Forno, fogão e revolução

Livro conta como o fornecimento regular de gás às residências modificou relações culturais e familiares na São Paulo do início do século 20
A patroa tem contato maior com a empregada, e surgem os problemas de relacionamento

NINA HORTA

Sempre reclamei da falta de dissertações de mestrado ou teses de doutorado que tratassem do assunto "comida". Este livro, "Cozinha Modelo", de João Luiz Máximo da Silva (Edusp, 216 págs., R$ 48), trata do impacto do gás e da eletricidade na casa paulistana (1870-1930), e é importante para os interessados.
Tem prefácio de Ulpiano Bezerra de Menezes, que por si só já vale um bom bife, e nos oferece todo um material sobre as conseqüências da derrubada do fogão de lenha e da entrada da eletricidade e do gás nas casas paulistanas.
Parabéns à Edusp, que acolheu o projeto. O autor de "Cozinha Modelo" se enfiou em relatos de empresas concessionárias de gás e eletricidade, catálogos, relatórios técnicos, jornais, revistas, legislação e relatos de memorialistas.
Posso imaginar que os memorialistas contribuíram muito por causa da ligação que todos sentem com a lenha queimando, aquele cheiro inventado por Deus para abrir o apetite dos humanos, desatar reminiscências para engatilhar a prosa dos Prousts. Pedro Nava [1903-1984] foi um grande memorialista de fogão de lenha.
Os grupos pesquisados foram o grupo Light (de 1900, primeira usina termelétrica a vapor e a primeira linha de bonde) e o The San Paulo Gas Company, que iniciou suas atividades em 1870.
Forneceriam o gás dos fogões das casas paulistanas. O morador era responsável pela parte interna da ligação de gás, mas a rede era propriedade exclusiva da companhia.

Nova lógica
"Os aparelhos domésticos e o fornecimento de combustível em rede representavam tudo aquilo que era preconizado por médicos e engenheiros: a submissão da casa e do espaço urbano a uma nova lógica, que visava a limpar e higienizar as cidades, acelerando seus fluxos e circulação em prol do melhor funcionamento da cidade capitalista."
Esse fornecimento de energia por meio das fiações e tubulações fazia uma ligação direta da casa com as empresas e gerava lucros enormes para quem geria o fornecimento de gás.
Nos primeiros anos, houve muita queixa dos consumidores, que além de tudo queriam mais transparência de uma empresa de capital estrangeiro que explorava uma atividade urbana por meio de monopólio.
Tudo começou a mudar com a compra do controle acionário da companhia de gás pelo grupo Light, em 1912.
A Light já tinha os bondes que traçavam suas linhas como aranhas por São Paulo, fazendo próximos pontos antes distantes. Os grandes vazios ao lado das linhas de bonde de repente cresciam com especulação imobiliária.
A Light tinha o monopólio das atividades urbanas mais importantes (como iluminação e transportes) e era unha e carne com o poder político.
O estudo aborda questões de várias naturezas -política, social, econômica, ideológica, tecnológica, cultural. E todos esses aspectos, devagar, começaram a transformar a cidade.
Como ter um cômodo com fogão a lenha dentro de casa?
Impossível, era sempre fora da casa, em puxadinhos, de chão de terra. Quem sabia lidar com o carvão e a lenha? A princesinha da casa, recém-saída das páginas da revista "Fon Fon" para se casar?
Havia muito trabalho a fazer, mas o dela era de supervisão de criados, sentada na varanda. O serviço dos fogões e fornos de lenha, extremamente pesado para as patroas, era feito pelos muitos empregados.
E já pensaram na resistência surda desses especialistas em lenha, gradação do fogo, lamparinas, aos novos artefatos elétricos e a gás?
Se, ainda hoje, raras empregadas usam o processador e a batedeira, o caos que haverá sido enfrentar os inúmeros manuais que ensinavam como usar um fogão, a rapidez dele, a hora em que se deveria colocar a comida nas panelas novas e no fogo para que não ficassem prontas muito tempo antes do jantar?
E o cardápio? As patroas também precisaram aprender a mexer com aquela geringonça moderna -inventam-se as aulas de capacitação, aulas de cozinha mesmo, porque os manuais de uso precisam ser lidos e obedecidos. Sabendo mexer no fogão, é ela, a patroa, que deve entregar aquela jóia ao (à) cozinheiro (a).

Jóia moderna
Toda a propaganda era feita sobre a idéia da cozinha-laboratório, limpa como um consultório de dentista e nada dolorosa. O trabalho doméstico tem que ser racionalizado, os cadernos das avós precisam passar por correções, então escrevem-se livros de culinária que são dados às mulheres com dedicatórias "gauches" dos maridos.
Assunto para não mais acabar.
A patroa tem contato maior com a empregada, surgem os problemas de relacionamento.
O ferro de passar roupa, os uniformes, o chão ladrilhado, a geladeira, por Deus do céu, aquilo é um reduto sanitário de grande limpeza, as patroas e empregadas passam de alquimistas a pesquisadoras de branco com seus fogões de chaminha fraca e resultado forte.
A casa também precisa mudar, que tal jogar esta parede no chão e fazer uma copa? Não fica bem a porta da cozinha dar para os quartos de dormir, a reforma vai ter que ser maior.
Outro fundo de pesquisa maravilhoso são as revistas da época. "Fon Fon", "Careta", "Vida Moderna", "A Cigarra", "Revista Feminina", todas formando o mercado consumidor.
Some o vendedor de lenha, some o carvoeiro, agora não, somos nós, sozinhos na nossa casa.
Mas, não, pertencemos à cidade, os fios saem das ruas e se intrometem na nossa intimidade, os canos se entrecruzam por baixo e nos fazem membros de uma comunidade que usa as mesmas coisas, que tem que pagar por elas, há homens que todo mês sabem quanto gastamos em gás e luz, temos que soltar nossas verdades, que antes eram só nossas, ao público.
É um livro que interessará a qualquer leitor curioso, muito interessante para as mulheres e sua identidade e uma fonte de documentação imprescindível para quem quer saber desse assunto sem fim que é o de cozinhar e de comer.

[Folha de São Paulo, 26/10/2008]
0 Responses