Calvino, 500

Analise da obra do reformador francês que levou a teologia cristã a seus limites lógicos e terminou por sacrificar a idéia de um Deus amoroso e clemente.

No Brasil, regra geral, pouco sabemos de [João] Calvino. Menos até que o pouquinho que sabemos de Lutero. O suficiente para ligar seus nomes à revolução cultural da primeira metade do século 16, a Reforma protestante, um dos motores de arranque da modernidade.
Foi a primeira das revoluções burguesas da lista de três elaborada por Engels. Pôs em marcha um processo de emancipação humana em três níveis, num ataque simultâneo à tradição religiosa, às autoridades tradicionais, ao tradicionalismo econômico.
Calvino e Lutero foram, um em seguida do outro, as grandes lideranças intelectuais daquele vasto movimento de liberação criadora que varreu a Europa por mais de um século, do início do 16 ao fim do 17.
Teólogos criativos ambos, sacadores de novas idéias quanto à salvação da alma e à concepção de Deus, formadores de novas igrejas com novíssimas eclesialidades, inventores de formas outras, menos ritualistas, de praticar a religião cristã. Ambos escreveram muito e pregaram mais ainda, não necessariamente nessa ordem.
Contemporâneos um do outro? A precedência de Lutero em relação a Calvino foi ligeiramente temporal, sendo antes de mais nada intelectual. Foi Lutero quem lançou o principal fundamento da grande virada teológica: a doutrina da salvação "sola fide" (em latim: só pela fé).
Noutras palavras, a salvação da alma como iniciativa totalmente divina, sem qualquer participação ou ajuda, seja dos méritos do interessado, seja de méritos alheios acumulados, segundo uma tese católica repudiada nominalmente por Lutero nas 95 teses, num fundo comum de graça salvífica denominado "thesaurus ecclesiae" [o tesouro da igreja].
Muitos brasileiros conhecem tais generalidades sobre os dois reformadores, mas poucos são os que sabem que Calvino, ao repisar as pegadas de Lutero na crítica teórica e prática do catolicismo romano, procurou, de cabeça feita, levar às últimas consequências lógicas as premissas teológicas - de caráter "teocêntrico" - fincadas pelo promotor da grande dissidência religiosa perante o "eclesiocentrismo" católico e sua soteriologia inerentemente sacramentalista.

Desígnios inapeláveis
O foco do pensamento de Calvino é a soberania absoluta do Deus único, sua irresistível onipotência e inatingível transcendência em relação ao mundo -este mundo- que criou do nada apenas para Sua maior glória. Seus desígnios em relação a nós são misteriosos, ocultos, insondáveis e, existindo desde toda a eternidade, são imutáveis, inegociáveis, inapeláveis. Definitivos.
Ocorre que o maior problema teórico da concepção monoteísta da divindade, que pressupõe como irrenunciáveis a onipotência e a infinita bondade de Deus, reside na dificuldade de achar nela uma explicação coerente para a existência do mal.
Donde vem o mal? O dualismo (seja o de Zoroastro, seja o de Maniqueu) presta bons serviços nesse sentido. Como? Justapondo duas potências de igual grandeza e em perpétua oposição: a potência do bem (isto é, da bondade, da pureza, da verdade, do belo, da luz) e a potência do mal (da malignidade, da impureza, da mentira, do horrendo, das trevas).
Com isso, sistematiza-se de modo racional a primitiva crença, cuja vigência mergulha na noite dos tempos, de que existem espíritos bons, concebidos como favoráveis e úteis ao ser humano, e espíritos maus, entendidos como desfavoráveis e nocivos a nós. Ora, o dualismo racionalizado de tipo zoroastriano implica uma renúncia à onipotência de Deus, já que Este tem pela frente um Antideus de igual poder, que o limita.
Quando vem o monoteísmo, dá a vitória à potência do bem sobre o espírito das trevas. Mas isso não extirpa a dúvida metafísica diante da realidade do sofrimento humano, sobretudo se for imerecido e, portanto, injusto. O melhor exemplo é o sofrimento dos inocentes neste mundo. Se o Deus todo-poderoso é infinitamente bom, como explicar que sofra quem não merece sofrer?
Tanto o judaísmo como o cristianismo se defrontaram por séculos a fio com a exigência intelectual de desatar esse nó racionalmente, vale dizer, coerentemente. Sem muito sucesso no quesito consistência lógica, pelo menos até o início do século 16, com a entrada de Calvino no debate.

Proeza racional
Foi preciso o destemor conceitual de um teólogo exigente feito ele (que, segundo biógrafos, ensinava como se fosse refém de uma inclinação pessoal obsessivo-compulsiva a pensar com lógica a teologia) para dar o passo racional necessário. Ousou: para salvar a onipotência de Deus, não dá para não sacrificar pelo menos um quê da bondade divina.
Se pretende consistência, o "ensino da religião cristã" (título de sua obra maior) tem que renunciar à figura do Deus amoroso e clemente. Foi o que sua teologia procurou objetivar numa versão mais explícita e completa, o mais possível consequente, da tese agostiniana da predestinação à salvação eterna. Nessa proeza de racionalização, o conhecimento minucioso que tinha da Bíblia o ajudou pra valer.
Dou três exemplos, tirados por ele dos profetas: "Para que saibam os que procedem do Oriente e os que vêm do Ocidente que além de mim não há outro. Eu, Deus, formo a luz e crio as trevas, faço a paz e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas essas coisas." Pode parecer incrível, mas isso está lá, na Bíblia. Javé afirma isso pela boca do profeta Isaías (Is. 45, 6-7).
E indaga pela boca de Amós (Am. 3, 6): "Tocar-se-á a trombeta na cidade sem que o povo estremeça? Sucederá algum mal à cidade sem que o Senhor o tenha feito?" E nas "Lamentações" de Jeremias (Lm. 3, 38): "Acaso não procede do Altíssimo assim o mal como o bem?"
Foi com essa mesma e incondicional devoção ao "mistério" de uma soberania divina acima do bem e do mal, num "mix" muito particular, só seu, de lógica sistemática e senso de mistério, que o jovem jurista convertido ao protestantismo completou, também por necessidade lógica, a tese luterana de que não jaz nas obras meritórias o fundamento da salvação. Seu raciocínio corre assim: do mesmo modo que não está nas obras do ser humano o fundamento de sua eterna salvação, também nelas não pode estar o fundamento de sua eterna perdição. Nós, criaturas humanas, "não merecemos" nem aquela nem esta, eis o lado ironicamente humilde da ousadia teológica de Calvino. Perante a infinita justiça divina, não somos capazes de merecer nada, nada, coisa alguma.
Na explicação paciente que faz da doutrina da dupla predestinação, é notória a intenção de nos instruir nesta humildade a um só tempo mínima e máxima: a de colocar na vontade do "Deus absconditus" (Deus oculto) a causa da nossa eterna salvação, tanto quanto a da nossa eterna danação.
Daí por que, entre as consequências dedutíveis do princípio básico da soteriologia luterana, quem leu Weber sabe disto, na versão completa que Calvino ensina da doutrina da predestinação o que mais impressiona e choca a leitores e seguidores é a predestinação dos condenados ao inferno. Vale dizer, a predestinação como duplo decreto. Sua definição: "Chamamos predestinação o desígnio eterno de Deus, pelo qual ele determinou o que queria fazer de cada ser humano. (...) Por seu desígnio eterno e imutável, decretou Deus quais eram os que ele queria tomar em salvação, e quais os que queria mandar à perdição."

Decreto apavorante
A predestinação eterna só dos salvos (dos "happy few", diria Shakespeare) é uma antiga tese cristã, já presente em Agostinho e aceita expressamente por Lutero. O que surpreendeu em Calvino foi ele ter aberto o jogo no que tange à predestinação dos réprobos, ter exposto que a causa do seu malfadado destino pós-morte não está nos pecados deles, como normalmente se crê, mas no outro braço que completa o decreto salvífico do Senhor. Está no "decretum horribile".
Comentário do próprio Calvino: "Confesso que esse decreto deve nos apavorar". Comentário do grande poeta do protestantismo, John Milton [1608-1674]: "Posso ir para o inferno, mas um Deus como esse jamais terá o meu respeito". Quase dantesco, soando às vezes satírico, Calvino deixou de lado todo prurido "bela alma" e saiu rasgando o véu da compaixão católica e luterana pelo "pobre pecador", dando espaço em suas obras à crueza catastrofista do monoteísmo vingador dos profetas bíblicos.
Só nos profetas de Israel podem-se ler peças declaratórias de um monoteísmo predestinacionista cabal e incondicional como o dele, isto é, para o bem e para o mal, para o céu e para o inferno. Calvino foi a eles. Mas foi também a Paulo, aos "Salmos", ao "Livro de Jó", para dali glosar as frases que deixariam em sobressalto seus seguidores e indignados seus opositores. Contam que ele achava desnecessário, além de impróprio e pecaminoso, ir além do que diz a Bíblia sobre a questão.
Seus biógrafos apresentam-no tão convicto do abismo intransponível que depois da Queda separa a humanidade da transcendência absoluta de Deus que ele, na vida privada, reagia a esses terrores com um domínio de si de tal forma rígido, e aparentemente tão sereno, que não deixava pista alguma sobre as provações por que certamente passou e passava, coibindo com o mesmo freio as intempéries da própria dor: "Calei e emudeci, porque Tu, Jeová, o fizeste" (Sl 39, 9). Calvino sofria de úlcera crônica.
Catecismo foi um gênero literário de sucesso no século 16, século que, na avaliação do historiador francês Lucien Febvre, sobressai como o mais religioso da história ocidental. A começar de Lutero, cada líder reformador queria publicar um. A Contrarreforma católica também criou o seu. Calvino tinha lá seus 25 anos quando começou a escrever o dele, esse que acabaria virando sua obra principal - "Institutio Religionis Christianae" - agora lançada pela Editora Unesp em nova tradução ["A Instituição da Religião Cristã", vários tradutores].
Uma elegância de edição, por sinal, com capa dura em cores asceticamente sóbrias, um belo objeto. Com essa beleza de lançamento, o Brasil livreiro comemora em grande estilo o quinto centenário do nascimento desse mentor intelectual da Reforma pontiagudo e contundente, seu promotor mais extremado, cujo carisma pessoal parece revelar-se ao leitor no modo muito seu de repensar teocentricamente (repito) a fé cristã com uma consequencialidade lógica de deixar Lutero comendo poeira.
Arrojado, é irresistível no convite que faz a um estudioso não religioso da religião a aprender a pensar uma verdade religiosa "jusqu'au bout" (até o fim) para ver no que pode dar. Passou a maior parte da vida adulta escrevendo e reescrevendo seu catecismo, de início um pequeno livro de estrutura simples e apenas seis capítulos (a primeira edição é de 1536), até torná-lo essa espécie de "summa theologica" que conhecemos das edições definitivas de 1559 (em latim) e 1560 (em francês). São oitenta capítulos dispostos em quatro livros divididos em dois tomos.
A nova tradução brasileira, de iniciativa de uma editora universitária declaradamente não religiosa, teve por base o texto em latim de 1559, a última versão latina. A última versão em francês é de 1560. O texto se constrói numa prosa maravilhosamente lógica e incisiva, e nisto me parece que a nova tradução convence, a saber: no empenho de fabricar boa prosa vernácula.
Devo confessar que, muito antes do convite feito pelo Mais! para comentar o livro neste décimo jubileu do autor, e conhecendo de antemão a tradução alemã, cujo título diz "Unterricht in der Christlichen Religion", ou seja, "Instrução na Religião Cristã", eu já desconfiava que no latim o nome "Institutio" trouxesse à baila o significado de "instrução", "ensino", "escola". Mas não sabia que o mesmo significado ocorresse também em francês.
Curioso, corri ao dicionário de francês "Petit Robert" e acabei descobrindo que, também na língua materna de Calvino, o termo "institution" abriga igualmente a acepção de "ação de instruir e de formar pela educação". Esse devir semântico passou a ocorrer, segundo o "Petit Robert", no início do século 16. "Tudo a ver com a obra de Calvino", comemorei sozinho a descoberta. Comecei então a me perguntar, e é uma pergunta que não quer calar, se na nova tradução brasileira a obra de Calvino não ficaria melhor representada, e mais adequadamente apresentada, com um título de significado mais direto e menos polissêmico do tipo "Ensino da Religião Cristã".
Porque, afinal de contas, é disso mesmo que se trata, de ensino. E a leitura do tomo 1 só fez me convencer, inconformado, de que agora é tarde. Estamos diante de mais uma oportunidade perdida de fazer o melhor para o leitor. Seja como for, com exceção da discutível tradução do título, a atual edição faz jus ao compromisso de clareza indispensável a uma argumentação religiosa que se pretende rigorosamente pública. Quer dizer, sem os resvalos em eflúvios e plangências de intimidade cripto-nupcial com o Divino encontradiços em santo Agostinho, são Bernardo, Lutero, Spener, Wesley e tantos mais, sempre cheios de amor para dar.

ANTÔNIO FLÁVIO PIERUCCI, chefe do departamento de sociologia da USP.

[Folha de São Paulo, 12/07/2009]
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