Ginzburg atualiza o antiquário

Historiador reúne em um só volume, O Fio e os Rastros, 15 ensaios cheios de surpresas e revelações
Elias Thomé Saliba

Depois do dramático ataque de setembro de 2001, entrou em decadência aquele modismo pós-moderno de propalar que a realidade não existe e que tudo é criado pela linguagem. Hoje, os ventos da moda parecem soprar noutra direção e “pós-moderno” transformou-se numa espécie de etiqueta identificando uma caixa dentro da qual jogamos todas as coisas, boas ou más, que não mais conseguimos encaixar ou classificar. “Não devemos partir das boas velhas coisas, e sim das más coisas novas.” Esse famoso conselho, dado por Brecht ao seu amigo Walter Benjamin, serve de oblíqua inspiração para o historiador Carlo Ginzburg em O Fio e os Rastros, coletânea dos seus mais importantes ensaios dos últimos 15 anos. Ginzburg concorda com Hobsbawm quando, num diagnóstico de 2002, o historiador marxista dizia que o maior perigo político imediato para a historiografia era o antiuniversalismo, ou seja, a convicção de que, independentemente das provas apresentadas, a minha verdade vale tanto quanto a sua. Mas Ginzburg também observa que a liquidação do pós-modernismo (como moda que aflorou marginalmente à historiografia) foi rápida e apressada: é necessário que o historiador aborde as relações entre a ficção e a realidade, desbravando aquele terreno fronteiriço que tanto incomoda os céticos pós-modernos, pois ele implica a realidade: o terreno do falso, do não autêntico, do fictício que se faz passar por verdadeiro.
Sinais traçados no papel ou no pergaminho, moedas, imagens, narrativas, fábulas e até pistas falsas - não importa, contra a afirmação de que “tudo é texto”, Ginzburg vasculha e lê tudo a partir de sua própria ótica, que é a de um antiquário atualizado, arguto e sensível, investigando os rastros de realidade que todos os testemunhos da história deixam atrás de si. Mas são muitos os rastros, poucos os fios, e não é nada fácil para o leitor acompanhar Ginzburg nas estreitas veredas que ele abre: da conversão dos judeus de Minorca no século 5º à redescoberta dos xamanismo pela cultura européia, são 15 ensaios cheios de revelações e surpresas, que percorrem os mais variados e surpreendentes temas.
Um dos fios talvez seja o de verificar como um procedimento narrativo, o estranhamento, foi utilizado conforme a teia de significados culturais tecidos em diferentes épocas. Como na fábula de Voltaire, o Diálogo entre Um Capão e Uma Franga, em que um costume trivial (comer aves) que a maioria de nós acha natural é de repente desfamiliarizado: o distanciamento intelectual cria no leitor uma repentina identificação emotiva e a fábula abre a possibilidade de se ampliarem os limites da tolerância até incluir os animais. E a franga diz ao capão: “Por que o desejo de comer petiscos refinados pode justificar uma mutilação tão feroz?” No rastro dos formalistas russos, sendo o primeiro de todos Chklóvski, aprendemos a procurar o estranhamento no olhar do selvagem, da criança, ou até mesmo do animal: seres estranhos às convenções do viver civilizado, que registram com olhar perplexo ou indiferente, denunciando, assim, indiretamente, a insensatez das coisas. Para Ginzburg, Voltaire serviu-se desse procedimento literário para exprimir a irrelevância das diferenças religiosas. Mas, perseguindo o rastros dessa fonte, o historiador italiano retroage a Swift, a Montaigne, ou a uma narrativa escrita por Chapelain no século 17 - a qual acaba remontando ao romano Marco Aurélio! Um exagero que não chega a comprometer o todo, mas exemplifica a idéia de que qualquer inovação, em qualquer área, sempre constrói de trás para a frente a sua genealogia.
De qualquer forma, quando insere um testemunho ou texto num contexto documental mais vasto, ou quando demonstra como um autor despista os seus leitores através de pistas falsas ou confissões autoconsoladoras, Ginzburg é inigualável. Em Stendhal, a técnica narrativa do discurso direto livre fornece voz ao isolamento e à ingênua vitalidade de personagens derrotados por um processo histórico que os leva de roldão e humilha todas as suas ilusões. Mas é um procedimento vedado aos historiadores, porque o discurso direto livre, por definição, não deixa rastros documentários. Ginzburg trabalha nessa zona desconhecida, situada aquém do conhecimento histórico e inacessível a ele. Ainda assim, mostra como os procedimentos narrativos funcionam como campos magnéticos: provocam novas indagações e atraem documentos potenciais.
Ginzburg investiga ainda as relações entre os famigerados Protocolos dos sábios de Sião e o livro obscuro no qual teriam se inspirado - o Diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu, escrito pelo francês Maurice Joly em 1864. E nos fornece uma demonstração rigorosa, de como uma refinada parábola política se transforma em tosca falsificação. Demonstração tão rigorosa que faz lembrar o ríspido veredicto de Adorno sobre as “falsidades que são necessárias”, pois, afinal, o que o mundo mais deseja “é ser enganado”.
Já no ensaio mais engajado, dedicado a Primo Levi, Ginzburg analisa o papel das testemunhas narrativas da memória do Holocausto. Aí os rastros conduzem a uma polêmica direta com Hayden White e, indireta, com o próprio Jean-François Lyotard. White havia sustentado que o ceticismo e o relativismo históricos podem proporcionar as bases cognitivas e morais da tolerância. Ginzburg mostra como tal pretensão é insustentável: na história, a tolerância sempre foi teorizada por indivíduos que tinham fortes convicções intelectuais e morais; e o ceticismo absoluto entraria em contradição consigo mesmo se não fosse estendido também à tolerância como princípio regulador. Mas Ginzburg termina num rastro ainda mais provocador, quase incendiário: o argumento que liga a verdade à eficácia atrai inevitavelmente não a tolerância, mas o seu oposto - o juízo fascista de Giovanni Gentile sobre o porrete como força moral.
Estimulado e deflagrado pelo seu livro mais famoso, O Queijo e os Vermes, Ginzburg também retorna, num dos ensaios mais brilhantes do livro, ao debate sobre a micro-história, no qual ele analisa os rastros deixados pelo último e inacabado livro de Siegfried Kracauer, História: As Últimas Coisas antes das Últimas. Até Kracauer falou em micro-história, assinalando que a discrepância entre micro e macro não era apenas uma questão de gosto ou escolha pessoal, mas um dilema cognitivo real dos historiadores. Inspirado em Marc Bloch, Kracauer só enxergava a solução num vaivém contínuo entre micro e macro - ou, para usar a linguagem do cinema que ele tanto prezava, entre close-ups e long shots. Única solução capaz de colocar em debate a visão conjunta da história por meio de exceções aparentes e elementos singulares.
Mas os rastros ainda conduzem Ginzburg ao Tolstoi de Guerra e Paz, que já dizia que um fenômeno histórico só pode se tornar compreensível por meio da reconstrução da atividade de todas as pessoas que dele participaram. E quando o leitor pensa que os rastros terminaram aí, Ginzburg descobre novas pegadas no quadro Batalha entre Alexandre e Daria à beira do Isso, pintado por Albrecht Altdorfer, em 1529. O pintor escolheu um ponto de vista altíssimo e distante, comparável ao de uma águia voando, sugerindo que nenhum olho humano conseguiu focalizar ao mesmo tempo a especificidade histórica de uma batalha e a sua irrelevância cósmica. Porque uma batalha é, a rigor, invisível, como nos recordam (e não só por efeito da censura militar) as reportagens da TV durante a Guerra do Golfo. Só um diagrama abstrato ou uma imaginação visionária como a de Altdorfer podem comunicar uma imagem inteira. Ginzburg considera lícito estender essa conclusão a qualquer acontecimento histórico: é só o olhar aproximado que nos permite captar algo que escapa à visão de conjunto e vice-versa.
Ginzburg poderia ser definido como um historiador que rejeita o rótulo de pós-moderno, mas não se exime de penetrar na floresta cética e subjetivista dos pós-modernos para melhor conhecer seus desafios. Em O Fio e os Rastros ele vai à caça apanhando o que há de melhor nas duas tendências. E mostra, afinal, que a melhor historiografia - para não falar da cultura em geral - está situada muito além de todas as etiquetas e rótulos.


[O Estado de São Paulo, 09/09/2007]
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