Em um mundo em movimento, Cabo Verde tenta lidar com a migração global

Virtualmente todos os aspectos da migração global podem ser vistos neste minúsculo país do oeste da África, onde o número de pessoas que partiram se aproxima do número das que permaneceram e quase todos têm um parente próximo na Europa ou nos Estados Unidos.

O dinheiro dos emigrantes escora a economia. O voto dos emigrantes influencia a política. A partida dos emigrantes separa pais de filhos e a mais famosa canção da mais famosa cabo-verdiana venera a emoção nacional, "Sodade" (saudade). A conversa sobre oportunidades no exterior se mistura nas mesas de café daqui com relatos de documentos falsos e casamentos simulados.

A intensidade da experiência nacional torna este arquipélago árido na Galápagos da migração, um microcosmo de forças pressionando a política americana e refazendo sociedades por todo o globo.

Cerca de 200 milhões de pessoas vivem fora de seu país de origem e ajudam a sustentar um número tão grande ou maior nos países em desenvolvimento. Os migrantes enviaram para casa cerca de US$ 300 bilhões no ano passado -quase três vezes os orçamentos de ajuda internacional mundiais somados. Tais somas estão construindo casas, educando crianças e promovendo pequenas empresas, tornando a migração um ponto central na discussão sobre como ajudar os pobres do mundo. Um importante texto acadêmico chama esta a "Era da Migração".

Mas também é a era do alarme de imigração, com embarcações européias patrulhando as costas africanas para interceptar os contrabandistas de seres humanos e novas cercas sendo planejadas ao longo do Rio Grande. Os países que querem a força e inteligência dos imigrantes também querem mais controle das fronteiras. Muitos deles consideram os imigrantes ilegais uma ameaça à segurança, especialmente em uma era de terrorismo, e temem que uma imigração em grande escala, mesmo quando legal, pode minar salários, exigir serviços onerosos e sujeitar as identidades nacionais às fogueiras do conflito religioso e cultural.

O que está em jogo pode ser visto aqui em Mindelo, um semicírculo de colinas áridas com vista para o único sinal de vida natural, o mar atrativo. Em um país com pouca chuva e uma história de fome, a emigração começou como uma necessidade e se tornou parte do DNA cívico. Você pode jantar no Cafe Portugal, beber no Bar Argentina e caminhar pela avenida da Holanda.

Mas a Holanda agora exige que os imigrantes passem em uma prova de cultura e língua holandesa. Outros países aumentaram o preço dos pedidos de visto, desencorajam os candidatos ao exigirem que viagem para a capital cabo-verdiana, Praia, e impondo novas penas aos empregadores que contratam imigrantes ilegais.

Apesar de a Holanda ter sido por muito tempo o destino favorito para os habitantes desta ilha, uma canção cabo-verdiana atualmente alerta que "a Holanda pertence aos holandeses".

Cuidado
Porque eles podem fazer você voltar nadando.
E você voltará para casa com algas nos dentes

Mindelo, a segunda maior cidade de Cabo Verde, tem cerca de 63 mil habitantes e um número aproximadamente igual de variações do conto do emigrante.

No bairro de Monte Sessego na encosta, Maria Cruz, 70, sorri diante do jogo de móveis de sala de estar que seu filho enviou de Roterdã, Holanda. A caminho do aeroporto, Stenio da Luz dos Reis, 17, estuda holandês e espera se juntar à sua mãe na Holanda. Na praia, Orlando Cruz, 46, olha para mesas vazias. Ele caiu de uma escada em Nova Jersey, Estados Unidos, e usou o dinheiro do seguro para abrir um hotel e um restaurante, que no momento estão praticamente vazios.

Enquanto o barulho de construção enche sua casa inacabada, Evanilda Lopes, 27, fala livremente sobre os documentos falsos que lhe permitiram entrar na Holanda.

Enquanto corre para trocar seu medicamento para HIV, Manuel Gomes, 41s, é igualmente franco sobre os crimes que o fizeram ser deportado de Providence, Estados Unidos. Ele se mudou para lá quando era pequeno e cresceu nas ruas -vendendo drogas, roubando carros e casas. Agora, como centenas de outros deportados dos Estados Unidos, ele se vê um homem sem país, exilado para um mundo altamente estrangeiro apesar de ser seu lugar de nascimento.

"Você tem um cabo-verdiano aqui que cortaria seu próprio braço para poder voltar", disse Gomes, que vive em uma choupana de um cômodo sem água corrente ou eletricidade.

Se Cabo Verde é a Galápagos da migração, o doutor Jorgen Carling, um geógrafo norueguês, é seu Darwin. Uma estrela em ascensão no circuito acadêmico, Carling, 32, visitou Cabo Verde há dez anos, aprendeu sozinho o português crioulo, a língua local, e tem retornado desde então.

"Cabo Verde é uma vitrine das contradições e fricções da migração global", ele disse. "É uma transição bastante dramática -de ser tão dependente da emigração a tentar lidar com um mundo no qual as fronteiras estão se fechando."

Ele cita uma abundância de tensões. A migração reduz a pobreza. Mas ela aumenta a desigualdade entre os emigrantes e os demais em casa. A emigração pode expressar devoção familiar. Também pode atrapalhar os laços familiares.

E, apesar de a migração estar atualmente em níveis recordes, também é grande a frustração das pessoas que querem emigrar, mas não podem. Isso porque, à medida que a emigração aumenta, o desejo de experimentar suas recompensas econômicas cresce ainda mais.

"A migração provavelmente é mais importante para mais pessoas do que já foi", disse Carling, do Instituto Internacional de Pesquisa da Paz, um grupo sem fins lucrativos em Oslo. "Mas o que caracteriza o mundo atual também é o sentimento de imobilidade involuntária."

Esses conflitos podem ser vistos em um casa de blocos de concreto em uma colina árida, onde a migração une e divide quatro gerações. Aos 79 anos, a proprietária, Antônia Delgado, é velha o bastante para lembrar da fome e que passou décadas vivendo em um barraco feito de latões de óleo usados. Graças ao dinheiro que seu filho enviou da Holanda, ela tem quatro cômodos, luzes elétricas e abastecimento de água.

Mas ela não tem mais um filho. Ela parou de telefonar há mais de cinco anos e ela não sabe se ele está vivo. "Eu estou muito preocupada", ela disse. "Ele me ajudou tanto."

Agora ela conta com o dinheiro enviado por um segundo emigrante da família, sua neta Fátima, uma babá em Portugal. Ela envia para Antônia uma ajuda mensal de US$ 135, mas fez com que ela tivesse que criar o filho da neta, um menino de 11 anos sem os dois dentes da frente e com um sorriso irreprimível.

O menino, Steven Ramos, passa por complexidades paralelas. O salário de sua mãe compra material escolar, aulas de artes marciais e um ocasional DVD. Mas ela foi embora há cinco anos e voltou para casa apenas uma vez. O pai trabalha na Holanda e raramente telefona. Steven o chamou de "ingrote" -ingrato- escolhendo um termo cabo-verdiano para emigrantes que esquecem aqueles que ficaram para trás.

Apesar de a mãe de Steven agora ter uma permissão para trabalho, ela não conseguiu um visto para Steven, que passou sua infância pensando que a reunião seria iminente. Ele chorou quando a visita recente dela terminou, mas viu sua partida como a maioria dos cabo-verdianos, como algo natural, necessário e bom. "Eu chorei, mas não fiquei triste porque sabia que ela precisava ir", ele disse. "Ela foi para nos dar melhores condições."

Uma identidade associada à migração
Sem a migração, Cabo Verde não existiria. A cadeia de dez ilhas, a 620 km da costa do Senegal, era desabitada até o século 15, quando Portugal a colonizou com dois grupos de imigrantes -europeus e escravos africanos. Cabo Verde se tornou uma mistura crioula de ambos os continentes e um depósito de suprimentos para o comércio de escravos.

A emigração em massa teve início no final dos anos 1800, em baleeiros que levavam os cabo-verdianos para a Nova Inglaterra. Ela continuou após a Segunda Guerra Mundial, com os planos europeus de trabalhadores convidados, que buscavam mão-de-obra temporária, mas trouxeram pessoas de forma permanente.

Estes mesmos planos trouxeram os turcos para a Alemanha, os sul-asiáticos para o Reino Unido e os norte-africanos para a França, e, uma geração depois, muitos europeus permanecem preocupados com a continuidade dos conflitos culturais. "Nós pedimos trabalhadores, mas recebemos povos", é um famoso lamento europeu.

Cabo Verde ganhou a independência de Portugal em 1975, aproximadamente na mesma época em que os planos de trabalhadores temporários acabaram. Ainda assim, a emigração cabo-verdiana prosseguiu -legal (por meio das leis de reunificação de famílias) e ilegalmente (por meio de turistas que permanecem após a expiração dos vistos). Muitas pessoas daqui viajam com vistos de turismo, então procuram um cidadão europeu ou americano para casamento, freqüentemente algum descendente de cabo-verdiano.

A migração é tão central na identidade dos cabo-verdianos que eles freqüentemente se gabam do fato de o número de emigrantes ser maior do que o da população que permanece no país. Isto é tecnicamente verdadeiro, disse Carling, apenas quando se conta os emigrantes e seus descendentes. Por tal padrão, ele estima a existência de 460 mil cabo-verdianos nas ilhas e 500 mil no exterior, incluindo 265 mil nos Estados Unidos.

"Sodade", o sucesso de Cesária Évora, uma moradora de Mindelo e vencedora do prêmio Grammy, transmite a "saudade, saudade, saudade de minha ilha".

Alguns estudiosos argumentam que os migrantes formam uma parcela recorde da população mundial, apesar de que os dados deficientes tornam difícil comparações históricas. Apesar do atual alarme, a migração provavelmente aumentará. As economias ricas com força de trabalho que está envelhecendo precisam de mão-de-obra. Os trabalhadores nos países pobres precisam de empregos. É difícil impedir que as fronteiras sejam cruzadas e as recompensas da mudança nunca foram tão grandes. O aumento salarial médio que aguarda os atuais migrantes não qualificados, em termos corrigidos pela inflação, é aproximadamente duas vezes maior do que os obtidos pelos migrantes há um século, durante o último grande período de migração global.

Os economistas geralmente argumentam que a migração ajuda as economias ricas a crescer, ao suprir a mão-de-obra necessária, apesar de alguns trabalhadores domésticos com baixa qualificação poderem sofrer reduções salariais devido ao aumento da concorrência.

Desde o início, Cabo Verde abraçou seus emigrantes -como parentes, investidores, lobistas por ajuda estrangeira, válvulas de segurança para o crescimento populacional e no final como eleitores. Com a ajuda dos emigrantes, Cabo Verde dobrou sua renda per capita desde 1990, para cerca de US$ 2.100, um valor alto para os padrões africanos. As remessas de dinheiro para casa correspondem a 12% do produto interno bruto e já foram duas vezes mais altas. Os emigrantes elegem seus próprios representantes na Assembléia Nacional.

Mas os especialistas em desenvolvimento estão divididos quanto aos efeitos da migração. As remessas de dinheiro alimentam e fornecem moradia aos pobres, assim como os emigrantes às vezes voltam com novos contatos de negócios e idéias.

Mas a emigração também pode drenar o talento dos países e promover a dependência, entre indivíduos e governos. Nenhum país saiu da pobreza apenas por meio da emigração. Apesar do progresso econômico aqui, o índice de desemprego paira acima de 20% e o setor que mais cresce, o turismo, é dominado por empregos com má remuneração.

Apesar de Carling admirar a capacidade de Cabo Verde de se reinventar como um país além de suas fronteiras, ele também vê problemas com a constante ênfase nas partidas. Elas podem enfraquecer os relacionamentos, encurtar a duração de casamentos e promover indiferença entre estudantes e trabalhadores. "A possibilidade de dependência das remessas de dinheiro -e da perspectiva de ir para o exterior algum dia- pode alienar a pessoa do ambiente", disse.

Enquanto os cabo-verdianos lutam para partir, outros estão imigrando. Esta também é uma característica da era da migração -a maioria dos países que enviam emigrantes também recebe imigrantes, ressaltando quanto o fenômeno é universal. Quase metade dos migrantes de países pobres se mudam para outros países pobres.

Mindelo, na ilha de São Vicente, está cheia de lojistas chineses em busca de novos mercados e mascates do oeste da África que fogem de países devastados pela guerra e por miséria pior. Muitos esperam se mudar para as Ilhas Canárias, que fazem parte da Espanha, a bordo de embarcações perigosas de contrabando, em jornadas que matam centenas, se não milhares, a cada ano.

"Isto é vida e morte", disse Emmanuel Kofi Cathline, um mascate local que partiu de Gana há 17 anos e já ganhou dinheiro ajudando emigrantes a marcarem as jornadas ilegais. Apesar de ações policiais o terem tirado do ramo, ele permanece leal ao que poderia ser chamado de necessidade global dos migrantes. "Se um lugar não é bom, se mude", disse. "Vá para outro lugar!"

Teste de otimismo
Apesar das crescentes barreiras, muitos cabo-verdianos permanecem confiantes de que partirão. Stenio da Luz dos Reis, o adolescente que está estudando holandês, atendeu a porta com grande otimismo: camiseta e bermuda laranja -você consegue imaginar qual é a cor nacional holandesa?- com a palavra "Holanda" escrita em suas costas.

Sua mãe partiu para a Holanda há seis anos, para trabalhar como empregada, e suas irmãs mais novas acabaram de se juntar a ela. Por ter passado dos 16 anos, Stenio ficou para trás, com um manual contendo cem perguntas em holandês.

Trinta aparecerão em uma prova. A 62ª é sobre se é importante aprender holandês rapidamente. (É.) A 59ª pergunta se bater na esposa é permitido. (Não é.)

Stenio paga US$ 70 por mês por um professor e prestará o exame em Dakar, que fica a duas horas de avião. Mas ele não se queixa. "É bom", ele disse sobre a prova. "Assim chegamos lá tendo uma idéia de como é." Além disso, ele acrescentou, "é o país deles".

Do outro lado da cidade, Evanilda Lopes, 27, tem mais experiência e menos otimismo. Uma mulher cheia de estilo com lantejoulas em sua camiseta e mechas loiras em seu cabelo, ela foi criada com relatos de moda e conforto de seus irmãos mais velhos na Europa. Ela abandonou a escola aos 17 anos e passou cinco anos buscando um visto de turismo, que chegou apenas depois de ter inventado uma conta bancária e um emprego fictícios. "Era a única forma de poder ir", disse.

As coisas azedaram na Holanda. Sua tia arrumou três holandeses com os quais poderia se casar, mas Evanilda os rejeitou. O clima na casa ficou hostil. Evanilda foi morar com um encanador holandês e eles tiveram um filho chamado Giovanni. Pessoas que vivem juntas na Holanda têm direitos de residência, mas quando o relacionamento acabou, também chegou ao fim sua permissão para ficar.

Ela voltou para casa no ano passado carregada dos bens de luxo que foi para a Europa para encontrar -cintos, bolsas, sandálias, perfume. Ela os vendeu nas ruas e ganhou dinheiro suficiente para começar a construir uma casa para ela e Giovanni, 5, que acabou de chegar a um país que não conhece.

Evanilda chama sua estadia na Holanda tanto de bênção como de maldição. "Eu era jovem, não sabia que a vida era tão difícil", ela disse. Com uma casa inacabada e planos pela metade, ela tem seus pés em uma costa, sua cabeça em outra e sua inocência perdida em algum ponto no meio do caminho.

Jason DeParte, em Mindelo, Cabo Verde. Tradução: George El Khouri Andolfato

[The New York Times, 24/06/2007]
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