2 vezes Chaves x RTCV

Chávez algema TV para ampliar controle

GREGORIO SALAZAR, ESPECIAL PARA A FOLHA

Retornei a Caracas na noite de quinta-feira, depois de assistir em Moscou ao congresso mundial da FIP (Federação Internacional de Jornalistas), que emitiu uma condenação unânime ao governo venezuelano pelo fechamento da RCTV. Minha primeira curiosidade foi assistir a algum programa da substituta da emissora, a nova Tves, mas a tela me devolveu o rosto do presidente Chávez discursando para um punhado de estudantes universitários uniformizados de vermelho.
Decidi passar para a Venezolana de Televisión (VTV), a única emissora que o Estado venezuelano tinha quando Chávez chegou ao poder (agora ele possui sete apenas em Caracas), mas ali me recebeu o mesmo homem, dessa vez cantando uma velha canção de Leonardo Favio: "Hoje cortei uma flor... e chovia, e chovia...".
Pulei rapidamente para a Globovisión, o canal privado que também se encontra de molho, acusado de "golpismo, instigação ao magnicídio e dissociação psicótica", e o presidente estava presente num segmento de variedades musicais, mas agora imitando o lendário Alí Primera, o ídolo da canção de protesto de nossa geração: "Soldado, volta teu fuzil contra o oligarca", entoava o líder da revolução humanista, pacífica e democrática (é assim que se autoproclama) que acontece na Venezuela. Como deixam claro as programações das televisões, nada é deixado ao acaso, nem sequer os trechos das canções que Chávez "canta" em cada uma de suas apresentações.
Desde o fechamento do órgão de comunicação mais importante do país, os estudantes universitários não pararam de fazer passeatas, as condenações internacionais não pararam de chegar e as donas-de-casa e avós não deixaram de lamentar a ausência da "Rádio Rochela" e das telenovelas.
Mas Chávez já disse que tudo não passa de uma nova modalidade desestabilizadora denominada "golpe suave", que vem do império e é orquestrada pela CIA e seus lacaios no quintal. Então os agentes do império já podem gabar-se de contar com o apoio de mais de 80% da população, que rejeita uma medida que também contém forte ingrediente militar, haja vista que o Supremo Tribunal ordenou a ocupação "temporária" das instalações de transmissão da RCTV em todo o país. Ao mesmo tempo, é claro, em que elas são usadas pela Tves.
Enquanto Chávez continua a aumentar seu recorde Guinness de redes de televisão, a Venezuela vive tempos de incerteza profunda não apenas no campo da liberdade de expressão e de exercício do jornalismo, mas em todos os âmbitos da vida nacional.

Instituições subjugadas
A hegemonia dos meios de comunicação e informação a que "o processo" se propõe, sem disfarces, já está instaurada no campo das instituições. Os poderes Judiciário, Legislativo e Eleitoral, o Ministério Público, a Defensoria do Povo, o Tesouro, todos foram subjugados e aviltados pela ação revolucionária.
O fechamento da RCTV, com a negação da renovação da concessão que a emissora explorou durante mais de 50 anos -com e sem acertos, mas de maneira bem-sucedida- é uma das maiores arrancadas de Chávez na marcha rumo ao controle de todo o poder possível por todo o tempo possível. Já é amplamente conhecida sua proposta de reformar a Constituição para criar a possibilidade de reeleição por tempo indefinido. Sem instituições, os meios de comunicação são o único contrapeso com que a população conta e que Chávez teme.
Se existe algo de alentador nesse contexto é que as razões apresentadas para o fechamento não convenceram nem mesmo os próprios chavistas: se o canal é golpista, por que seus responsáveis não foram levados a juízo nos cinco anos passados desde o 11 de Abril? Se as razões são de natureza ética, por que a VTV mantém no ar programas que são simplesmente escatológicos? Se a razão é administrativa, por que foi renovada a concessão do canal de Gustavo Cisneros, o Venevisión, de onde, em abril de 2002, saiu Pedro Carmona Estanga para reunir-se com os militares e, mediante um decreto infame, transformar em golpe a manifestação popular mais formidável que jamais havia sido vista na Venezuela?
E, para concluir, que espécie de socialismo é esse que, de uma só canetada, deixa cerca de 10 mil trabalhadores na rua?

GREGORIO SALAZAR é presidente do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Imprensa da Venezuela
Tradução de CLARA ALLAIN


Oposição quer impor a ditadura da mídia

ARAM AHARONIAN, ESPECIAL PARA A FOLHA

É cada vez mais evidente que a questão dos meios de comunicação está ligada ao futuro de nossas democracias: uma ditadura de mídia procura suplantar as ditaduras militares de décadas passadas.
Não há dúvida de que o espectro radioelétrico é um patrimônio da humanidade e que os Estados são soberanos em sua administração, em função do interesse nacional e geral. É sem dúvida falsa a idéia de que as empresas são donas do espaço radioelétrico, como querem fazer parecer os meios de comunicação comerciais.
Em maio de 2007 aconteceu na Venezuela uma nova versão do golpe continuado, quando, com a desculpa da decisão democrática de pôr fim à concessão de uma TV privada, a RCTV, foi posto em marcha um novo plano de desestabilização.
Os papéis se renovaram: a direção opositora tradicional passou para terceiro plano, um canal de TV assumiu a provocação ao governo, em busca de uma reação que o vitimasse diante da opinião pública (nacional e internacional), e os estudantes, em especial os das universidades privadas, foram lançados como protagonistas (e bucha de canhão) que, paradoxalmente, aproveitam as possibilidades da total liberdade de expressão vigente no país para protestar contra a suposta falta desses direitos.
Não surpreende a insistência de que na Venezuela seja a "sociedade civil" que se mostre, e ninguém deve surpreender-se pelo fato de que são organizações do governo norte-americano, como o NED (National Endowment for Democracy), com experiências diferentes do que é resistência cívica e como usá-la para fomentar mudanças políticas, que financiam jornalistas e grupos de oposição para que empreendam sua tarefa de desestabilização.
Os direitos humanos não podem existir sem a liberdade de palavra, de imprensa, de informação, de expressão. A transformação dessas liberdades em um direito individual ou coletivo mais amplo, o de comunicar, é um princípio evolutivo no processo de democratização.
A polêmica deixou à mostra a forma de operar das direitas latino-americanas, que consiste em repetir os mesmos argumentos reiterados pelas usinas globais dos EUA e da Europa. Elas esquecem que a liberdade de expressão tem uma história longa e triste neste continente, que inclui desde jornalistas assassinados até o gotejar de demissões, sempre avalizadas pelo empresariado da mídia, com honrosas exceções cúmplice das ditaduras militares.

Meios e golpismo
Na Venezuela, os meios de comunicação foram um fator decisivo para criar as condições que estimularam o golpe de Estado de abril de 2002. Depois desataram uma ofensiva feroz para promover e manter a greve e a sabotagem do setor petrolífero, além de silenciar sobre a reação popular que reconduziu ao poder o presidente constitucional.
Em 2000, o setor público dispunha de um canal de TV VHF, o setor privado tinha 19 e a proporção na TV UHF era de 2 para 28. Na rádio AM, a relação era de 36 para 143. Na FM, de 3 para 365. O setor privado dispunha de maioria desproporcional, sempre. Em 2006, a relação na TV VHF continuava 1 para 20, mas, na TV UHF, o setor privado tinha 28 canais, o público, 6, e o comunitário (de alcance muito limitado), 44. Na rádio AM, a proporção se mantinha igual: 36 para 143, mas na FM o setor privado tinha 440, o comunitário, 167, e o público, 10.
Hoje a luta pela democratização passa pela reconstrução do espaço público sul-americano (privatizado e esvaziado por décadas), uma reconstrução que reaproxime os meios estatais, regionais, educacionais, universitários, legislativos e comunitários dos usuários e produtores independentes.
Há coisas que acontecem na América Latina e que os meios de comunicação comerciais procuram ignorar: a nova lei de radiodifusão no Uruguai, que regulamenta a existência de um terceiro setor (a rádio e TV comunitária); a criação do canal educativo Encuentros, na Argentina; a decisão da Suprema Corte de Justiça do México contra a obscena lei de rádio e televisão aprovada no governo Fox, e a decisão do governo brasileiro de avançar na criação de uma TV pública nacional.
O que temem os empresários que, por décadas, detiveram o poder da mídia na região é que, depois dessa decisão legal na Venezuela, haja um efeito dominó. O medo é do que virá... no Equador, na Bolívia, na Argentina e, por que não, no Brasil.

ARAM AHARONIAN é diretor-geral da Telesur

[Folha de São Paulo, 10/06/2007]

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