O Estados Unidos rejeitam Bush

Na noite de segunda-feira passada [28/01], o presidente George W. Bush compareceu à Câmara dos Representantes para ler o seu sétimo e último discurso sobre o Estado da União, um dos ritos mais característicos da liturgia política americana, oficiado a cada janeiro pelo titular de turno da Casa Branca. Mas, no que terá sido o primeiro esboço de epitáfio da era Bush, o pronunciamento mereceu da mídia do país uma fração apenas da sua atenção ao que rotulou “a esnobada” - o dar de costas do presidenciável democrata Barack Obama à rival Hillary Clinton, no momento em que, ao seu lado no plenário, ela e o senador Ted Kennedy trocavam um aperto de mãos, pouco antes de Bush subir à tribuna. Se um factóide desses ofusca a fala do presidente dos Estados Unidos da América, no evento talvez mais solene que lhe cabe estrelar, é porque o país já lhe deu as costas, 51 semanas antes do fim do seu mandato.
Na vida das nações, é normal que o apelo do futuro próximo, embora ainda indeterminado, ou por isso mesmo, remeta a segundo plano o interesse pelo presente que se esfuma. Daí a expressão “pato manco” (lame duck), significando irrelevância, com que os americanos apequenam os seus dirigentes na reta final de sua passagem pelo poder. O que está por vir ocupa a cena ainda mais quando, pela primeira vez desde 1928, não participam da batalha eleitoral nem o chefe do governo nem o vice. Mas o ar que se respira nos Estados Unidos não é o de uma contagem regressiva como as outras - é de imitigada ansiedade pela partida do seu pior condutor de que se tem memória. Tampouco há lembrança de um momento em que só 19% da população, conforme as pesquisas mais recentes, entenda que os Estados Unidos estão no rumo certo. Ou de uma situação em que nenhum dos correligionários do presidente que aspiram à sua cadeira ousa invocar o seu nome diante do eleitorado.
A era Bush, efetivamente, foi uma tragédia americana, para usar a expressão que reproduz o título do conhecido romance de Theodore Dreiser. Já nos seus meses iniciais em Washington - onde chegou com menos votos populares do que o adversário Al Gore e graças a uma fraude eleitoral que receberia o endosso de uma Suprema Corte ideologizada - ele só fez aprofundar o fosso que dividira a América em duas, mandando às urtigas o mote de campanha “conservadorismo compassivo” e abraçando a causa do fundamentalismo religioso. Ao mesmo tempo, dava os primeiros sinais de que a sua política externa não teria nada do “respeito decente pelas opiniões da humanidade” consagrado pelos pais-fundadores da república. Em 10 de setembro de 2001, a maioria dos observadores políticos independentes repetiria, se lhes fosse perguntado, que o texano provavelmente teria a sina do pai, presidente de um único mandato. O ultraje perpetrado pela Al-Qaeda no dia seguinte mudou o curso previsível da história.
Explorando com extraordinária competência o horror, o aturdimento e o inédito senso de vulnerabilidade da população, os titeriteiros da Casa Branca fizeram de Bush, perante a opinião pública, o invulnerável escudo humano de uma nação cujo luto e ira transformaram em cego chauvinismo. O dissenso democrático e a tradição da imprensa de investigar e expor as mazelas de Washington foram execrados desde a primeira hora como crimes de lesa-pátria, instrumentos do terrorismo. “Quem não está conosco está contra nós”, proclamou Bush. Entorpecidas, silenciadas ou cooptadas aquelas vozes que desde sempre sustentaram a singular democracia americana, ficaram sem contestação as mentiras monumentais que pavimentaram o caminho para a insana ocupação do Iraque. Quando a força devastadora dos fatos os despertaram, os Estados Unidos se viram enfim diante das ignominiosas realidades do bushismo.
“Os Estados Unidos combatem hoje em duas frentes (Iraque e Afeganistão), a economia ruma para a recessão, o mundo civilizado ainda enfrenta perigos aterrorizantes - e tem muito menos simpatia e respeito pelos Estados Unidos”, resumiu o New York Times o perverso legado de Bush, ao comentar o seu derradeiro discurso perante o Congresso. E o pior é que nada disso desaparecerá da noite para o dia quando outro for o presidente. “O mal que os homens fazem lhes sobrevive”, escreveu Shakespeare em 1599. Valerá para a América de 2009.


[O Estado de São Paulo, 03/02/2008]
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