Carlota Joaquina: a 'princesa do Brasil' revista

Historiadora reúne 145 cartas inéditas e diz que princesa "transgrediu o espaço permitido às mulheres de sua época"

Para professora da UFRJ, Carlota foi vítima da "historiografia liberal, masculina, que tem pouca tolerância com o contrário"


Devassa, má, intrigante, feiticeira, feia, vulgar, perversa, despótica, libidinosa, grosseira, depravada. Não há (poucas) palavras para descrever a mulher de d. João 6º. A personagem já ocupa um lugar claro no imaginário popular. E agora, se depender da historiadora Francisca Nogueira de Azevedo, esse "assassinato moral" que já dura 200 anos vai acabar por aqui. É o que ela tenta provar em "Carlota Joaquina - Cartas Inéditas" (Casa da Palavra), livro que integra o pacote comemorativo dos 200 anos da chegada da família real ao Brasil.
Ao reunir 145 cartas trocadas pela princesa do Brasil, a professora da UFRJ pretende definitivamente apagar a imagem que a atriz Marieta Severo deixou no filme "Carlota Joaquina - Princesa do Brazil", de Carla Camurati. Além das crônicas de Luiz Edmundo, uma das principais vozes antilusitanas do período joanino, a verve anticarlotista rolou solta no essencial "D. João 6º no Brasil" (Topbooks), de Oliveira Lima, e em biografias como "Carlota Joaquina, a Rainha Intrigante" (1949), do inglês Marcus Cheke, e "Carlota Joaquina, a Rainha Devassa", de João Felício dos Santos (1968).
Com a nova edição, a historiadora também avança em relação a seu livro anterior, "Carlota Joaquina na Corte do Brasil" (Civilização Brasileira, 2003), pintando agora um retrato mais humano e pessoal da mãe de d. Pedro 1º.
Para a professora, Carlota foi vítima da "historiografia liberal, masculina, que tem pouca tolerância com o contrário, especialmente em relação às mulheres". Para ela, "por temperamento e atitudes, Carlota transgrediu o espaço permitido às mulheres de sua época".
Isso não significa, porém, que o personagem não fosse difícil. "Ela era uma pessoa extremamente temperamental, a correspondência mostra isso", concede Azevedo.

Final do século 18
O livro chega às livrarias em outubro e colige a correspondência que vai do final do século 18, quando se inicia a crise entre as coroas ibéricas, aos últimos anos de estada de Carlota Joaquina no Rio de Janeiro. As cartas estão divididas em três grupos: particulares, de gabinete e políticas. No primeiro caso, mostram uma mãe amorosa e mulher afetuosa que não hesita em chamar o príncipe regente de "meu amor". No segundo bloco está a correspondência com o seu secretário José Presas, que revela o cotidiano da vida na corte.
Na última seção estão as sua primeiras investidas na esfera pública, ainda em Portugal, até o final de sua atuação na América. Os textos permitem, por exemplo, acompanhar o projeto "carlotista": torná-la regente da Espanha, sediando o governo no Vice-reino do rio da Prata. Pode-se identificar nos textos a resistência dos setores que apóiam ou não o projeto, como as estratégias do Gabinete do Príncipe Regente, principalmente do Conde de Linhares, e do embaixador inglês Lorde Strangford para impedir a consolidação do projeto. Para a organizadora do livro, os textos deixam claro a independência e habilidade de Carlota Joaquina no jogo político.

Outros amores
E as inúmeras histórias de adultério? Para a historiadora da UFRJ, até aí há controvérsias. "Mesmo com o Sidney Smith (comandante das tropas navais britânicas no Rio), com quem disseram que ela tinha tido um relacionamento, peguei várias cartas e nenhuma correspondência me parece suspeita nesse sentido", diz. "Agora, acredito que tenha tido outros amores, uma mulher exuberante como ela era. Mas era uma mulher muito ciosa da etiqueta, foi criada para ser rainha da Espanha, vinha de uma das cortes mais ilustradas da Europa naquele momento. Era muito bem preparada."
Em resumo, a professora acha que as cartas não corroboram a fama de ninfomaníaca da monarca: "Na esfera privada, é difícil conhecer detalhes de sua vida. Grande parte dos livros que lia eram de caráter religioso. Ela freqüentava a igreja, era muito preocupada com a etiqueta, com o papel dela enquanto rainha. Acredito que tenha tido um amante, mas essas coisas abertas, como libertinagem, acho que é um exagero".
Francisca Nogueira de Azevedo procura se inserir em uma tendência de reavaliar o papel histórico de grandes mulheres, à luz da historiografia de gênero. Como aconteceu na França com Maria Antonieta.
Mas Jean Marcel Carvalho França, professor de história na Universidade Estadual Paulista, em Franca (SP), é cauteloso com essa reabilitação: "O d. João 6º também foi penalizado, chamado de banana, idiota, porco, sem iniciativa... E ninguém discutiu se isso era uma posição antimasculina. Esse negócio da história do ponto de vista do gênero é muito complicado, às vezes todo mundo sofreu, mas pode-se achar que alguém sofreu sozinho", disse.
Jean Marcel acha que o leitor pode se surpreender com o tom afetuoso e carinhoso das cartas, que "dão a conhecer uma Carlota Joaquina que realmente não se conhece, uma pessoa delicada, com preocupações familiares, preocupada com os filhos, numa relação afetuosa com d. João 6º". A respeito da atuação política, ele considera que não há surpresas.
Poucos meses antes de se completarem 200 anos da viagem apressada (ou bem calculada, segundo alguns historiadores) da corte portuguesa, que mudou a história do Brasil, a imagem de d. João 6º aparentemente já está recuperada. Se Carlota também vai conseguir limpar sua imagem, só o leitor pode julgar. Para Jean Marcel, "ela odiou o Brasil. Isso as cartas não mudam".
(MARCOS STRECKER)
[Folha de São Paulo, 30/06/2007]
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