20 anos da Constituição



A Folha de São Paulo pergunta: O saldo da Constituição Federal de 1988 é positivo para o Brasil?

SIM: Democrática e progressista

VINTE ANOS de estabilidade política e econômica e avanços significativos no sentido da democratização da sociedade e da correção das injustiças sociais: essa é a realidade brasileira de hoje, e esse balanço positivo é devido, em grande parte, à Constituição de 1988.
Com efeito, graças aos princípios e normas que ela consagrou e aos instrumentos de ação política e jurídica nela estabelecidos é que tem sido assegurada, sem esforço, a continuidade da ordem constitucional democraticamente estabelecida no Brasil.
A par disso, vem crescendo continuamente a influência da Constituição na sociedade brasileira. Mudando seu tradicional ceticismo, as pessoas estão acreditando que têm direitos e que vale a pena lutar por eles.
Para a correta avaliação da Constituição e dos resultados obtidos a partir de sua vigência, é importante lembrar, antes de tudo, que ela foi o resultado de intensa mobilização social em favor da dignidade da pessoa humana.
A partir das reações contra as violências praticadas pela ditadura militar, alguns pontos foram ficando claros, e o potencial cívico adormecido do povo brasileiro foi sendo despertado.
Com efeito, ficou evidente a associação do uso da força com o objetivo de preservação de privilégios tradicionais, pois as vítimas das violências eram, em sua grande maioria, pessoas e organizações que propunham mudanças na ordem social, política e econômica brasileira visando a eliminação de injustiças tradicionais.
Assim surgiu a idéia de eliminar a ditadura e, concomitantemente, estabelecer uma ordem social mais justa por meio de uma Constituinte.
Um dado histórico de fundamental importância é que o povo continuou mobilizado mesmo depois de instalada a Constituinte, apresentando propostas e buscando contrabalançar o peso dos oligarcas ali presentes.
O resultado disso tudo foi a Constituição de 1988, que é, sem nenhuma dúvida, a mais democrática de todas as que o Brasil já teve, tanto pela participação do povo quanto por seu conteúdo, pois nela estão consagrados não só os tradicionais direitos individuais, mas também os direitos econômicos, sociais e culturais.
Esse é, aliás, um dos pontos indicados pelos adversários da Constituição -geralmente pessoas apegadas aos antigos privilégios- como utópicos e fora da realidade.
Desmentindo essa crítica, basta olhar para a realidade brasileira de hoje para verificar que não só aumentou consideravelmente a porcentagem de brasileiros com acesso a direitos como educação e saúde, como tem aumentado a exigência de efetivação desses direitos por meio de ações judiciais ou de manifestações de organizações sociais. Isso demonstra que o povo passou a acreditar que tem direitos e começou a lutar por eles.
Quanto aos defeitos da Constituição, é importante assinalar que algumas das alegadas imperfeições são assim qualificadas por incompreensão ou por se referirem a pontos que os saudosos dos antigos privilégios consideram negativos.
O que importa é que a Constituição de 1988 é, efetivamente, na sua essência, a expressão da vontade do povo. É claro que alguns aperfeiçoamentos são necessários, como a modificação do processo eleitoral, para dar mais autenticidade à representação e impedir práticas de corrupção.
A par disso, há ainda um longo caminho a ser percorrido para eliminar injustiças gritantes, como a existência de crianças e jovens vítimas de pobreza, vivendo à margem da sociedade. Há, também, a necessidade de eliminar vícios tradicionais que são causas de desigualdade regional e social.
Mas a conclusão, pelos dados divulgados pela imprensa, assim como pelo que se verifica facilmente em grande parte do Brasil em termos de redução das discriminações e marginalizações, é que há bons motivos para comemoração, pois a Constituição foi um passo de grande importância no sentido de assegurar a existência de uma ordem baseada no direito, tendo como fundamento a dignidade da pessoa humana e prevendo os meios para que, por vias pacíficas, as pessoas de boa vontade lutem para que os direitos fundamentais sejam direitos de todos, e não privilégios de alguns.

DALMO DE ABREU DALLARI, 76, é professor emérito da Faculdade de Direito da USP. Foi secretário de Negócios Jurídicos do município de São Paulo (gestão Erundina).

NÃO: Um entrave ao desenvolvimento do país

EM 1988 , a expectativa em torno da Constituição era enorme.
Imaginava-se que ela criaria condições para a correção das injustiças sociais, a consolidação da democracia e a retomada do desenvolvimento econômico. Mas o mundo passava por transformações tão rápidas que os constituintes não souberam acompanhá-las: nossa Carta Magna nasceu na contramão da história.
É bem verdade que, não obstante seus defeitos, a Constituição de 1988 representa um marco importante para o país: o fim de um ciclo autoritário e o início de uma experiência democrática, que se pretende duradoura.
Há, com efeito, virtudes no texto constitucional; porém, elas aparecem em menor número que os defeitos.
A Constituição dita "cidadã" é um documento provocativo, criativo, mas, por suas características, desestabilizador da vida nacional. Não há exagero em afirmar que seu advento provocou enorme insegurança jurídica, dificultou a governabilidade, inibiu negócios e investimentos, sem falar nos conflitos sociais que gerou.
Multiplicam-se no texto as normas problemáticas, controvertidas e inexecutáveis. Há quase um geral reconhecimento de que nossa Carta Magna trouxe mais dúvidas do que certezas quanto à interpretação de seus inúmeros artigos e infindáveis emendas que se sucedem no tempo.
Tempo esse, aliás, inimigo da nossa Constituição. A história se fazia, mas os constituintes não o notaram. Não olharam em torno de si. Ignoraram as profundas alterações no mundo por força de uma revolução que não conheciam: a da alta tecnologia.
Assim também no campo político: não perceberam o declínio das ideologias. Não viram que o debate do fim de século não seria mais entre a esquerda e a direita, mas entre o velho e o novo, o ineficiente e o eficiente. Ignoraram ainda que o gigantismo do Estado passava a ser mais um fator de atraso que um agente do progresso.
Igualmente não se deram conta da mudança radical havida no relacionamento entre os países. Falhou a percepção para ver que os vários sistemas econômicos operavam em bases transnacionais e que capital, ciência e tecnologia se internacionalizavam.
Entre os muitos problemas que ainda poderíamos mencionar, até na área social, vamos nos concentrar no preconceito, um dos maiores defeitos de origem da Constituição. Pois não bastou para aplacar o arraigado preconceito dos constituintes produzir uma Carta democrática; impôs-se fazê-la "antiautoritária". Mas, à força de corrigir males do passado, os constituintes se esqueceram do porvir.
As Forças Armadas, por exemplo, foram alvo favorito de preconceitos, bem como o foi o sistema de informação: no intuito de punir os abusos do passado, desarmou-se o Estado contra o terrorismo, o banditismo ideológico, as quadrilhas de corrupção.
O empresário, por sua vez, foi posto sob dupla suspeita: politicamente, pois foi conivente com o autoritarismo, e economicamente, pois é um ser anti-social, que deve ser humanizado por imposição do legislador.
Eis aqui, por sinal, o vício que perpassou todo o trabalho: insatisfeitos com a realidade, os constituintes acreditaram ser possível rejeitá-la radicalmente e modificá-la por ato de vontade. Erro crasso imaginar que a Constituição, por si, poderia tanto definir as condições das mudanças como criar ou impor tais condições.
Dominados pelo desejo de inovar, os constituintes saltaram além da realidade histórica para cair num espaço e num tempo imaginários. Pretenderam produzir a mais perfeita e completa Constituição, algo pronto, acabado, um produto no qual tudo parece simples e coordenado, uniforme, justo e racional. Não o fizeram.
É bem verdade que a lei, qualquer lei, por si só, não cria desenvolvimento político, econômico e social. Mas a Constituição tem comprovado que o contrário ocorre: a má lei pode inibir o desenvolvimento de um país pelas reiteradas crises que provoca.
Parece-nos irrefutável esta conclusão: a Constituição de 1988 está longe de ser o instrumento que pode garantir ao país uma democracia estável e um desenvolvimento auto-sustentado. É preciso aproveitar a experiência desses 20 anos para escoimar a Carta dos erros e preservar os acertos, resgatando o país para a modernidade.

NEY PRADO é presidente da Academia Internacional de Direito e Economia.

[Folha de São Paulo, 04/10/2008]
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