"Para os grupos salafistas, o Iraque é uma terra impura que precisa ser purgada"

Em entrevista, Mohammad Ali Amir-Moezzi, diretor de estudos na Escola Prática de Altos-Estudos (Sorbonne), passa em revista as divergências culturais e religiosas fundamentais das quais são oriundos os grandes conflitos que dilaceram atualmente países do Oriente Médio tais como o Irã e o Iraque.
O xiismo nasceu num contexto de guerras fratricidas. O "batismo do sangue" dos xiitas aconteceu em outubro de 680, na batalha de Kerbala (Iraque), 48 anos após a morte de Maomé. Nesta, que seria relembrada por poetas e sacerdotes ao longo dos séculos, Hussein, neto do Profeta, foi morto e o seu exército massacrado pelos Omíadas, a dinastia que reinava então em Damas, naquilo que seria uma etapa da sua conquista do Oriente Médio.

Le Monde - Será que os atuais enfrentamentos entre xiitas e sunitas no Iraque podem ser considerados como um efeito longínquo de dissensões fundamentais ocorridas em tempos remotos?
Mohammad Ali Amir-Moezzi - Todos os xiitas possuem uma memória coletiva dos massacres em massa que se seguiram à vitória dos Omíadas (meados do século 7 - meados do século 8), àquela dos Abássidas (séculos 8 a 13) e, numa proporção menor, dos Otomanos (séculos 15 a 20). Os xiitas também vão massacrar sunitas no século 16, durante o império safávida do Irã, só que dentro de proporções mais modestas. A tragédia atual no Iraque é considerada pelos xiitas como uma repetição longínqua deste passado de violência.
Esta tragédia deve-se amplamente à influência do salafismo mortífero que se reclama do wahhabismo, este sunismo puro e duro, que é uma religião de Estado na Arábia Saudita, e para o qual os xiitas não passam de heréticos. Os movimentos salafistas e as redes da Al Qaeda estimam que o Iraque, um país onde os xiitas são amplamente majoritários, é uma terra impura que é preciso purgar sem concessões nem clemência.
Le Monde - Será que o seu fascínio pelo martírio faz do xiismo uma religião da resignação?
Amir-Moezzi - Não. As primeiras manifestações de luto em homenagem ao imame (líder espiritual) Hussein ocorreram menos de um século após a batalha de Kerbala. Estas se deram como um sinal de redenção: Hussein foi massacrado porque os seus partidários de Koufa não o socorreram. Portanto, os xiitas devem expiar este pecado original. Mas essas primeiras manifestações não têm a amplidão das procissões de hoje, verdadeiros cultos da dor que ocorrem nas cidades santas xiitas e que, mais recentes, remontam aos séculos 17-18, sob os safavides do Irã.
Dito isso, o xiismo em caso algum pode ser considerado como uma religião suicida. Ele não cultiva nenhum gosto em particular pela morte, mesmo se a memória dos sofrimentos passados nele ocupa um espaço considerável. O xiismo nasceu dentro de um contexto de guerras fratricidas. Ele foi pulverizado em múltiplas seitas (uma centena durante os primeiros séculos do Islã) das quais algumas, principalmente os zaiditas, se revoltaram contra os poderes omíada e abássida. Essas rebeliões foram pretextos para massacres em grande escala. Sem demora, os xiitas passaram a considerar a si mesmos como uma minoria de eleitos perseguidos. Para ilustrar esta tendência, podemos citar o seguinte exemplo: todos os seus imames são considerados como mártires, embora nem todos tenham sido assassinados.
Le Monde - Como explicar a passagem do apolitismo xiita dos primeiros séculos para a revolução khomeinista no Irã (1979)?
Amir-Moezzi - No século 10 - que Louis Massignon chamou de "o século xiita do Islã" -, todas as grandes regiões do império encontram-se sob o domínio dos xiitas: a dinastia buáiida (do nome do califa Ahmad Al-buye), em Bagdá, então o centro do califado. Na região que vai da África do Norte até a Síria, dominam os Fatimidas que fundam Cairo. Os Quarmates reinam sobre a Arábia do Norte, a região do golfe Pérsico e o sul do Irã. O século 10 assiste também ao fim dos imames históricos, à afirmação do imame escondido e ao surgimento da Razão no contexto do Islã.
O corpus doutrinário era dominado pela busca da perfeição individual em Deus e por uma espécie de desprezo pelas obras temporais. Mas, dentro do contexto racional do século 10, os teólogos xiitas da corte dos Buaíidas reinterpretam os hadith (as palavras do profeta Maomé consideradas como ordens a serem seguidas pelos muçulmanos), eliminam aqueles que lhes parecem absurdos e declaram que as tradições que proíbem a atividade política deixam de ser válidas. Um xiita pode apoiar governantes justos. As tendências revolucionárias xiitas no século 20 no Irã situam-se no prolongamento desta tradição racionalista do século 10 que consolidou o papel do doutor da lei.
Le Monde - Será o caso de ver nesta transformação a origem da clericalização do Islã xiita?
Amir-Moezzi - Sim, mas é de uma outra ruptura que se trata. Ela ocorre no século 16 no Irã, depois da ascensão ao poder da dinastia dos Safávidas, campeões da idéia nacional iraniana. Antes dela, o Irã é majoritariamente sunita, mas sempre nutriu simpatia pelo xiismo.O império safávida vai se constituir como uma reação contra o império otomano, sunita, que se considera como o sucessor do califado abássida e faz do árabe e do turco a língua oficial. Frente aos otomanos, o Irã declara, em 1501, o xiismo religião de Estado, faz do persa a língua oficial e cria um clérigo de Estado composto por juristas e teólogos. Um clérigo que se tornará cada vez mais poderoso.

Tradução: Jean-Yves de Neufville

[Le Monde, 31/07/2007]
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