Por que a Argentina deixou Maradona experimentar como técnico

Simon Kuper

É claro que a Argentina não deveria ter deixado Maradona ser o técnico de sua seleção de futebol. Ele não vai durar muito na função. Ele já tem problemas demais para sair da cama, quanto mais para comparecer ao jogo contra a Escócia em Glasgow no dia 19 de novembro. Gordo, fumante e ex-viciado em cocaína com um coração geriátrico, poderá não participar nem mesmo da próxima Copa do Mundo.

Mas tudo isso não tem nada a ver. Uma seleção de futebol não existe apenas para ganhar. Ela também representa a nação. E ninguém no futebol encarna melhor seu país e seus torcedores do que Maradona.

Isso faz parte do gênio dele. Eis algumas cenas da vida de Maradona - e de dois filmes recentes sobre ele - que explicam por que a Argentina teve de escolhê-lo.

Cidade do México, 1986: Depois de dois gols lendários que tiraram a Inglaterra da Copa do Mundo, Maradona e seus companheiros fazem piada nos vestiários. Jorge Valdano o provoca: enquanto Maradona estava driblando seis jogadores ingleses, Valdano estava correndo do seu lado pedindo a bola. Por que Maradona não fez um passe?

Sim, diz Maradona, eu estava olhando para você e tinha a intenção de fazer o passe, mas os ingleses ficavam entrando na frente, e de repente eu tinha driblado todos, então eu simplesmente marquei o gol.

Valdano fica perplexo: "Enquanto marcava o gol você também estava olhando para mim? Velho, você está brincando comigo. Isso é impossível". E Hector Enrique diz: "Todos elogiam o gol. Mas depois do passe que eu dei, se ele não tivesse marcado, deveria ser morto!" Todo mundo ri. Como Maradona observa, Enrique tinha feito o passe na metade deles do campo.

É uma cena característica de Maradona: apesar de ter superado todos os seus colegas, ele sempre se sentiu parte da seleção. Quando perguntei a Valdano se ele gostava de Maradona, ele respondeu: "eu amo Maradona.
Sou do país de Maradona."

Buenos Aires, 2004: Maradona está na UTI, com o coração falhando. Há uma multidão de argentinos reunidos na porta do hospital. Eles acham que Maradona vai morrer jovem. É isso que acontece com os heróis
argentinos: Eva Perón, Che Guevara, Carlos Gardel, o cantor Rodrigo.
Na tradição católica, o herói morre para redimir os pecados de seu país.

Assim como Evita, Maradona é um tipo de santo folclórico argentino. No filme "A Estrada para San Diego", de Carlos Sorín, de 2006, um cortador de madeira analfabeto decide que uma arvore caída na floresta parece com Maradona comemorando. Ele esculpe a árvore e a transforma numa estátua de Maradona, e a carrega por toda a Argentina. Algumas pessoas que ele encontra riem dele, dizendo que a estátua não se parece em nada com o craque, mas muitos captam sua qualidade religiosa. "Santa Maradona", diz um motorista de caminhão.

No documentário de Emir Kusturica, "Maradona por Kusturica", multidões se formam em torno do jogador onde quer que ele vá, como se ele fosse uma imagem numa procissão católica. Parece exaustivo, mas Maradona entende a iconografia. Em suas entrevistas com Kusturica, ele usa uma grande cruz de prata e conta como Deus o salvou da UTI.

Qatar, 2005: Maradona e Pelé aparecem no lançamento de alguma coisa.
Depois, escreve James Montague em seu novo livro "When Friday Comes"
("Quando Chega a Sexta-Feira", em português), a multidão invade o palco. Todos ignoram Pelé. Montague escreve: "Tudo o que consigo ver no meio da confusão é o topo do penteado afro desgrenhado de Diego, enterrado num mar de fãs fervorosos". Agustín Pichot, ex-capitão de rúgbi da argentina, explica que as pessoas amam Maradona porque ele é "autêntico". Sentimos que o conhecemos, ele tem falhas, como nós.

Em parte é porque Maradona parece uma pessoa ordinária. Nunca um grande atleta se pareceu menos com um grande atleta. No filme de Sorín, passado no interior da Argentina, vemos pessoas com rostos enrugados em ônibus desconjuntados - uma prostituta, um vendedor de bilhetes de loteria cego - que reconhecem a si mesmos no ex-morador de favela baixinho e gordinho. Ele é o elo que os liga à grandeza.

Alemanha, Copa do Mundo de 2006: Maradona está presente como torcedor. Ele senta nas arquibancadas usando uma réplica da camisa da Argentina, pulando ritmadamente com outros torcedores argentinos. Pelé ou Franz Beckenbauer não fariam isso. Mas Maradona encarna a Argentina.

Cinemas, 2008: O filme de Kusturica é propaganda política para Fidel Castro, Hugo Chavez e Emir Kusturica. Ainda assim ele captura uma verdade sobre Maradona e a Argentina: o jogador vinga as frustrações do país em relação ao seu lugar no mundo. O filme inclui uma versão em desenho animado do gol de Maradona contra a Inglaterra, na qual ele dribla Margaret Thatcher (que é decapitada), uma rainha Elizabeth carregando uma bolsinha de mão, um Tony Blair de chifres que morde o tornozelo de Maradona antes de cair no inferno, e um George W. Bush armado.

Kusturica chama o gol de "um dos raros momentos em que um país com muita dívida no FMI triunfou sobre um dos governantes do mundo". Isso, com certeza, é honra demais para se falar da Inglaterra. Todavia, Maradona e muitos argentinos viveram o gol exatamente assim. Se você quiser entender por que a América Latina está indo para a esquerda política, olhe para Maradona. Ele personifica o ressentimento chavista.

Na última cena do filme de Kusturica, dois músicos de rua argentinos cantam a música popular: "Seu eu fosse Maradona..." De repente Maradona está de pé ao lado deles, e começa a chorar. Ele sabe como os torcedores se sentem. Ele também é um deles. A seleção argentina sempre pertenceu a ele.

Tradução: Eloise De Vylder

[Financial Times, 09/11/2008]
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