Religião da América

EM MEIO À GUERRA DO IRAQUE E O MEDO DA RECESSÃO, NOVAS GERAÇÕES DO PAÍS, QUE TEM 78,4% DE CRISTÃOS, SE DESILUDEM COM DISCURSO FUNDAMENTALISTA E ABREM ESPAÇO PARA TEMAS COMO ABORTO E CASAMENTO GAY

Os norte-americanos podem imaginar um negro ou uma mulher como candidatos à Presidência do seu país, mas não um ateu.
Em sua ascensão meteórica rumo ao pináculo da política americana, o candidato democrata Barack Obama teve de abandonar o passado agnóstico, associando-se a uma das igrejas mais radicais e politicamente engajadas dos bairros negros de Chicago, a Trinity United Church of Christ [Igreja Unida de Cristo Trindade] - mas só até quando essa radicalidade passou a comprometer seus planos políticos.
Os EUA são o maior mercado livre de religiões do mundo.
Durante duas semanas de junho, num percurso que foi do Meio-Oeste ao Texas, a Folha visitou as maiores igrejas e personagens não muito católicos, procurando esboçar um recorte necessariamente incompleto do universo muito diversificado do cristianismo americano, cujo coro promete se fazer ouvir nas eleições presidenciais de 4 de novembro.
Os EUA são um país 78,4% cristão. Segundo dados de um vasto levantamento divulgado neste ano pelo Fórum Pew - projeto que se ocupa de religião e sociedade dentro de um dos institutos de pesquisa mais respeitados do país-, evangélicos e não-religiosos são os grupos que mais crescem enquanto os protestantes tradicionais moderados, muitos deles ligados historicamente ao movimento dos direitos civis, decrescem.
As conseqüências políticas dessa polarização ainda estão por ser avaliadas, mas a luta pelo voto evangélico já é uma das principais preocupações tanto entre estrategistas democratas como entre republicanos.

Dividir os evangélicos
Nas últimas duas eleições, religiosos conservadores e fundamentalistas se mobilizaram contra o aborto e o casamento homossexual e conseguiram levar às urnas gente que a princípio não votaria, garantindo a vitória a George W. Bush.
Agora, a relativa moderação do discurso de algumas das maiores organizações evangélicas norte-americanas, em meio à recessão econômica, aos resultados da Guerra do Iraque e à desilusão das gerações mais jovens com o discurso fundamentalista, abre a possibilidade de uma nova perspectiva.
Ontem [16/08], pela primeira vez desde o início da campanha, Obama e o candidato republicano John McCain participaram juntos de um encontro público, organizado pelo pastor Rick Warren, líder da quarta maior igreja dos EUA, a Saddleback, na Califórnia -o pastor esteve recentemente em São Paulo, divulgando sua igreja e seu método.
Os votos evangélicos (cerca de um quarto da população) são tradicionalmente republicanos, mas Obama quer se aproveitar da insatisfação com o governo Bush e da pouca empatia entre McCain os religiosos conservadores para -já que não pode conquistá-los em massa- ao menos tentar dividi-los.

Nova Jersey: Perseguição aos ateus

"Se você disser que é ateu, pode até perder o emprego; se não disser nada, ninguém o amola"

Um dos resultados mais surpreendentes do relatório sobre o cenário religioso americano divulgado pelo Fórum Pew é o crescimento dos chamados "não-afiliados" -ateus, agnósticos e pessoas que não pertencem a nenhuma igreja ou religião organizada.
Hoje, eles representam 16,1% da população (25% das pessoas entre 18 e 29 anos) e começam a se impor como uma força política incontornável num país de maioria crente.
Dados do mesmo Fórum Pew revelam, em contrapartida, que o eleitor americano não se sente à vontade para apoiar um candidato se ele for ateu (61%), muçulmano (45%) ou mórmon (25%).
Antes da contagem das urnas, no entanto, fica difícil saber quanto essa resposta esconde de preconceitos latentes e mais raramente assumidos em público.
Por exemplo: 15% dizem que não votariam em um candidato hispânico, 12% não votariam em uma mulher e apenas 6% não votariam em um negro -o que é espantoso num país historicamente dividido pela questão racial. Os americanos podem ter pudor de assumir o racismo, mas certamente não hesitam em expressar o horror que sentem pelos ateus.
"Os ateus são o grupo mais odiado nos EUA. Nosso principal objetivo é aumentar a tolerância em relação a eles e preservar a separação entre igreja e Estado", diz David Silverman, diretor de comunicações da Ateus Americanos, uma organização de 3.500 membros, baseada em Nova Jersey, que defende as liberdades civis e o Estado laico.
Atualmente, a Ateus Americanos se mobiliza contra a reconstrução de igrejas com dinheiro público, em Detroit, e está processando o Estado de Utah por conta das cruzes instaladas permanentemente em estradas.
A declaração de Silverman ecoa o que Sam Harris diz em seu panfleto "Carta a uma Nação Cristã" [Cia. das Letras], best-seller de 2007: "Os ateus são a minoria mais vilipendiada dos EUA".
Harris, por sua vez, é um dos mais inflamados ensaístas ateus que despontaram ao longo do governo Bush. E é provável que boa parte do seu sucesso se deva aos próprios religiosos, interessados em conhecer as armas do inimigo.
As de Harris são pesadas. Para ele, não há meio-termo: "O problema com a religião -assim como com o nazismo, com o stalinismo ou com qualquer outra mitologia totalitária- é o próprio dogma. (...) Ou a Bíblia é só um livro comum, escrito por mortais, ou não é. (...) E, se a Bíblia for um livro comum e Cristo, um homem comum, a doutrina básica do cristianismo é falsa".
A Ateus Americanos foi fundada no Texas, em 1963, por Madalyn Murray O'Hair, apontada pela revista "Life", no ano seguinte, como "a mulher mais odiada da América".
Em 1959, Murray ganhou na Suprema Corte uma ação contra a reza obrigatória nas escolas públicas. Havia entrado com a ação em defesa dos direitos do filho, William Murray, que se recusava a participar do catecismo escolar.

Conversão
Em 1995, ela foi seqüestrada do escritório da organização, supostamente por um funcionário, e violentamente assassinada, junto com o outro filho e a neta, filha de William.
Depois da morte da mãe, da filha e do irmão, William, em nome de quem Madalyn tinha ido até a Suprema Corte para defender a separação entre igreja e Estado, se tornou um pregador batista.
Hoje, participa de programas evangélicos na televisão, dizendo o diabo contra a mãe.
Segundo Kenneth Bronstein, que dirige os Ateus da Cidade de Nova York, associação filiada à Ateus Americanos, uma das maiores dificuldades é fazer os ateus saírem do armário.
"O número de ateus nos EUA é maior que o de judeus, hindus e de vários outros grupos. O problema é que não se organizam e, portanto, não têm nenhum poder. Se você disser que é ateu, pode até perder o emprego. Se não disser nada, ninguém o amola. Você pode fazer uma analogia com os gays 20 anos atrás. Tinham medo de assumir que eram gays. Estamos no mesmo processo", afirma Bronstein.
"É um círculo vicioso. O ateu se sente só e se fecha, o que leva a mais ignorância e medo, o que só o faz se fechar ainda mais. Trabalhamos para que as pessoas saibam quem são os ateus, para que haja menos medo e, com sorte, esse ciclo termine. Os não-religiosos são um bloco político que deve ser ouvido e reconhecido. Vão continuar crescendo com o tempo, conforme os EUA se equipararem ao resto do mundo civilizado", diz Silverman.
Em 1954, durante a Guerra Fria, a igreja conseguiu incluir a referência a Deus no juramento à bandeira americana.
"Os religiosos nos EUA são muito fortes e estão tentando pôr a religião em toda parte. No governo, nas escolas... Como se já não bastasse o "in God we trust" [confiamos em Deus] nas cédulas de dólar. Depois vêm dizer que não somos patrióticos porque não fazemos o juramento à bandeira. Somos patrióticos, mas não vamos jurar por Deus", diz Bronstein.

(veja os demais artigos sobre o tema na edição do dia 17/08 do Jornal Folha de São Paulo)

[Folha de São Paulo, 17/08/2008]
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