Forno, fogão e revolução

Livro conta como o fornecimento regular de gás às residências modificou relações culturais e familiares na São Paulo do início do século 20
A patroa tem contato maior com a empregada, e surgem os problemas de relacionamento

NINA HORTA

Sempre reclamei da falta de dissertações de mestrado ou teses de doutorado que tratassem do assunto "comida". Este livro, "Cozinha Modelo", de João Luiz Máximo da Silva (Edusp, 216 págs., R$ 48), trata do impacto do gás e da eletricidade na casa paulistana (1870-1930), e é importante para os interessados.
Tem prefácio de Ulpiano Bezerra de Menezes, que por si só já vale um bom bife, e nos oferece todo um material sobre as conseqüências da derrubada do fogão de lenha e da entrada da eletricidade e do gás nas casas paulistanas.
Parabéns à Edusp, que acolheu o projeto. O autor de "Cozinha Modelo" se enfiou em relatos de empresas concessionárias de gás e eletricidade, catálogos, relatórios técnicos, jornais, revistas, legislação e relatos de memorialistas.
Posso imaginar que os memorialistas contribuíram muito por causa da ligação que todos sentem com a lenha queimando, aquele cheiro inventado por Deus para abrir o apetite dos humanos, desatar reminiscências para engatilhar a prosa dos Prousts. Pedro Nava [1903-1984] foi um grande memorialista de fogão de lenha.
Os grupos pesquisados foram o grupo Light (de 1900, primeira usina termelétrica a vapor e a primeira linha de bonde) e o The San Paulo Gas Company, que iniciou suas atividades em 1870.
Forneceriam o gás dos fogões das casas paulistanas. O morador era responsável pela parte interna da ligação de gás, mas a rede era propriedade exclusiva da companhia.

Nova lógica
"Os aparelhos domésticos e o fornecimento de combustível em rede representavam tudo aquilo que era preconizado por médicos e engenheiros: a submissão da casa e do espaço urbano a uma nova lógica, que visava a limpar e higienizar as cidades, acelerando seus fluxos e circulação em prol do melhor funcionamento da cidade capitalista."
Esse fornecimento de energia por meio das fiações e tubulações fazia uma ligação direta da casa com as empresas e gerava lucros enormes para quem geria o fornecimento de gás.
Nos primeiros anos, houve muita queixa dos consumidores, que além de tudo queriam mais transparência de uma empresa de capital estrangeiro que explorava uma atividade urbana por meio de monopólio.
Tudo começou a mudar com a compra do controle acionário da companhia de gás pelo grupo Light, em 1912.
A Light já tinha os bondes que traçavam suas linhas como aranhas por São Paulo, fazendo próximos pontos antes distantes. Os grandes vazios ao lado das linhas de bonde de repente cresciam com especulação imobiliária.
A Light tinha o monopólio das atividades urbanas mais importantes (como iluminação e transportes) e era unha e carne com o poder político.
O estudo aborda questões de várias naturezas -política, social, econômica, ideológica, tecnológica, cultural. E todos esses aspectos, devagar, começaram a transformar a cidade.
Como ter um cômodo com fogão a lenha dentro de casa?
Impossível, era sempre fora da casa, em puxadinhos, de chão de terra. Quem sabia lidar com o carvão e a lenha? A princesinha da casa, recém-saída das páginas da revista "Fon Fon" para se casar?
Havia muito trabalho a fazer, mas o dela era de supervisão de criados, sentada na varanda. O serviço dos fogões e fornos de lenha, extremamente pesado para as patroas, era feito pelos muitos empregados.
E já pensaram na resistência surda desses especialistas em lenha, gradação do fogo, lamparinas, aos novos artefatos elétricos e a gás?
Se, ainda hoje, raras empregadas usam o processador e a batedeira, o caos que haverá sido enfrentar os inúmeros manuais que ensinavam como usar um fogão, a rapidez dele, a hora em que se deveria colocar a comida nas panelas novas e no fogo para que não ficassem prontas muito tempo antes do jantar?
E o cardápio? As patroas também precisaram aprender a mexer com aquela geringonça moderna -inventam-se as aulas de capacitação, aulas de cozinha mesmo, porque os manuais de uso precisam ser lidos e obedecidos. Sabendo mexer no fogão, é ela, a patroa, que deve entregar aquela jóia ao (à) cozinheiro (a).

Jóia moderna
Toda a propaganda era feita sobre a idéia da cozinha-laboratório, limpa como um consultório de dentista e nada dolorosa. O trabalho doméstico tem que ser racionalizado, os cadernos das avós precisam passar por correções, então escrevem-se livros de culinária que são dados às mulheres com dedicatórias "gauches" dos maridos.
Assunto para não mais acabar.
A patroa tem contato maior com a empregada, surgem os problemas de relacionamento.
O ferro de passar roupa, os uniformes, o chão ladrilhado, a geladeira, por Deus do céu, aquilo é um reduto sanitário de grande limpeza, as patroas e empregadas passam de alquimistas a pesquisadoras de branco com seus fogões de chaminha fraca e resultado forte.
A casa também precisa mudar, que tal jogar esta parede no chão e fazer uma copa? Não fica bem a porta da cozinha dar para os quartos de dormir, a reforma vai ter que ser maior.
Outro fundo de pesquisa maravilhoso são as revistas da época. "Fon Fon", "Careta", "Vida Moderna", "A Cigarra", "Revista Feminina", todas formando o mercado consumidor.
Some o vendedor de lenha, some o carvoeiro, agora não, somos nós, sozinhos na nossa casa.
Mas, não, pertencemos à cidade, os fios saem das ruas e se intrometem na nossa intimidade, os canos se entrecruzam por baixo e nos fazem membros de uma comunidade que usa as mesmas coisas, que tem que pagar por elas, há homens que todo mês sabem quanto gastamos em gás e luz, temos que soltar nossas verdades, que antes eram só nossas, ao público.
É um livro que interessará a qualquer leitor curioso, muito interessante para as mulheres e sua identidade e uma fonte de documentação imprescindível para quem quer saber desse assunto sem fim que é o de cozinhar e de comer.

[Folha de São Paulo, 26/10/2008]

Em resumo: O Brasil e a crise


[Charge publicada no jornal Folha de São Paulo, 25/10/2008]

Os braços fortes da fé

Lançado na França, "Os Novos Soldados do Papa" traça a ascensão dos conservadores na igreja desde o pontificado de João Paulo 2º

STÉPHANIE LE BARS

Cidadela sitiada, a Igreja Católica precisaria de "novos soldados" para resistir aos ataques conjugados "do laicismo, do islamismo e do protestantismo".
Para tanto, Bento 16 privilegiaria as correntes mais conservadoras e mais intransigentes da igreja: Legião de Cristo, Opus Dei e movimento tradicionalista. Isso sob o risco de reduzir o Vaticano 2º (concílio reunido de 1962 a 65 e que desembocou em uma maior abertura da igreja para o mundo) a "um parêntese rapidamente fechado" e de ver a igreja adotar os códigos mais "coercitivos" desses movimentos.
Essa é a tese, sem nuanças, desenvolvida por Caroline Fourest e Fiammetta Venner em "Les Nouveaux Soldats du Pape" [Os Novos Soldados do Papa, ed. du Panama, 316 págs., 20, R$ 59].
Mas, se é verdade que Bento 16 ouve atentamente os tradicionalistas, se é verdade que uma corrente personalista e conservadora está em ação na Igreja Católica, o lugar desses "novos" soldados não é, na verdade, tão novo assim.
A atitude de João Paulo 2º em relação a esses grupos, dois deles surgidos nos anos 1930 e 40, tende a provar isso. O antecessor de Bento 16 foi especialmente aberto a sua instalação na paisagem eclesiástica romana. Dava atenção constante à Legião de Cristo, enquanto seu fundador, Marcial Maciel, do qual era próximo, era acusado de abusos sexuais.
Foi justamente Bento 16 quem, em 2006, dois anos antes da morte de Maciel, o afastou, oficialmente, de toda responsabilidade pública.

Missa em latim
Igualmente próximo da Opus Dei, João Paulo 2º permitiu, em 2002, a canonização "expressa" de seu fundador, Josemaría Escrivá, morto em 1975. Já Bento 16 apelou a um jesuíta, Federico Lombardi, para assumir a chefia da comunicação do Vaticano, como salientam apropriadamente as autoras.
A análise da atitude de Bento 16 para com os tradicionalistas e os integralistas cismáticos é mais convincente.
Persuadido de que a lembrança dos princípios "fundamentais e tradicionais" da igreja é uma das condições para manter a unidade da instituição e combater o "relativismo", Bento 16 não deixou de lhes estender a mão, sobretudo liberalizando a celebração da missa em latim, em julho de 2007.
Em apoio a sua tese, as autoras mergulham na história e nos escritos desses diferentes movimentos.
Essa compilação abrange eficazmente os anos de criação desses "braços armados do Vaticano" e suas atribulações para encontrar um lugar na instituição católica. O retrato que traça da Legião do Cristo, fundada no México, passa por uma biografia pouco lisonjeira de seu fundador.
Na apresentação da Opus Dei, as autoras revêem o testemunho de antigos "opusianos" e lembram as imagens tradicionalmente ligadas à Opus Dei: união histórica com o franquismo, gosto pelo secreto e pela mortificação, métodos sectários, prática radical da fé, devoção extrema, penetração nos círculos do poder, obediência absoluta ao papa.
Em tal contexto, pode-se lamentar que, nesse areópago de católicos supostamente influentes na igreja de hoje, as autoras não tenham incluído a corrente carismática, apesar de seu claro avanço.

A íntegra deste texto saiu no "Le Monde". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

[Folha de São Paulo, 26/10/2008]

Às urnas, cidadãos!

Escapando ao controle das elites políticas, as eleições no Império eram períodos de grande desordem, que muitas vezes terminavam em pancadaria e morte
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Cartola, 100 - Peito vazio



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1 Ano: Blog CLIO História

Um ano no ar, 292 postagens, mais de 10000 visitantes e um objetivo ainda a ser alcançado (para dizer a verdade: bem longe de ser alcançado tendo como base este primeiro ano): ouvir opiniões, críticas, dicas, sugestões e etc...

Para compreender a crise financeira

Mercados internacionais de crédito entraram em colapso e há risco real de uma corrida devastadora aos bancos. Por que o pacote de 700 bilhões de dólares, nos EUA, chegou tarde e é inadequado. Quais as causas da crise, e sua relação com o capitalismo financeirizado e as desigualdades. Há alternativas?
[Clique aqui e acesse matéria completa de Antonio Martins do Diplo]

Acompanhe de perto as notícias sobre a crise no Especial da Folha Online [clique aqui]

Veja as imagens de outra crise, a de 1929...

Hollywood a serviço do pentágono

Há mais de 90 anos o Departamento de Defesa orienta a produção dos filmes de guerra americanos, que retratam os conflitos de acordo com os interesses estratégicos da Casa Branca
[Leia a matéria na íntegra clicando aqui...]

20 Anos: Constituição brasileira

País comemora 20 anos da Constituição com profundas mudanças e 62 emendas ao texto.
O "comemora" é do título do Especial do UOL, que você acessa clicando aqui.

100 Anos: Ford T

Lançado em abril 1908 nos EUA, o Ford T reunia confiabilidade, robustez, segurança e simplicidade. Qualquer um era capaz de dirigi-lo ou consertá-lo, sem a a necessidade de motorista ou mecânico. Mesmo assim, o carro ganharia notoriedade apenas em 1913, quando Henry Ford, inspirado nos processos produtivos dos revólveres Colt e das máquinas de costura Singer, implantou a linha de montagem e a produção em série, revolucionando a indústria automobilística.

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60 Anos: Declaração dos Direitos Humanos

"Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum. Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão."
Declaração Universal dos Direitos Humanos, 17 de dezembro de 1948.
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Juiz condena Ustra por seqüestro e tortura

Coronel reformado contesta as acusações, diz que ação contraria Lei da Anistia e deve recorrer ao Tribunal de Justiça

Coronel torna-se o primeiro oficial condenado em ação declaratória por seqüestro e tortura; decisão não prevê indenização nem punição

LILIAN CHRISTOFOLETTI, DA REPORTAGEM LOCAL

Por decisão do juiz Gustavo Santini Teodoro, da 23ª Vara Cível de São Paulo, de primeira instância, o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra tornou-se o primeiro oficial condenado na Justiça brasileira em uma ação declaratória por seqüestro e tortura durante o regime militar (1964-1985).
A sentença, publicada ontem, é uma resposta ao pedido de cinco pessoas da família Teles que acusaram Ustra, um dos mais destacados agentes dos órgãos de segurança dos anos 70, de seqüestro e tortura em 1972 e 1973.
O coronel reformado, que nega a prática de tortura, pode recorrer da decisão ao Tribunal de Justiça (TJ). Em sua defesa, Ustra disse que a ação contraria a Lei da Anistia (1979), que significou o perdão dos crimes cometidos durante a ditadura.
A condenação de Ustra ocorre cerca de duas semanas depois de o TJ paulista rejeitar uma segunda ação movida contra Ustra, desta vez por tortura e morte de um jornalista.
Na decisão de ontem, o juiz Santini argumentou que a anistia refere-se só a crimes, e não a demandas de natureza civil, como é o caso da ação declaratória, que não prevê indenização nem punição, mas o reconhecimento da Justiça de que existe uma relação jurídica entre Ustra e os Teles, relação que nasceu da prática da tortura.
E foi isso que o juiz reconheceu na ação iniciada pelo casal Maria Amélia de Almeida Teles e César Teles; pelos filhos Janaína e Édson; e por Criméia, irmã de Maria Amélia.
Acusados de subversão, o casal e Criméia, que estava grávida, foram presos no DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna), comandado por Ustra, que usava o codinome "Tibiriçá". Com 5 e 4 anos, Janaína e o irmão foram levados para o presídio como uma forma de pressão.

Casa dos horrores
Na decisão, o juiz afirmou que, pela descrição das testemunhas, o DOI-Codi era "uma casa dos horrores, razão pela qual o réu não poderia ignorar o que ali se passava".
As testemunhas, que estiveram presas junto com os Teles, disseram que Ustra comandava as sessões de tortura com espancamento, choques elétricos e tortura psicológica. Das celas, relatam que ouviam gritos e choros dos presos.
"Não é crível que os presos ouvissem os gritos dos torturados, mas não o réu [Ustra]. Se não o dolo, por condescendência criminosa, ficou caracterizada pelo menos a culpa, por omissão quanto à grave violação dos direitos humanos fundamentais dos autores", afirmou o magistrado.
"É uma decisão excelente. O juiz atendeu a nosso pedido de justiça, de dar nomes aos torturadores", disse Maria Amélia.
Ex-presos políticos devem se reunir hoje [10/10] no antigo prédio do DOI-Codi, em São Paulo, que reúne arquivos do regime militar e exposição de obras de arte.

[Folha de São Paulo, 10/10/2008]

140 anos: Tempo em manifesto

Que as classes dominantes tremam à idéia de uma revolução comunista! Os proletários nada têm a perder a não ser suas algemas. Têm um mundo a ganhar. Proletários de todo o mundo, uni-vos!”.

Foi com essa conclamação que Karl Marx e Friedrich Engels concluíram, em fevereiro de 1848, o Manifesto do Partido Comunista.
Para refletir sobre as qualidades e os equívocos desse texto, o Olhar Virtual entrevistou Marco Aurélio Santana, coordenador do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS/UFRJ, e Marcelo Braz, professor da Escola de Serviço Social (ESS/UFRJ).

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Quando os trabalhadores fazem a história - Um olhar sobre a Revolução Russa

Os últimos dias de outubro de 1917 foram eletrizantes na Rússia. Greves, manifestações, reuniões, movimentos de tropas. Folhetos e jornais tentavam atrair os leitores para as mais variadas posições. Os bolcheviques lançam a palavra de ordem “Todo poder aos Sovietes!”.

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O brega desconstruído

Paulo César de Araújo fala sobre a música brega durante o regime militar

Se vivo, Euclides da Cunha concordaria: o cantor brega também é, antes de tudo, um forte. Sobreviventes da pobreza e do trabalho infantil, estes artistas conviveram com duras críticas a seus trabalhos mesmo depois de se tornarem celebridades. O enorme sucesso não evitou que fossem excluídos da historiografia da música brasileira por décadas. Ouvido por muitos e desprezado por poucos, o brega voltou às páginas dos jornais este mês por conta da morte de Waldick Soriano, cantor, compositor e ícone deste movimento.

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A guerra das palavras

Pais pressionaram direção de colégio a demitir professor -"disseram-me que havia um parecer de psicólogos e juristas condenando a combinação de professor e escritor", afirma; instituição não se manifesta

LAURA CAPRIGLIONE

Poeta e professor de literatura, Oswaldo Martins Teixeira, 47, foi demitido no dia 11 de setembro da Escola Parque do Rio de Janeiro, onde lecionava para turmas de 7º e 8º anos do ensino fundamental. Pais de alunos descobriram que Teixeira escreve poemas eróticos; ele os publicou em livros e em um blog. Pediram a cabeça do professor.
A escola moderna, construtivista, mensalidade de R$ 1.161, unidades na Barra da Tijuca e no aristocrático bairro da Gávea, que funciona sob o lema "Uma escola que estimula a expansão cultural", demitiu.
Formado em letras pela Pontifícia Universidade Católica, o professor Teixeira obteve o título de mestre na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, com a dissertação "Erotismo e Gramática, Índices da Defloração - Uma Leitura de Manoel de Barros", de 1992.
Há quatro anos, prepara seu doutorado na Universidade Federal Fluminense sobre o poeta, escritor e dramaturgo italiano Pietro Aretino (1492-1556).
"Diverti-me escrevendo os sonetos que podeis ver. A indecente memória deles, eu a dedico a todos os hipócritas, pois não tenho mais paciência para as suas mesquinhas censuras, para o seu sujo costume de dizer aos olhos que não podem ver o que mais os deleita."
O texto é de Aretino. Refere-se aos "Sonetos Luxuriosos", escritos em linguagem explícita a partir de 16 gravuras eróticas de Giulio Romano, discípulo de Rafael Sanzio, um dos maiores mestres em pintura e arquitetura, contemporâneo de Michelangelo e Da Vinci.
Aretino e Giulio Romano nasceram no ano da descoberta da América, durante o Renascimento das carnes e dos sentidos. Juntos, elaboraram uma obra-prima do despudor.
"Ousei criar poemas à moda de Aretino", justifica o professor em tempos politicamente corretos.
Autor de quatro livros publicados pela 7 Letras -"Desestudos" (2000), "Minimalhas do Alheio" (2002), "Lucidez do Oco" (2004) e "Cosmologia do Impreciso" (2008)-, Teixeira mantém um blog (http:// osmarti.blogspot.com).
"a alice no país das baboseiras/ é uma garota esperta// prefere foder com a coleguinha/ usar celular/ batom// cortar as cabeças/ dos mendigos." O poema figura na "Cosmologia do Impreciso".

Fogueira ardendo
Foi na preparação da Semana Literária da Escola Parque (realizada em maio) que a fogueira do professor começou a arder. "A coordenação me pediu que fosse às salas de aula do 7º e do 8º anos para divulgar o meu processo de escrita e o blog. Contei como eu criava, falei de minha paixão pela literatura, tentei mostrar que inclui saber ler as estrelas no céu, os passos até a banca de jornal."
Na mesma semana, os garotos deram um "google" e descobriram o blog do professor na internet. Escândalo.
Pais foram até a coordenação pedagógica reclamar do que consideravam ser um conteúdo inadequado, pornográfico, obsceno. O professor foi chamado a se explicar: "Eu disse que não via problema nenhum, que a literatura erótica é tão antiga quanto a própria literatura."
A lista de livros sugeridos neste ano para os alunos do primeiro ano do ensino fundamental da Escola Parque inclui "Poemas para Brincar" e "Olha o Bicho", de José Paulo Paes (1926-98). Um "google" no nome do poeta e vem "Fodamos, meu amor, fodamos presto. Pois foi para foder que se nasceu...". É a tradução dos "Sonetos Luxuriosos" de Aretino, que Paes providenciou -a primeira feita para o português.
Na biblioteca da Escola Parque, pode-se ler o livro "Belo Belo e Outros Poemas" de Manuel Bandeira (1886-1968), o mesmo autor de "A Cópula" -só vendo.

A luta da poesia
Na Feira do Livro, edição de 2002 da Escola Parque, os alunos prestaram homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade, cujo centenário era comemorado naquele ano.
"A língua lambe as pétalas vermelhas da rosa pluriaberta; a língua lavra certo oculto botão, e vai tecendo lépidas variações de leves ritmos. E lambe, lambilonga, lambilenta, a licorina gruta cabeluda, e, quanto mais lambente, mais ativa, atinge o céu do céu, entre gemidos, entre gritos, balidos e rugidos de leões na floresta, enfurecidos."
No início de setembro, o professor Teixeira foi chamado para uma reunião no Instituto Moreira Salles, que fica na mesma rua da Escola Parque.
Foi no local construído nos anos 1950, um monumento ao modernismo carioca, que se comunicou a demissão.
"Disseram-me que havia um parecer de psicólogos e juristas condenando a combinação do professor com o escritor em uma só pessoa", lembra Teixeira. "Não pude discutir com nenhum pai, não houve debate nenhum", diz. "Impôs-se a sombra da censura e do controle porque a escola simplesmente decidiu ceder a um grupo de pais dos quais nem sequer sei os nomes."
Casado há 24 anos, pai de três filhos, o professor mora no bairro de Laranjeiras. "Meu problema não é a empregabilidade. Estou muito mais preocupado com o obscurantismo, com a certeza dos censores. A poesia luta contra isso. E foi muito trabalho até me transformar em um poeta. Não posso abrir mão disso", diz.

[Folha de São Paulo, 05/10/2008]

20 anos da Constituição



A Folha de São Paulo pergunta: O saldo da Constituição Federal de 1988 é positivo para o Brasil?

SIM: Democrática e progressista

VINTE ANOS de estabilidade política e econômica e avanços significativos no sentido da democratização da sociedade e da correção das injustiças sociais: essa é a realidade brasileira de hoje, e esse balanço positivo é devido, em grande parte, à Constituição de 1988.
Com efeito, graças aos princípios e normas que ela consagrou e aos instrumentos de ação política e jurídica nela estabelecidos é que tem sido assegurada, sem esforço, a continuidade da ordem constitucional democraticamente estabelecida no Brasil.
A par disso, vem crescendo continuamente a influência da Constituição na sociedade brasileira. Mudando seu tradicional ceticismo, as pessoas estão acreditando que têm direitos e que vale a pena lutar por eles.
Para a correta avaliação da Constituição e dos resultados obtidos a partir de sua vigência, é importante lembrar, antes de tudo, que ela foi o resultado de intensa mobilização social em favor da dignidade da pessoa humana.
A partir das reações contra as violências praticadas pela ditadura militar, alguns pontos foram ficando claros, e o potencial cívico adormecido do povo brasileiro foi sendo despertado.
Com efeito, ficou evidente a associação do uso da força com o objetivo de preservação de privilégios tradicionais, pois as vítimas das violências eram, em sua grande maioria, pessoas e organizações que propunham mudanças na ordem social, política e econômica brasileira visando a eliminação de injustiças tradicionais.
Assim surgiu a idéia de eliminar a ditadura e, concomitantemente, estabelecer uma ordem social mais justa por meio de uma Constituinte.
Um dado histórico de fundamental importância é que o povo continuou mobilizado mesmo depois de instalada a Constituinte, apresentando propostas e buscando contrabalançar o peso dos oligarcas ali presentes.
O resultado disso tudo foi a Constituição de 1988, que é, sem nenhuma dúvida, a mais democrática de todas as que o Brasil já teve, tanto pela participação do povo quanto por seu conteúdo, pois nela estão consagrados não só os tradicionais direitos individuais, mas também os direitos econômicos, sociais e culturais.
Esse é, aliás, um dos pontos indicados pelos adversários da Constituição -geralmente pessoas apegadas aos antigos privilégios- como utópicos e fora da realidade.
Desmentindo essa crítica, basta olhar para a realidade brasileira de hoje para verificar que não só aumentou consideravelmente a porcentagem de brasileiros com acesso a direitos como educação e saúde, como tem aumentado a exigência de efetivação desses direitos por meio de ações judiciais ou de manifestações de organizações sociais. Isso demonstra que o povo passou a acreditar que tem direitos e começou a lutar por eles.
Quanto aos defeitos da Constituição, é importante assinalar que algumas das alegadas imperfeições são assim qualificadas por incompreensão ou por se referirem a pontos que os saudosos dos antigos privilégios consideram negativos.
O que importa é que a Constituição de 1988 é, efetivamente, na sua essência, a expressão da vontade do povo. É claro que alguns aperfeiçoamentos são necessários, como a modificação do processo eleitoral, para dar mais autenticidade à representação e impedir práticas de corrupção.
A par disso, há ainda um longo caminho a ser percorrido para eliminar injustiças gritantes, como a existência de crianças e jovens vítimas de pobreza, vivendo à margem da sociedade. Há, também, a necessidade de eliminar vícios tradicionais que são causas de desigualdade regional e social.
Mas a conclusão, pelos dados divulgados pela imprensa, assim como pelo que se verifica facilmente em grande parte do Brasil em termos de redução das discriminações e marginalizações, é que há bons motivos para comemoração, pois a Constituição foi um passo de grande importância no sentido de assegurar a existência de uma ordem baseada no direito, tendo como fundamento a dignidade da pessoa humana e prevendo os meios para que, por vias pacíficas, as pessoas de boa vontade lutem para que os direitos fundamentais sejam direitos de todos, e não privilégios de alguns.

DALMO DE ABREU DALLARI, 76, é professor emérito da Faculdade de Direito da USP. Foi secretário de Negócios Jurídicos do município de São Paulo (gestão Erundina).

NÃO: Um entrave ao desenvolvimento do país

EM 1988 , a expectativa em torno da Constituição era enorme.
Imaginava-se que ela criaria condições para a correção das injustiças sociais, a consolidação da democracia e a retomada do desenvolvimento econômico. Mas o mundo passava por transformações tão rápidas que os constituintes não souberam acompanhá-las: nossa Carta Magna nasceu na contramão da história.
É bem verdade que, não obstante seus defeitos, a Constituição de 1988 representa um marco importante para o país: o fim de um ciclo autoritário e o início de uma experiência democrática, que se pretende duradoura.
Há, com efeito, virtudes no texto constitucional; porém, elas aparecem em menor número que os defeitos.
A Constituição dita "cidadã" é um documento provocativo, criativo, mas, por suas características, desestabilizador da vida nacional. Não há exagero em afirmar que seu advento provocou enorme insegurança jurídica, dificultou a governabilidade, inibiu negócios e investimentos, sem falar nos conflitos sociais que gerou.
Multiplicam-se no texto as normas problemáticas, controvertidas e inexecutáveis. Há quase um geral reconhecimento de que nossa Carta Magna trouxe mais dúvidas do que certezas quanto à interpretação de seus inúmeros artigos e infindáveis emendas que se sucedem no tempo.
Tempo esse, aliás, inimigo da nossa Constituição. A história se fazia, mas os constituintes não o notaram. Não olharam em torno de si. Ignoraram as profundas alterações no mundo por força de uma revolução que não conheciam: a da alta tecnologia.
Assim também no campo político: não perceberam o declínio das ideologias. Não viram que o debate do fim de século não seria mais entre a esquerda e a direita, mas entre o velho e o novo, o ineficiente e o eficiente. Ignoraram ainda que o gigantismo do Estado passava a ser mais um fator de atraso que um agente do progresso.
Igualmente não se deram conta da mudança radical havida no relacionamento entre os países. Falhou a percepção para ver que os vários sistemas econômicos operavam em bases transnacionais e que capital, ciência e tecnologia se internacionalizavam.
Entre os muitos problemas que ainda poderíamos mencionar, até na área social, vamos nos concentrar no preconceito, um dos maiores defeitos de origem da Constituição. Pois não bastou para aplacar o arraigado preconceito dos constituintes produzir uma Carta democrática; impôs-se fazê-la "antiautoritária". Mas, à força de corrigir males do passado, os constituintes se esqueceram do porvir.
As Forças Armadas, por exemplo, foram alvo favorito de preconceitos, bem como o foi o sistema de informação: no intuito de punir os abusos do passado, desarmou-se o Estado contra o terrorismo, o banditismo ideológico, as quadrilhas de corrupção.
O empresário, por sua vez, foi posto sob dupla suspeita: politicamente, pois foi conivente com o autoritarismo, e economicamente, pois é um ser anti-social, que deve ser humanizado por imposição do legislador.
Eis aqui, por sinal, o vício que perpassou todo o trabalho: insatisfeitos com a realidade, os constituintes acreditaram ser possível rejeitá-la radicalmente e modificá-la por ato de vontade. Erro crasso imaginar que a Constituição, por si, poderia tanto definir as condições das mudanças como criar ou impor tais condições.
Dominados pelo desejo de inovar, os constituintes saltaram além da realidade histórica para cair num espaço e num tempo imaginários. Pretenderam produzir a mais perfeita e completa Constituição, algo pronto, acabado, um produto no qual tudo parece simples e coordenado, uniforme, justo e racional. Não o fizeram.
É bem verdade que a lei, qualquer lei, por si só, não cria desenvolvimento político, econômico e social. Mas a Constituição tem comprovado que o contrário ocorre: a má lei pode inibir o desenvolvimento de um país pelas reiteradas crises que provoca.
Parece-nos irrefutável esta conclusão: a Constituição de 1988 está longe de ser o instrumento que pode garantir ao país uma democracia estável e um desenvolvimento auto-sustentado. É preciso aproveitar a experiência desses 20 anos para escoimar a Carta dos erros e preservar os acertos, resgatando o país para a modernidade.

NEY PRADO é presidente da Academia Internacional de Direito e Economia.

[Folha de São Paulo, 04/10/2008]