América é capaz de mudar". Sim, a mudança tardou, mas, quando chega lá, o mundo todo muda. A mudança começou em outros países, mas é quando vence na "América" que ela ganha escala e se torna mundial.
Bush, após o 11 de Setembro, para vencer a guerra "contra o terror", rogou a seu povo que consumisse mais, não menos. O usual nas guerras é pedir poupança e sacrifícios, canhões em vez de manteiga. Bush prometeu um Eldorado, só que feito de consumo, e não de valores. Como disse Michael Mandelbaum, seu governo foi um caso único de transferência de riqueza do futuro para o presente. Bush negou tudo o que é positivo nos próprios valores conservadores -austeridade, comedimento, poupança. Dilapidou dinheiro, sangue, fé e esperança. Gastou o futuro. Hipotecou até as vidas de quem ainda não nasceu.
Não sabemos como serão os próximos anos. Obama não prometeu maravilhas. Alertou que haverá atrasos e fracassos. Implicitamente, pregou a poupança, não a dilapidação. E foi depois dessa advertência que desenvolveu sua utopia, sua esperança num país de valores.
Há algo espantoso nisso. Com o avanço da campanha, a oposição entre valores da mudança e da esperança e valores da conservação e do medo foi se convertendo numa oposição entre o candidato dos valores e aquele que herdava a falta de valores.
McCain era o único candidato possível para o Partido Republicano justamente por ser o menos bushista dos republicanos. Mesmo assim, não conseguiu encarnar valores em que, seguramente, acredita. Não convenceu.
É curioso que o partido mais liberal, o dos nova-iorquinos afrescalhados que tomam "capuccino" (que George W. Bush condenou quatro anos atrás, porque não seria o da "verdadeira América"), acabasse sendo o único que sustenta valores. Porque o termo "valores" soa, com freqüência, conservador. Mas esse conservadorismo básico, que representa um compromisso com o país, com sua história, nenhum presidente dos Estados Unidos pode dispensar.
A diferença é que justamente o novo, o negro, o jovem, o candidato da internet (não a internet dos negócios, mas a da cidadania), tenha sido quem expressou os valores -e não o herói de guerra, o prisioneiro torturado no Vietnã, a derradeira reserva moral do Partido Republicano.
O simbolismo dessa vitória é duplo.
Está no fato de que os progressistas conquistaram o legado de uma preocupação ética que muitas vezes foi conservadora. As repercussões disso para a ética pública serão importantes. E também está na esperança despertada, na mobilização dos jovens, dos que votaram pela primeira vez, dos excluídos das urnas. Já em 2004 o governador Howard Dean mobilizara os jovens e usara a internet -mas não conseguiu a indicação democrata.
Dessa vez, a estratégia das "grassroots", da base mobilizada, deu certo.
Ora, quem se mexeu pela mudança não ficará parado em casa. Vai continuar participando. Vai exigir de Obama que ele aja. Não é casual a referência do novo presidente a Martin Luther King, e de seus eleitores à grande marcha dos negros em Washington, há 40 anos. É como se, finalmente, eles chegassem lá.
As pessoas respiraram a história.
Podem até se enganar, mas essa sensação se tem poucas vezes na vida -quando se tem. E ela estava presente nos Estados Unidos -e no mundo- nesta semana. Respiremos fundo. Ela pode não durar. Mas, também, pode.

RENATO JANINE RIBEIRO, 58, é professor de ética e filosofia política na USP e autor de "A Ética na Política", entre outras obras.

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NO!

O dia seguinte não é o bravo mundo novo

José Flávio Sombra Saraiva

A VITÓRIA da mudança foi eficaz bordão eleitoral e eficiente jargão midiático, com impacto avassalador sobre a insegura sociedade norte-americana. A confirmação da vitória acachapante de Obama não pode ser entendida sem a psicologia social do desespero, mais do que do altruísmo político.
Para os cidadãos comuns daquele país, crédulos nos velhos valores dos que fizeram nascer a pátria de Jefferson, embora dependentes hoje da exuberância artificial criada no início do século 21 pela obsessão do ganho fácil, a eleição de Obama veio a calhar.
Emerge a esperança de um bravo mundo novo e de uma nova página da história. Chega o salvador messiânico para restaurar o desígnio americano.
Algo semelhante aconteceu com Roosevelt no século 20.
Tal vetor, que se repete na história norte-americana, foi determinante na eleição de Obama ao assento mais importante da gestão do planeta. As noções de destino e saga desbravadora, em momentos difíceis, presidem a construção da nação de Monroe desde os inícios do século 19.
Mas agora a história é outra. Poucas variáveis sugerem que poderão ocorrer, em curto e médio prazo, mudanças substantivas nos EUA no plano interno e em sua projeção internacional. As determinações estruturais internas e externas à economia, à sociedade e à cultura política norte-americana entravam a vitória da mudança.
Em primeiro lugar, a margem de manobra do presidente que emerge é baixa ante a gigantesca expectativa criada ao seu redor. Obama virou panacéia na mídia norte-americana -também no Brasil. Mas o homem não tem os meios nem a liberdade de ação política de Roosevelt.
Como distinguir o homem Obama e seu poder real dos que o fizeram tão familiar e poderoso? A lista de demandas é incompatível com os meios disponíveis no momento para satisfazer a todos que construíram o totem.
As pressões sindicais, dos usuários de um sistema de saúde caótico e caro, bem como de forças poderosas, como as do complexo militar-tecnológico, sem falar de setores sociais marginais, como os afro-americanos, entre outros, tornarão sua administração difícil. Obama ofereceu uma palavra generosa. Agora, terá que oferecer fatos e resultados.
Em segundo lugar, não há tábua de salvação para uma economia que se fez gastadora depois de uma história bissecular de poupança. A capacidade de gerar riqueza real nova é modesta.
A elevação do capitalismo industrial produtivo na Ásia, ante o fenecer das engenharias dinâmicas do velho capitalismo norte-americano, é um desafio para a retomada da produção, da produtividade e do emprego. Eles lá se fizeram preguiçosos, à espera da especulação proveitosa. Terá Obama a força convocatória e os meios para lançar as bases de um novo capitalismo industrial naquele país?
Em terceiro lugar, não há brechas adicionais no plano internacional disponíveis para Obama. Terá que lidar com o recrudescimento do protecionismo comercial dos seus concidadãos do Partido Democrata, ávidos por manter o status de potência econômica. Há pouca garantia de que se possa avançar a Rodada Doha na administração Obama a partir de janeiro de 2009. É esse um capítulo que exigirá atenção redobrada do governo Lula e dos países de competitividade agrícola superior à dos EUA.
A complexa tomada de decisão das políticas comerciais e externa dos Estados Unidos é outro capítulo de distúrbio iminente para o novo habitante do Salão Oval da Casa Branca. Não é lá que se decide a política comercial, que será entregue a uma Câmara protecionista e ávida pela reinserção soberana dos Estados Unidos. Nem o Senado, por mais democrata que possa ser, acomodará de forma automática as iniciativas do presidente eleito.
Em outras palavras, os espetáculos patrocinados em várias partes do planeta, a envolver a própria África nesse jogo, de júbilo diante da vitória do salvador, cederão em breve a análises mais calibradas acerca das possibilidades. Sonhar é bom, liberta, reduz o medo. Mas também é arrojado pensar que o dia seguinte não é o bravo mundo novo, nem Obama é seu rei.

JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA, 48, doutor em história pela Universidade de Birmingham (Inglaterra), é professor do Instituto de Relações Internacionais da UnB (Universidade de Brasília). É autor, entre outras obras, de "Relações Internacionais - Dois Séculos de História".

[Folha de São Paulo, 08/11/2008]
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