Cúpula das Américas: uma década de desencontros entre EUA e América Latina

Fernando Gualdoni
Em MadriA era Bush foi nefasta para as relações entre a América Latina e os EUA. A 5ª Cúpula das Américas que começou nesta sexta-feira (17) em Trinidad e Tobago é a mais importante desde 1994, quando o ex-presidente Bill Clinton lançou a ideia do Acordo de Livre Comércio das Américas (Alca) com o objetivo de reduzir drasticamente a pobreza. Depois daquele primeiro encontro em Miami, 15 anos atrás, o clima das relações regionais foi bastante propício para forjar acordos econômicos. Mas as crises econômicas, primeiro a de 1995 no México e depois a de 1998 - que fez tremer Brasil e Argentina -, derrubaram todos os esforços de integração. Além disso, a intransigência e certa prepotência americana na hora de negociar acordos comerciais também não ajudaram muito a consolidar a ideia da Alca.

Em 2001, na cúpula de Quebec, os dirigentes americanos conseguiram seu maior sucesso: introduziram a cláusula democrática, que prevê que qualquer alteração ou ruptura da ordem democrática em um país é um "obstáculo insuperável" para sua participação nos fóruns hemisféricos. A cláusula foi adiante apesar das reservas do presidente venezuelano, Hugo Chávez, e hoje é o principal obstáculo para que um país como Cuba possa se incorporar normalmente às organizações americanas. Após a cúpula canadense, em abril de 2001, houve uma tentativa de Washington de reanimar a Alca, mas tudo ficou enterrado depois dos atentados de 11 de Setembro.

O ataque concentrou toda a atenção dos EUA na Ásia Central e no Oriente Médio, e a Casa Branca fechou a porta de trás, a que dá para a América Latina. O único interesse de Washington nesse momento se concentrou na tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai, uma histórica região contrabandista e lugar de residência de uma numerosa comunidade muçulmana. Os EUA chegaram a pensar em uma operação militar na área, mas depois de se comprovar que dali se enviava dinheiro para o Hizbollah no Líbano, e pouco mais, a missão foi descartada.

Para a cúpula de 2005 na cidade argentina de Mar del Plata, os EUA já tinham se dado conta de que haviam perdido muito peso na região. A Venezuela já havia conseguido forjar uma frente antiamericana que mais tarde afiançaria graças às alianças com Bolívia e Nicarágua e a simpatia de Equador e Argentina. Entre 2003 e 2008, os anos de bonança econômica para toda a América do Sul devido aos altos preços das matérias-primas, o Brasil aproveitou para se consolidar como potência regional diante da total falta de atenção de Washington.

Hoje Obama sabe que nenhuma iniciativa que puser em ação para melhorar as relações com a América Latina poderá prosperar sem a aprovação de Brasília. Ao final da era Bush, o único aliado político irredutível dos EUA que restava no hemisfério era a Colômbia.

Para reverter a década de desencontros, Obama deu dois passos chaves: primeiro convidou o presidente Lula para a Casa Branca para selar um pacto com o todo-poderoso Brasil. Depois adotou a guerra que seu homólogo mexicano, Felipe Calderón, trava contra o narcotráfico. Outros países latino-americanos, como Colômbia, Peru, Chile e Uruguai, não têm uma atitude agressiva contra os EUA. Pelo contrário, ou têm acordos de livre comércio com Washington ou pretendem tê-los.

O governo da Argentina precisa definir que vínculo quer com Obama. O caso "valisegate" - o escândalo de financiamento da campanha da presidente Cristina Kirchner com dinheiro de Chávez, no qual interveio a promotoria de Miami - provocou mais de um atrito entre os dois países, e embora as relações sejam cordiais continuam frias.

Com o governo equatoriano de Rafael Correa a situação é parecida. Apesar de o presidente ter insistido que as relações são "excelentes", houve acusações de ingerência por parte de Quito e a expulsão de algum diplomata americano. Além disso, o fechamento da base de Manta e o litígio pela expulsão da petroleira Occidental ampliaram o distanciamento.

O que sem dúvida será duro para Obama é reconciliar seu país com a Bolívia e a Venezuela. Inicialmente a relação com Morales não foi ruim. Mas pouco a pouco foi se deteriorando e se rompeu em fevereiro de 2008, quando a rede ABC informou que 30 cooperantes americanos tinham sido instruídos pela embaixada para coletar informação sobre os venezuelanos e cubanos enviados por seus governos para trabalhar na Bolívia.

Em meados desse ano, o embaixador Phillip Goldberg foi expulso depois de se reunir com os governadores de oposição a Morales em plena crise política. Chávez imediatamente apoiou Morales e declarou "persona non grata" o embaixador Patrick Duddy. Além disso, denunciou o enésimo plano da CIA para derrubá-lo. O governo Bush incitou o confronto evocando o acesso da Bolívia ao Pacto Comercial Andino e repatriando cem cooperantes.

As relações entre Washington e Caracas nunca foram excelentes, mas depois do golpe contra Chávez em abril de 2002, no qual o presidente viu a "mão negra" americana, foram de mal a pior. Chávez não parou de atacar os EUA. Com a chegada de Obama, foi primeiramente cético - "Não tenho ilusões, é o império americano". No entanto, depois de sua recente viagem a Teerã, o presidente venezuelano abrandou: "Estou disposto a apertar o botão de reinício".

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

[El Pais, 18/04/2009]
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