Em Haia, o ex-presidente do país africano, Charles Taylor, vai a júri por crimes de lesa-humanidade. Na capital liberiana, a premiada escritora inglesa Zadie Smith descobre a nação devastada pela guerra
Zadie Smith, Monróvia, Libéria
SEGUNDA-FEIRA
Não há vôos diretos da Inglaterra para a Libéria. Ou você vai por Bruxelas ou faz reservas com a Astraeus, uma linha aérea especializada que recebeu esse nome em homenagem à deusa romana da Justiça. Eles mantêm um serviço para Freetown, na vizinha Serra Leoa. A clientela é composta na sua maioria de africanos vestidos como se fossem para a igreja. Chapéus formais, anéis de zircônio e sacolas Louis Vuitton são populares. Somente os não africanos estão vestidos para a “África”, de calças cáqui, sandálias, camisetas amarrotadas. Suas malas são simples: mochilas puídas, maletas danificadas. A bagagem de pessoas nômades.
Uma miscelânea de viajantes está sentada numa fileira. Uma freira inglesa. Um americano que trabalha num organismo de ajuda humanitária. Um libanês que se descreve como um “consertador”: “Conserto coisas em Freetown - sistemas elétricos, prédios”. O avião pousa em Serra Leoa.
Todos desembarcam levando a África da imaginação com eles, uma história que tem ao menos uma forma familiar. Quem permanece na história da Libéria? Uma dezena de pessoas apenas, chamadas a vir à frente e ficar olhando umas para as outras através do largo corredor da classe executiva. A freira vai prosseguir viagem: Irmã Anne das Carmelitas de Corpus Christi. Ela vem trabalhando na Libéria desde a década de 1980, chefiando uma escola em Greenville. “Partimos quando a guerra se tornou impossível - agora estamos de volta, ensinando alunos. Não é fácil. Eles viram coisas terríveis. Além da imaginação.” Ela parece confusa quando solicitada a descrever o caráter dos liberianos. “São ou muitíssimo bons ou o contrário. É difícil ser bom nessas condições.”
A verdade sobre a Libéria é polêmica. Consiste de “fatos” mutuamente exclusivos, simultaneamente afirmados. O World Factbook da CIA declara que, em 1980, um golpe militar comandado por Samuel Doe inaugurou uma década de regime autoritário, mas não foi a própria CIA que financiou o golpe e o regime, como se acredita amplamente na Libéria. O sucessor de Doe, Charles Taylor, o instigador da Guerra Civil Liberiana (1989-1997), na qual se calcula que tenham morrido 300 mil pessoas, está atualmente em Haia aguardando julgamento por crimes contra a humanidade (veja box na pág. ao lado), mas mesmo assim há cartazes pintados à mão em seu apoio por toda Monróvia (“Charles Taylor é inocente!”) e coletâneas de seus discursos à venda no aeroporto. Na Europa e nos EUA, a guerra civil da Libéria foi descrita como um “conflito tribal”. Nas salas de aula liberianas, crianças de meia dúzia de tribos diferentes sentam-se juntas e parecem não saber o que você quer dizer quando pergunta se isso causa alguma dificuldade.
Não existe uma verdadeira malha viária na Libéria. Durante a estação chuvosa do final do verão, grande parte do país torna-se inacessível. A chuva torrencial de hoje à noite é extemporânea, mas a estrada é a melhor do país, adequadamente asfaltada - uma longa linha reta do aeroporto ao Mamba Point Hotel, em Monróvia. Lysbeth Holdoway, assessora de imprensa da Oxfam (organização internacional de combate à pobreza), sentada na parte de trás de um veículo 4x4 todo revestido de couro, delineia a presente situação da Libéria. De quatro a cinco vezes por ano, visita alguns dos países mais atrasados do mundo. Mesmo para os padrões com os quais está acostumada, a Libéria é excepcional. “Três quartos da população estão abaixo da linha de pobreza - isto significa que vivem com US$ 1 por dia; metade vive com menos de 50 cents por dia. O que havia de infra-estrutura foi destruído - rodovias, portos, eletricidade, água, saneamento básico, escolas, hospitais municipais -, tudo desesperadamente em falta ou inexistente; 86% da população estão desempregados, não há iluminação pública”. Através da janela do carro, podem-se ver lâmpadas apagadas; seus componentes foram arrancados durante a guerra. Os relâmpagos continuam a revelar o cenário - pequenas cabanas de tijolo e barro; homens jovens com expressão entediada observam, sentados em grupos, os veículos passarem. Os carros são de dois tipos - enormes Toyotas Land Cruisers como este em que viajo, geralmente com o emblema da ONU estampado no capô, ou Nissans dilapidados, as janelas traseiras revelando seis pessoas espremidas nos assentos traseiros e quatro na frente. Pergunto a nosso motorista, John Flomo, se os serviços essenciais existiam antes da guerra. “Alguns, sim. Em cidades. Menos no campo.” Mesmo a eletricidade que ilumina o aeroporto não é municipal. Ela vem de uma usina hidrelétrica pertencente à Firestone, a companhia de borracha americana, famosa por seus pneus. A Firestone comprou 1 milhão de acres (cerca de 400 mil hectares) em 1926, um arrendamento de 99 anos ao preço irrisório de 6 cents por acre. Eles usam sua hidrelétrica para gerar energia para sua operação. A eletricidade do aeroporto é um “presente” para a nação, embora os negócios da Firestone não pudessem funcionar sem um aeroporto. “Tudo isso é Firestone”, diz Flomo, apontando para a escuridão.
TERÇA-FEIRA
O Mamba Point Hotel é um edifício liberiano incomum. Tem ar condicionado, banheiros e água potável. No estacionamento, uma dúzia de caminhões da ONU. Na sala de café da manhã, os hóspedes são uniformes: colarinhos abotoados, roupas cáqui leves, MacBooks. O único tema na Libéria é a própria Libéria. “Esta é a coisa maluca”, diz um homem a outro. “A malária nem é um problema difícil de resolver.” Numa mesa de canto, uma mulher idosa desfia estatísticas brutas a um recém-chegado que as anota: “População, 3,5 milhões. Mais de 100 mil com HIV; expectativa de vida masculina, 38; feminina, 42. Sessenta e cinco dólares liberianos por um dólar americano. O analfabetismo oficial está em 57%, mas esse número é realmente de antes da guerra. Está faltando toda uma geração...” No bar, uma dezena de garçons liberianos descansa encostada no balcão, acompanhando atentamente o seriado Baywatch.
Todas as viagens de estrangeiros, por mais curtas que sejam, são feitas nos Land Cruisers da ONG. A Oxfam divide suas instalações com a Unicef. Em cada porta há um adesivo: “Proibidas armas de fogo”. Aqui Phil Samways, o gestor do programa para o país, chefia uma pequena equipe de desenvolvimento. Ele fala com precisão e rapidez: “Estamos saindo do estágio de desastre humanitário. Agora estamos interessados em desenvolvimento de longo prazo. West Point, que é nosso projeto principal, é uma favela - metade da população de Monróvia vive em favelas. Durante oito meses chove desta maneira e o país vira um atoleiro. Quando perguntamos às pessoas do que elas mais precisavam, elas freqüentemente diziam educação em primeiro lugar, acima de banheiros, saúde básica. Isso deve lhes dizer alguma coisa.”
A atmosfera nos corredores é jovial e entusiástica, como num jornal de escola. O pessoal é positivo sobre o futuro, com muito otimismo focado em Ellen Johnson-Sirleaf, a economista formada em Harvard e primeira mulher chefe de Estado na África. Johnson-Sirleaf conquistou a presidência em 2005, vencendo por pequena margem o jogador de futebol liberiano George Weah. “Nós esperamos e rezamos”, as pessoas dizem, quando surge seu nome. Por enquanto, o impacto é mais conceitual que real: a Libéria está tendo seu momento feminino. Por toda parte, fala-se de uma nova geração de moças que “conduzirá a Libéria para o futuro.” A primeira visita do dia é a um dos “Clubes de Moças”, que a Oxfam financia.
Abraham Paye Coneh, um liberiano de 37 anos que parece 15 anos mais jovem, acompanhará os visitantes. A Lysbeth e Abraham acrescentamos agora o fotógrafo Aubrey Wade, um anglo-holandês de 31 anos. Ele apóia sua lente na janela do carro. Placas pintadas à mão bordejam a estrada. “Você foi estuprada?” ou “Parem o estupro na Libéria”. Lysbeth pergunta a Abraham sobre outros problemas enfrentados pelas mulheres no país. A lista é longa: circuncisão feminina, casamento a partir dos 11 anos de idade, poligamia, propriedade matrimonial. As garotas eram “tradicionalmente desencorajadas a freqüentar a escola.” Em algumas tribos, maridos impelem secretamente suas esposas a casos sexuais para que possam cobrar do homem ofensor uma “taxa de infidelidade”, paga na forma de trabalho não remunerado. Leis tribais como essas são praticadas em paralelo às inscritas na Constituição da Libéria, inspirada na americana.
A cultura de favores sexuais antecede a guerra. A moral da Libéria poderia ser: onde houver fraqueza, explore-a. Essa moral não é de caráter especialmente liberiano. Em maio de 2006, uma investigação da BBC revelou “abuso sexual sistemático” no país: agentes de manutenção da paz da ONU oferecendo comida a refugiadas adolescentes em troca de sexo.
Na escola em Unification Town, 14 garotas do Clube de Moças são escolhidas para se sentar em nossa companhia numa nova “biblioteca” da escola. É uma sala diminuta, muito quente. A pequena coleção de livros didáticos nas estantes tem uma década de atraso. A sala vizinha acomoda o curso de datilografia, orgulho do clube. Não é uma “escola” tal como essa palavra costuma ser entendida. É um prédio com mil crianças dentro esperando uma escola se manifestar. As perguntas previamente planejadas - Você gosta de estudar? Qual é a sua matéria favorita? - tornam-se absurdas. Elas respondem acanhada e tristemente num “inglês liberiano” difícil de compreender. A professora traduz respostas pouco claras. Ela também é difícil de compreender.
O que gostaria de ser quando crescer? “Piloto” é uma resposta popular. Também “um marinheiro”. Por mar, ou por ar, a fuga está em suas mentes. Os outros dizem “enfermeiro” ou “médico” ou “no governo.” As duas rotas de fuga visíveis na Libéria: ajuda e governo. O que seus pais fazem? Eles estão mortos, ou trabalham na extração de látex. Uma garota suspira profundamente. A professora exasperada sugere: “Pergunte a elas sobre a freqüência com que podem vir à escola.” Uma garota recosta a cabeça na carteira. Ninguém fala.
“Pergunte para mim”. É a garota que tinha suspirado. Ela tem 14 anos, seu nome é Evelyn B. Momoh, ela tem um rosto em forma de coração, feições de boneca. Evelyn praticamente vibra de inteligência e impaciência. “Temos que trabalhar com nossas mães no mercado. Precisamos viver e não há dinheiro. Não tem dinheiro, compreende? Nenhum dinheiro.” Nós anotamos. O curso de datilografia ajuda? Evelyn olha de soslaio. “Sim, sim, claro - é uma coisa boa, somos muito gratas.” A sensação é que ela está se esforçando para não gritar. Isso é um contraste com as outras garotas, que parecem apenas exaustas. Saímos da sala de datilografia. Aubrey tira fotos de Evelyn simulando datilografar. Ela se submete a isso como um político a uma foto promocional humilhante, necessária.
QUARTA-FEIRA
O panorama das ruas em Monróvia é pós-apocalíptico: pessoas ocupam a casca de uma existência anterior. O InterContinental Hotel é um cortiço onde moram centenas. A velha Executive Mansion, sede do governo, está toda aberta como uma casinha de brinquedo; jovens estão sentados no esqueleto da escadaria em espiral, aproveitando a sombra. Abraham aponta para a insígnia estatal da Libéria na parede: um navio ancorado com a inscrição “O Amor da Liberdade nos Trouxe para Cá”. Em 1822, escravos americanos libertos (conhecidos como américo-liberianos ou, coloquialmente, congos) fundaram a colônia por instigação da American Colonization Society (ACS), uma coalizão de donos de escravos e políticos cujas motivações não são difíceis de imaginar.
Até as raízes da Libéria estão afundadas em má-fé. Da primeira onda de emigrantes, metade morreu de febre amarela. No final dos anos 1820, uma pequena colônia de 3 mil almas sobreviveu. Na Libéria, eles construíram uma vida em fac-símile: casas no estilo dos casarões das plantations, igrejas com campanários brancos.
Quando a ACS faliu, nos anos 1840, pediram que o “País da Libéria” declarasse sua independência. Foi o primeiro de muitos erros categóricos: a Libéria ainda não era um país. Suas exportações agrícolas foram logo engolidas pelo preço das importações. Um padrão de empréstimos europeus (e a inadimplência) começou nos anos 1870. O dinheiro era usado para modernizar parcialmente o interior américo-liberiano negro ignorando o interior nativo empobrecido. A relação entre as duas comunidades é uma lição da artificialidade de “raça.” Para os américo-liberianos, estes eram “nativos” - e eles continuaram um tráfico ilegal de escravos do povo Manlike até os anos 1850. Ainda em 1931, a Liga das Nações descobriu o uso do trabalho forçado dos locais.
Os maiores prédios de concreto - o velho Ministério da Saúde, o velho Ministério da Defesa, a sede do True Whig Party - são remanescentes dos regimes pacíficos, injustos, do presidente Tubman (1944-71) e do presidente Tolbert (1971-80), dos quais os liberianos sentem uma perversa nostalgia. A universidade, o hospital, as escolas foram financiados por uma política do True Whig de empréstimos internacionais maciços e concessões desreguladas a empresas estrangeiras, tipicamente concedidas a companhias “extrativas” agrícolas. Durante boa parte do século 20, a Libéria teve um apelido: Firestone Republic. Em 28 de janeiro de 2005, enquanto um governo “zelador” interino presidia por um breve período de tempo um país arruinado (as eleições deveriam se realizar no final daquele ano), a Firestone conseguiu, às pressas, uma nova concessão: 50 cents por acre pelos próximos 37 anos.
Os ativistas se frustram porque os liberianos tendem a não atribuir seus problemas a companhias extrativas estrangeiras ou a lobbies de seus respectivos governos. A maioria deles sabe quanto ganha um extrator de látex: US$ 35 por mês. Todos sabem quanto recebe um ministro de governo: US$ 2 mil por mês - uma fortuna na Libéria. Ninguém sabe dizer qual é o lucro anual da Firestone (em 2005, apenas de sua produção na Libéria: U$ 81.242.190). Em um país sem classe média nem classe trabalhadora, sem vida civil funcionando, o governo abarca tudo que envolve dinheiro, habitação, saúde e educação. Ele é o foco de todas as aspirações, de todas as fúrias.
Em 1990, a presidência era ocupada por Samuel Doe, que se recusava a sair. Dez anos antes, quando Doe, então com 28 anos, um homem da tribo Krahn e suboficial do Exército liberiano, deu um golpe de Estado, seu foco era a Executive Mansion. Ele a invadiu pela força das armas e estripou o presidente Tolbert em sua cama.
Visitamos o mercado Red Light (Luz Vermelha). É uma porção de terra circular cercada de lojinhas e apinhada de vendedores de rua. As lojas têm nomes como Arun Brothers e Ziad’s, todas pertencentes a libaneses, assim como o Mamba Point Hotel. Quase todos os pequenos negócios na Libéria pertencem a libaneses. Abraham ergue os ombros: “Eles simplesmente tinham dinheiro na época em que nós não tínhamos.” A ironia são as leis de cidadania da Libéria: quem não tiver “ascendência africana” não pode ser um cidadão. O dinheiro libanês vai direto para o Líbano.
QUINTA-FEIRA
Do 4x4, West Point não parece um “projeto modelo”. Um corredor estreito de terra ladeado por pequenas moradias feitas com lixo, barro, sucata de metal. Crianças de barrigas inchadas, comida podre, homens quebrando pedras. Isso se estende por quilômetros. O veículo envereda por uma viela estreita demais. Perto dali, o cenário é outro. Não é um corredor. É uma cidade. Há comida sendo preparada. Pequenas barracas, espetos de frango à venda. Crianças seguem Aubrey querendo ser fotografadas. Elas posam simulando coragem: punhos grandes em braços magrinhos, nodosos. Ninguém mendiga. Paramos ao lado de uma oficina com pilhas de carteiras de madeira, sólidas, não são feias. Estão sendo envernizadas num tom marrom caramelo. Um homem branco jovem e muito alto está ali para nos mostrar o lugar, um administrador de programa da Oxfam em West Point. Patrick Alix tem 30 anos. Um ar aristocrático, meio francês. Patrick tem visto a situação na Libéria progredir da emergência mais terrível para o início do “desenvolvimento”. “Basicamente, acompanhamos os que retornam dos acampamentos - muitos deles assentados nesta comunidade. Sessenta e cinco mil pessoas vivem aqui, 30 mil delas crianças. Agora, há 19 escolas na favela, não há? Por isso...” Espere. Há escolas numa favela? Patrick pára de andar. “Claro”, diz ele. “Mas nós vamos para a única do governo. As demais são privadas, dividindo o espaço com igrejas, ou mesquitas, com professores voluntários.”
Ele envereda rapidamente pelas pequenas vielas caóticas, seguro do seu caminho. Aubrey tira uma foto do edifício de concreto comprido e baixo; são quatro salas grandes. Patrick diz: “A Libéria tem essa história única de escravos libertados. Agora, as coisas mudaram, o governo prometeu 10% do orçamento para educação. É uma porcentagem enorme, mas representa apenas US$ 12 milhões para o país todo. Tem coisas demais que precisam ser feitas. As ONGs preenchem a lacuna.”
Parada na frente da escada está Ella Coleman, que até recentemente era a comissária de West Point. Coleman é uma espécie de celebridade, muito conhecida em todo West Point. A atitude dela é do tipo mãos na massa no cuidado pastoral. Ela entra nas casas para verificar suspeitas de abusos. Retém crianças em sua própria casa se teme pela sua segurança. “Temos meninas de sete anos sendo estupradas por homens grandes! Eu falo com pais, educo pessoas. As pessoas são tão pobres e desesperadas. Elas não sabem. Um de nossos garotinhos estava sempre tocando uma de nossas meninas, por isso eu fiz amizade com ele. Ele foi suspenso - mas ficar lá sentado não ajudará. Fui à casa dele. A família toda dorme no mesmo quarto. Eu disse a seus pais: ‘Vocês expuseram essas crianças a essas coisas cedo demais. Tudo que acontecer com essa menininha, vocês serão responsáveis.’”
E alguns de seus alunos são ex-combatentes? “Oh, minha garota”, diz Coleman, tristemente, “há ex-combatentes por toda parte. As pessoas vivem perto de rapazes que mataram as próprias famílias. Nós, como povo, temos muita coisa para curar.”
SEXTA-FEIRA
Bong Country é lindo. Floresta de um verde luxuriante, uma brisa suave. Há hipopótamos pigmeus por aqui e macacos; uma sensação de possibilidades da Libéria. Rica em recursos naturais, fria nas montanhas, quente na praia. Nyan P. Zikeh é o diretor do programa da Oxfam para esta região. Nyan ajuda a reconstruir as comunidades de pequenas vilas de Bong, uma área estratégica disputada por todas as facções beligerantes. As pessoas vivem em minúsculas cabanas tradicionais com telhado de sapê dispostas em torno de um terreiro central. É calma e limpa. As comunidades são interligadas e se reúnem em torno dos visitantes para participar da conversa. Em uma aldeia, uma mulher explica a situação alimentar. Ela é “1-0-0”, seus filhos são (geralmente) “1-0-1”; há muitos outros que são “0-0-1”. É um sistema binário que descreve “refeições por dia”. Mas as coisas estão melhorando: agora há escolas aqui, existem latrinas.
Um quilômetro adiante pela estrada, a sra. Shaw, uma professora liberiana de 80 anos, está sentada diante de sua casinha. Ela ensinou três gerações de crianças liberianas com um salário que ela descreve como “menos que o dos extratores de látex: US$ 25 mensais”. Ela diz que as crianças que ensinou mudaram ao longo dos anos. Agora elas são “cabeça quente”. Estão zangadas com a sua situação? Ela franze a testa: “Não, zangadas umas com a outras.” Quando saímos, Lysbeth nota três sepulturas no quintal. “Meus filhos”, diz a sra. Shaw. “Foram envenenados”. Lysbeth supõe que isso seja metafórico, mas Abraham balança a cabeça. No veículo, ele explica: “Seus filhos estavam trabalhando no governo. Empregos muito bons. Acontece isso quando você está se dando bem. Às vezes você é envenenado. Colocam alguma coisa na sua bebida. Eu sempre observo meu copo quando estou fora.”
Os visitantes sentam-se na varanda comendo o jantar no CooCoo’s Nest, o segundo melhor hotel da Libéria. CooCoo, a dona, foi uma amante do presidente Tubman; ela vive nos Estados Unidos agora. Na sua ausência, o hotel é dirigido por Kamal E. Ghanam, que também administra a plantação de árvores de látex nos fundos. Ele traz a sangria enquanto Abraham e Nyan conversam. Esses dois são membros de um grupo muito pequeno na Libéria: a provisória classe média liberiana, criada em grande parte pela presença das ONGs. “É difícil”, explica Abrahams. “Basta eu pintar a minha casa para as pessoas começarem a falar: ‘Ele é Congo agora’.” Aubrey, que estivera fotografando as plantações, se aproxima. Ele traz novidades: conheceu um extrator de látex no campo.
Aubrey está ofegante e excitado: temos a sensação de sermos jornalistas intrépidos, revelando uma grande e desconhecida injustiça. Na verdade, as condições das plantações de árvores para a produção de borracha liberianas são bem documentadas. Numa reportagem da CNN de 2005, o presidente da Firestone, Dan Adomitis, explicou que cada trabalhador “só” sangra 650 a 750 árvores por dia e que cada árvore toma dois a três minutos. Tomando a mais baixa dessas estimativas, isto significa 21 horas de extração de látex por dia. No passado, os pais traziam seus filhos com eles para ajudá-los a atingir a cota; quando isso foi noticiado, a Firestone proibiu a prática. Agora as pessoas trazem seus filhos antes de amanhecer. Nyan vira-se para os visitantes: “A Firestone é um assunto tabu aqui. Mas paga melhor que a maioria dos trabalhos. Seria preciso um lobby muito forte no governo americano para pará-los”.
SÁBADO
Almoço em La Pointe, o “restaurante bom” de Monróvia. A vista é de um penhasco abrupto descendo para terras pantanosas, e além destas, águas azul-esverdeadas. Durante a guerra, a praia ficou forrada de crânios humanos. Agora, ela está simplesmente vazia. Na Jamaica, turistas se casam em praias como essas. Atualmente, toda a freqüência do La Pointe se resume a trabalhadores de ONGs, funcionários do governo e empresários estrangeiros. Um liberiano passa por ali usando um traje razoavelmente bonito. Abraham: “É um juiz da corte suprema.” Outro homem de gravata: “Oh, é o Kenyan. Ele possui uma companhia aérea”. Por toda parte na Libéria é a mesma coisa: existem apenas os muito pobres e os muito poderosos. Na camada média ausente, por enquanto, a “Comunidade Internacional”.
Num pequeno escritório nos fundos da Paynesville School, vamos encontrar um rapaz de 15 anos indicado pela Don Bosco Himes, uma organização católica especializada na reabilitação de combatentes infantis. Quatro adultos nervosos supervisionam a entrevista. Lysbeth, que tem três filhos adolescentes, parece que vai chorar antes mesmo de Richard começar. Foi uma longa semana. Richard está determinado a facilitar as coisas para nós. Ele sorri gentilmente para o gravador:
“Meu nome é Richard S. Jack. Eu tinha 13 anos em 2003. Estava vivendo com minha mãe quando começou a segunda guerra civil. Estava jogando num campo de futebol quando homens vieram e me agarraram. Foi feito à força - eu não tinha desejo de entrar nessa guerra. Eles levaram os dois times de garotos. Eles nos jogaram num caminhão. Achei que nunca mais veria meus pais de novo. Eles me levaram para Lofah Bridge. Fomos ensinados a fazer certas coisas. Fomos ensinados a usar AKs-47. Fiquei com eles por um ano e meio. Éramos muitos tipos diferentes de liberianos e serra-leonenses, muitos meninos. Nas primeiras semanas, fiquei muito assustado. Depois aquilo se tornou parte de mim. As pessoas ainda não sabem do motivo daquela guerra. Eu sei. Foi um terrível mal-entendido. Mas isso já não faz parte de mim. Não quero mais violência em mim. Sempre que paro e penso no passado, tenho esta atitude: eu vou me levantar. Por isso conto às pessoas sobre o meu passado. Elas precisam saber quem eu era. Agora quero ser mais sábio. Meu sonho é me tornar alguém bom nesta nação. Tenho a sensação de que a Libéria poderia ser uma grande nação. Mas também quero ver o mundo. Quero me tornar piloto. Querem que eu leve vocês de avião a algum lugar? Claro. Venham me procurar daqui a 10 anos. Prometo que voaremos para outros lugares.”
[O Estado de São Paulo, 10/06/2007]
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