Biografias de César, escritas pelo latino Suetônio e o grego Plutarco, alternam censura e louvor ao líder romano
PAULA DA CUNHA CORRÊA
Vidas de César" traz ao leitor duas biografias do imperador romano, uma pelo latino Suetônio, a outra pelo grego Plutarco, em acuradas traduções (bilíngües).
As biografias de Plutarco (cerca de 50-120) e Suetônio (cerca de 70-130) inserem-se na tradição latina de coletâneas biográficas como as "Imagines" de Varrão (116-27 a.C.) e os "Homens Ilustres" de Cornélio Nepos (100-24 a.C.), obra inovadora na qual uma série de figuras memoráveis recebe tratamento sistemático: para cada romano, o autor oferece a biografia de um estrangeiro comparável.
Nas "Vidas Paralelas", Plutarco desenvolve esse modelo ao compor, também aos pares, biografias de personagens gregas e romanas. Assim, a biografia de Júlio César se espelha na de Alexandre, o Grande.
Essas duas "Vidas" de César nos chegaram sem os parágrafos iniciais, que tratavam, provavelmente, dos primeiros anos do futuro imperador. A narrativa de Suetônio começa quando, aos 16 anos, César perde e pai; a de Plutarco, com as hostilidades entre Sila e o jovem César.
Assassinato teatral
Ambas narram a sua carreira política e a conquista do império até o assassinato teatral no Senado e a "divinização" pós-morte de César sob forma de cometa (Suetônio) ou por ser caro aos deuses (Plutarco).
Notáveis, porém, são as diferenças entre as duas biografias, salientadas pela sua publicação conjunta neste volume que torna a comparação inevitável.
Suetônio alinhava inúmeras citações e referências tão eruditas quanto minuciosas, compiladas graças a seu ofício como administrador das bibliotecas públicas e dos arquivos imperiais de Trajano e chefe da secretaria do príncipe no governo de Adriano.
Biografias de César, escritas pelo latino Suetônio e o grego Plutarco, alternam censura e louvor ao imperador romano César
Se o ritual fúnebre (o encômio ao morto e a inscrição que registrava o nome, feitos e cargos por ele exercidos, guardada pelos familiares) constitui o embrião do gênero biográfico romano, a narrativa de Suetônio está distante de suas origens.
Pois, apesar de louvar César por sua oratória, clemência e comando militar, entre virtudes e vícios, o biógrafo confere relevo aos últimos.
Escarafuncha toda sorte de documentação para expor detalhadamente os mais embaraçosos aspectos pessoais de César, como o homossexualismo passivo, que motivou o apelido "Rainha da Bitínia" e o seguinte bordão, entoado pelos soldados que o escoltavam no desfile triunfal da Gália:
"César submeteu as Gálias, Nicomedes submeteu César:
Aqui triunfa agora César que submeteu as Gálias,
Não triunfa Nicomedes que submeteu César."
Objeto de censura, conforme Suetônio e suas fontes, são também os métodos empregados por César para a conquista e a manutenção do poder.
Espetáculos e banquetes nababescos, duplicação dos soldos das legiões visando a fidelidade das tropas e o apoio popular, "conchavos para ser dispensado das leis", saque de cidades aliadas, rapinas e sacrilégios, desvio de ouro do Capitólio, tráfico de influência, concessão de favores...
Com a permuta dos nomes próprios, pensaríamos estar lendo crônicas contemporâneas, não fosse a extraordinária bravura de César, entre outras virtudes, como o seu estímulo a médicos e professores, que o distinguem dos ilustres governantes atuais.
Exaltação
Se a biografia de Plutarco peca por imprecisões factuais, tornando-se presa fácil para historiadores positivistas do século 19, a sua dicção é elevada e a urdidura narrativa mais fina e dramática que a de Suetônio.
O moralista grego fecha os olhos para grande parte dos vícios, compondo antes um encômio a César, exaltado como modelo paradigmático de comandante e imperador.
Além de alegar parcos conhecimentos da língua latina, Plutarco não tinha acesso à vasta documentação consultada por Suetônio. Mas, caso a tivesse em mãos, certamente não faria dela o mesmo uso, porque a sua biografia é mais filosófica do que histórica, voltada particularmente para questões éticas.
"Foi para os outros que comecei a escrever as "Vidas", mas vejo que persevero e afeiçôo-me também a elas já em benefício próprio, servindo-me da investigação ("historía') como um espelho no qual busco de algum modo adornar e ajustar a minha vida em conformidade com as virtudes daqueles (homens). Pois assemelha-se antes ao convívio quando, ao receber e entreter cada objeto da investigação como um convidado, contemplamos "o porte e as qualidades" para eleger de suas ações o mais importante e belo de se conhecer. "Ah, que graça maior que esta receberias", mais eficaz para a correção do caráter?"
PAULA DA CUNHA CORRÊA é professora de língua e literatura grega na USP e autora de "Armas e Varões - A Guerra na Lírica de Arquíloco" (Edunesp).
VIDAS DE CÉSAR. Autores: Suetônio e Plutarco. Tradução: Antônio da Silveira Mendonça e Isis Borges Belchior da Fonseca. Editora: Estação Liberdade
[Folha de São Paulo, 17/06/2007]
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