Um filme e duas formas de julgar e encarar o Bope

Tropa de Elite’ agrada a defensores de batalhão, mas também aos que vêem filme como denúncia de abusos

Alexandre Rodrigues
Os aplausos no fim da exibição de Tropa de Elite no Festival do Rio, na quinta-feira, consagram visões díspares: o reconhecimento à atuação do Batalhão de Operações Especiais (Bope), tropa apontada como exceção na polícia corrupta do Rio, e a reprovação de métodos truculentos expostos no filme, como sessões de tortura e execuções sumárias. Dois estudiosos da segurança procurados pelo Estado viram nas distintas reações provocadas pela história do capitão Nascimento, interpretado pelo ator Wagner Moura, o que há de mais interessante no filme.
Para o sociólogo Gláucio Soares, do Instituto Universitário de Pesquisas (Iuperj), dentro dos parâmetros do Rio o filme valoriza o Bope. Ele observa que significativa parcela da sociedade repudia a corrupção nas tropas regulares da Polícia Militar, mas não a violência com que age o Bope. “A imagem da PM no Rio é tão ruim que uma parte dela que não seja facilmente corrompida, ainda que extremamente violenta, é vista como bonança. Isso acontece porque o ponto de comparação é baixíssimo. Se estivéssemos num país de corrupção baixa, não ser corrupto não seria vantagem. Entraríamos na questão da violência e aí o Bope perde”, analisa. “Nosso padrão de exigência da polícia está muito baixo. Quem gostaria de ver um Bope que, além de incorruptível, obedece às leis talvez não goste do filme.”
Para o sociólogo Michel Misse, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio (UFRJ), é muito perigosa a hierarquia de valores que considera a violência um mal menor diante da corrupção. Após as cenas em que os policiais metem o pé na porta de casas em favelas, envolvem a cabeça de moradores com sacos plásticos para interrogá-los e executam criminosos dominados, “só chega ao final da fita admirando o Bope quem vê como natural esse método”. “Para mim, o filme é uma crítica ao Bope. A interpretação oposta mostra como quem gostou da tropa está inteiramente imerso nesse cotidiano da violência. Acha natural a tortura e considera que tem de ser feito dessa maneira.”

Nesse contexto, os números dos autos de resistência, que registram mortes dos que supostamente entraram em confronto com policiais, são vistos com naturalidade. O número de casos vem aumentando no governo Sérgio Cabral. Nos últimos cinco anos, ele tinha ficado em cerca de mil por ano. Em 2006, houve 1.063 mortes. Até maio de 2007, foram 586. No mesmo período, pelos dados oficiais, morreram em confronto 14 policiais.Segundo Soares, pesquisas mostram em várias camadas sociais um certo desprezo pelo processo policial-penal diante da necessidade de efetiva punição. A violência, diz ele, é freqüentemente vista como parte da pena, numa reedição de um código penal individual. “A sociedade está machucada pela violência e pelo crime e é extremamente punitiva, mas por fora da lei que existe. Ninguém leva fé no processo adjetivo que leva um sujeito até a prisão. Ele é visto como ineficiente”, diz.
A militarização crescente da polícia, cuja expressão máxima é o Bope, é uma resposta à escalada armamentista dos traficantes, na visão de Misse. “Os policiais têm razão quando dizem que os bandidos não se entregam e são violentos. Décadas de execuções levam criminosos a não confiar em se entregar. Um é reflexo do outro, num processo perverso que não tem fim”, diz Misse, para quem Tropa de Elite tem o mérito de criticar o Bope sem demonizá-lo.
Seu colega do Iuperj concorda e acrescenta que o fato de o cinema pela primeira vez abordar o crime pelos olhos da polícia expõe a maneira simplista como o tema muitas vezes é tratado. “Quem, levando bala, não vai reagir assim? Dizer que não pode é hipócrita. Exige-se uma conduta à qual ninguém está disposto a se expor.”
Para Soares, o grande mérito do filme foi “não ter tido o indevido pudor de salvar patricinhas e mauricinhos” ao tocar na responsabilidade dos consumidores de drogas na cadeia da violência. O mal-estar refletido no riso nervoso da platéia do festival quando, na tela, o capitão atribui a um “playboy maconheiro” a execução de um bandido, promete alimentar ainda mais a polêmica.

[O Estado de São Paulo, 23/09/2007]
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