O estrangeiro perplexo

Gaudêncio Torquato
O estrangeiro que chega ao País sem passar pela ponte que liga o lado da ficção à banda da realidade toma um susto: o Brasil está sendo passado a limpo. Organismos policiais, escudados na maior rede de espionagem da história pátria, estouram máfias e arrebentam fronteiras de corrupção. Operações se sucedem, cada uma com direito a nome fantasia para tipificar o evento, sem limitações de espaços e perfis. Políticos, empresários, profissionais liberais, pessoas de todos os calibres são captadas pela gigantesca lupa da mais contemporânea extensão orwelliana do Big Brother. O Estado moral se impõe, absoluto, jogando no leito do governo que o dirige feitos surpreendentes, alguns de nítido caráter espetaculoso, com presos algemados, entre eles advogados, figuras que, por dever de ofício, jamais se arriscariam a correr se estivessem de punhos livres. O estrangeiro nem desconfia que, simbolicamente, a algema é um traço que separa o passado do presente, o facão estropiado da injustiça de outrora da lâmina afiada da hodierna Justiça. É isso que o selo lulista quer passar.
As estruturas a serviço do Estado moral lubrificam mecanismos de vigilância e estendem seus tentáculos sobre os mais recônditos abrigos da corrupção. O Ministério Público, povoado por jovens promotores, alguns tocados pela chama cívica, aciona dispositivos e faz subir aos céus uma montanha de denúncias. Não se lhes tira o mérito de contribuírem para a limpeza ética nos devastados terrenos da administração pública. Fica, porém, patente a existência de dois grupos, um composto por perfis guiados por padrões éticos, outro encantado com o brilho midiático, pronto a ilustrar a galeria do Estado espetáculo. O próprio Judiciário entra na campanha moralizadora, não economizando locução. Nos últimos tempos, tornaram-se freqüentes manifestações de teor polêmico emitidas por membros da alta magistratura, nos vazios abertos pelo Parlamento nacional, e a título de interpretar pontos obscuros da legislação, particularmente no campo partidário. O nosso estrangeiro se arrepia ao perceber que o DNA da política corre nas veias dos guardiães da lei.
No afã de implantar uma reforma de costumes na arena eleitoral, o bem-intencionado ministro Carlos Ayres Britto, novo presidente do Tribunal Superior Eleitoral, promete aprumar o olho em direção a candidatos de ficha suja. Parte do pressuposto de que alguém envergando a tarja de processos criminais e de improbidade administrativa não pode entrar no vestibular das eleições. Põe em xeque o consagrado princípio do direito penal: um candidato só se torna inelegível se for condenado com sentença transitada em julgado. O ministro vale-se do inciso 9º do artigo 14 da Constituição federal, que manda considerar “a vida pregressa do candidato”. A discussão está posta às vésperas do pleito municipal, em que milhares de candidatos com fichas manchadas entrarão de qualquer jeito, até por saberem que nossa Justiça é lenta como tartaruga.
Ao enxergar a feição moral moldada por nossas instituições e estampada na mídia, o estrangeiro não resiste à primeira leitura de que o Brasil é rigorosa nação emergente. Para arrematar a convicção, vê o presidente Luiz Inácio justificando a entrada do País no ranking do investment grade por conta da seriedade do governo. De fato, desde os tempos do experimentalismo monetário, o País virou a página à barbárie populista, voltada para o aceno às massas. Como o estrangeiro desta narrativa é um anglo-saxão de cultura racional começa, no entanto, a desconfiar de que, por aqui, a seriedade tem um quê de deboche. Ele se pergunta por que o presidente da República passa todos os dias da semana em palanque perorando sobre um filho de nome pomposo - Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) - e apresentando ao povo a mãe do rebento e candidata in pectore à Presidência da República, ministra Dilma Rousseff. Surpreende-se quando descobre que a campanha presidencial será apenas em 2010. Fica mais embasbacado quando constata que, de R$ 17,2 bilhões já autorizados para se gastarem no PAC este ano, apenas R$ 1,9 bilhão foi empenhado e, deste, apenas R$ 13,7 milhões pagos. Se o Brasil escapou do populismo (será?), raciocina o visitante, parece não ter saído da barbárie gerencial.
Pergunta a um interlocutor o que significa a frase presidencial gritada num púlpito do Piauí: “Ninguém segura este país.” É dito a ele que se trata de um bordão muito conhecido nos tempos da ditadura militar. E no instante em que o “como assim?” engasga na garganta do estrangeiro, a ele se explica que a frase pertence ao vocabulário ufanista, em que abundam paradoxos e superlativos. Não deveria ser levada a sério. Até porque o atual governo sabe que há máquinas obsoletas que seguram o País, impedindo mudanças. Os portos oferecem estrutura defasada. A malha viária é um quebra-molas da logística. A navegação aérea retrocedeu. O sistema ferroviário não evoluiu. O saneamento básico racha a cara da cidadania. A burocracia enfeita o paternalismo com florestas de papel e tinta. A carga tributária apunhala setores produtivos. O cipoal normativo sufoca o empreendedorismo. A segurança jurídica é frouxa. As agências reguladoras continuam à procura de uma biruta. E o assistencialismo em forma bruta detém o avanço. Enfim, cai a ficha do nosso visitante.
Nesse ponto, as bandas do quase nada e do quase tudo se juntam. O Brasil, conclui ele, é um país que patina na relatividade. O cabo-de-guerra puxado pelas alas dá empate. Os mutirões éticos são louváveis. Mas a pirotecnia é pérfida. Usar métodos científicos para investigar o assassinato de uma garotinha é avanço. Mas botar a boca no trombone diante de câmeras, holofotes, microfones, antes de exame da Justiça, é execrável. Na era do Estado espetáculo, até o denuncismo cai em desgraça. Que o diga o jogador Ronaldo, que conseguiu o “fenômeno” de transformar acusadores em réus.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político

[O Estado de São Paulo, 11/05/2008]
1 Response
  1. Esse senhor Gaudencio é hilário.
    Será que ele não sabe que tem advogados piores que qualquer preso de alta periculosidade?