As muitas faces de Jango

Livro sobre o presidente deposto pelo Golpe de 64 traz histórias de interesse humano e detalhes sobre a relação com o PCB
OSCAR PILAGALLO

Angela de Castro Gomes e Jorge Ferreira reclamam, em "Jango - As Múltiplas Faces" (ed. FGV, 272 págs., R$ 28), que o ex-presidente João Goulart (1918-1976) é visto pela história em chave negativa.
Marco Antonio Villa, em "Jango - Um Perfil" (ed. Globo) reclamava do contrário: que o presidente deposto pelo regime militar em 1964 tornara-se um herói para gerações posteriores. A conclusão se impõe: o maior herdeiro do getulismo continua polêmico.
Os autores de "As Múltiplas Faces" procuram corrigir o que julgam ser uma visão distorcida da história.
O livro não chega a ser uma defesa aberta de Goulart porque, baseado em depoimentos orais, abriga opiniões de críticos do ex-presidente. Mas a balança pende nitidamente para o lado pró-Jango. Entre os mais de 30 depoimentos, há bem mais familiares, parentes e correligionários do que adversários políticos.
Intercalando falas e documentos, o livro avança em ordem cronológica, da infância ao exílio. Não há novidade no trabalho: os documentos são conhecidos e os depoimentos estão incorporados, em sua grande maioria, à síntese do período.

Contornos de personagem
A opção de dar voz a pessoas próximas ao ex-presidente, no entanto, funciona em termos narrativos. Longe da análise fria, o político gaúcho ganha contornos de personagem.
A viúva, Maria Thereza, por exemplo, conta que soube do pedido de casamento do então candidato a vice-presidente de Juscelino Kubitschek por um intermediário que procurou seu pai. "Coisa bem de gaúcho", comenta. Ela só aceitou após muita insistência e acabaria casando por procuração com um irmão de Jango, pois um dilúvio impediu que seu avião pousasse em sua natal São Borja.
Há várias histórias de interesse humano, como a do craque que, tendo jogado no juvenil do Internacional, abandonou o gramado devido a uma enfermidade no joelho esquerdo que o faria mancar pelo resto da vida. O foco, porém, é a política.
A relação de Jango com os comunistas é reveladora do personagem. Jango não era comunista, como acusavam os conservadores. Era um rico fazendeiro, e não estava em seus planos de reforma agrária abrir mão de seu patrimônio. Como se deu, então, a aproximação com o PCB?
"Juntou a fome com a vontade de comer", explica o trabalhista Hugo de Faria. A coincidência a que se refere é que, no início dos anos 50, após um período de radicalização, o PCB decidiu fazer política por meio dos sindicatos quando Jango, interessado em ampliar sua base de sustentação, assumia o Ministério do Trabalho.
Outra passagem bem-explorada no livro é a crise da posse, em 1961, depois da renúncia de Jânio Quadros. O melhor depoimento sobre o episódio é o do general José Machado Lopes, comandante do 3º Exército, cuja atuação foi determinante para impor a legalidade.
Não se pode, no entanto, depreender daí que o militar tivesse simpatia por Jango. "Tomei a decisão de apoiar a posse para evitar um mal maior", afirma ele, referindo-se à possibilidade da eclosão de uma revolução.
O general foi duro para conter seus pares ou, melhor, os "três patetas", como chamava os ministros militares que se opunham à posse. O ministro da Guerra chegou a nomear Cordeiro de Farias para substituir o general. O militar mandou um telegrama a Machado Lopes: "Participo prezado amigo fui nomeado comandante do Terceiro Exército". Machado Lopes respondeu: "Agradeço participação prezado amigo. Se chegar aqui será preso".
Jango toma posse enfraquecido num improvisado regime parlamentarista, enfrenta a oposição conservadora, cede aos sindicalistas, é deposto. Tudo isso é história, à qual o livro pouco acrescenta.
Há detalhes pitorescos, como o relatado por um capataz de Jango, que levava dinheiro -"dúzias de milhões"- no exílio uruguaio em bolsas de estopa sujas de graxa "e não dava muita bola para a fiscalização".
As boas histórias, porém, não contribuem para mudar a percepção que se tem de Jango. O personagem continua polêmico.

[Folha de São Paulo, 19/08/2007]
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