Primitivos quem, cara-pálida?

Jornalista sustenta em livro que América antes da conquista pode ter tido população maior que a da Europa

CRISTINA TARDÁGUILA, COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DO RIO

Imagem:
Cena do filme "Apocalypto", de Mel Gibson, mostra membros da elite maia; civilização criou grandes centros urbanos

Diferentemente do que prega a maioria dos livros de história, é bem possível que as caravelas de Cristóvão Colombo tenham atracado, em 1492, em um continente povoado por sociedades grandes, estruturadas e tecnologicamente desenvolvidas. De fato, a América pré-colombiana pode ter tido mais gente que a própria Europa.
No livro "1491", que entrou na lista dos cem mais notáveis de 2005 do jornal "The New York Times" e que acaba de ser lançado no Brasil (Editora Objetiva), o jornalista americano Charles C. Mann, 51, reúne resultados de novas pesquisas em arqueologia, geologia, biologia molecular, botânica e epidemiologia, entre outras áreas, para tentar provar que há conceitos equivocados no estudo do período pré-colombiano.
"Sempre escutamos aqui nos EUA que o homem chegou à América, cruzando o estreito de Bering há uns 12 mil anos, que os nativos moravam em aldeias desconexas e que eram incapazes de alterar o ambiente em seu favor. Agora, sabe-se que esses três conceitos estão errados. Há centenas de sítios arqueológicos no continente que comprovam a existência de sociedades imensas e há provas claras de que eles dominavam, sim, técnicas capazes de alterar o ambiente. A "terra preta", encontrada na bacia amazônica, é uma delas", disse Mann.
Segundo ele, a idéia que se tinha nos anos 1960 de que a população das Américas no século 15 rondava 10 milhões de pessoas já está ultrapassada.
"Hoje, já se fala em 40 milhões a 60 milhões de habitantes, mas eu aposto que, em breve, chegaremos à cifra de até 100 milhões, o que representa uma população maior do que a européia na época", destacou.
O Brasil é, de acordo com ele, uma das regiões que mais oferecem evidências de que o continente era muito mais povoado do que se imagina. A Amazônia, diz Mann, tinha uma população de até 10 milhões de pessoas por volta de 1491.
"A terra preta de índio, encontrada em vários pontos, é uma técnica que os nativos usavam para transformar o solo, naturalmente pobre, em algo extremamente fértil. Eles faziam cerâmicas, quebravam-nas e misturavam tudo com carvão e terra. Dessa forma, melhoravam a circulação da água no solo e conseguiam fertilizá-lo. O trabalho foi tão extenso, tanto em comprimento quanto em profundidade, e tão bem feito que tem gente cultivando nessas regiões até hoje."
Segundo a geoarqueóloga especializada em terra preta Dirse Kern, do Museu Paraense Emílio Goeldi, a cifra de 6 milhões de habitantes na bacia amazônica do século 15 não está longe da verdade.
"Já foram descobertas centenas de sítios arqueológicos com terra preta. Eles têm, em média, dois hectares, mas há alguns com até cem hectares."
"Quando você vê a terra preta, entende que seria necessário muita gente para fazer tanta cerâmica e para cultivar um espaço tão grande de terra."
Mas o professor de história da América da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Paulo Seda ressalta que há uma outra interpretação possível para o que Mann vê como prova indiscutível.
"Existem duas perspectivas com relação à terra preta: ou muita gente ocupou mesmo a região durante um espaço de tempo não tão grande, como sugere o autor, ou houve ocupações pequenas ao longo de muitos anos, o que desmonta a tese dele. Os pesquisadores não chegaram a um consenso ainda. Metade acredita em uma população grande na Amazônia, metade, não", contou.

Exagero
Para Seda, que se especializou no período pré-colombiano, a cifra de 80 milhões de habitantes na América naquela época é "bastante exagerada".
"Hoje, só se pode falar com embasamento científico de 40 milhões de pessoas. Não mais."
Mas, se Mann estiver certo, para onde teriam ido todas esses nativos americanos? O jornalista conta que eles foram dizimados por doenças como a varíola, o sarampo e o tifo, trazidas para pelos europeus e às quais os índios não tinham imunidade alguma.
Segundo Mann, quando os indígenas ficavam doentes, não se isolavam do grupo e acabavam morrendo em massa. Os que sobreviviam achavam que a terra estava condenada e acabavam se mudando e espalhando a doença. Isso explicaria, por exemplo, a onda de varíola que atingiu o continente em 1520 -e que, segundo alguns relatos, vitimara o soberano inca Huayna Cápac antes mesmo de os espanhóis chegarem ao Peru, em 1532, causando o conflito sucessório que facilitaria a conquista dos incas por Pizarro.
"Sem a varíola, que matou um terço do império inca, o espanhol Francisco Pizarro nunca teria dominado o Peru", disse o americano.
"Hernán Cortez, por exemplo, entrou no México sem doença alguma e viu dois terços de seus compatriotas morrerem em uma batalha com os astecas. Só foi capaz de vencê-los depois das doenças. Se não fosse por elas, a história certamente teria sido outra."

[Folha de São Paulo, 10/06/2007]
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