Shiv Malik*
Gultasab Khan, um motorista de táxi em Leeds, West Yorkshire, disse-me que a primeira vez que percebeu que o irmão se tornara um wahhabi foi quando ele começou a orar de maneira diferente - os wahhabis acrescentam gestos extras de mão entre as prostrações religiosas. Sidique participava das orações da sexta-feira desde muito novo, e os três irmãos faziam jejuns juntos durante o Ramadan. Mas foi durante um Ramadan específico, quando Sidique tinha quase vinte anos, que ele começou a manifestar um interesse maior pela religião. "Como jovens de uma certa idade fazem", disse Gultasab.
Mohammad Sidique Khan foi um dos homens-bomba que atacaram a rede de transporte urbano de Londres em 7 de julho de 2005, matando 52 passageiros. Tido como o líder do complô, ele tinha 30 anos quando morreu, era casado, tinha um filho e trabalhava como orientador de jovens e monitor de ensino na sua comunidade.
Sidique e dois outros membros do grupo responsável pelo ataque de 7 de julho vieram de Beeston, um dos subúrbios mais isolados e indistintos de Leeds. Em Beeston Hill, o centro arruinado de Beeston, os paquistaneses são 20% da população. Eles são uma minoria, mas uma minoria grande o suficiente para ter sido capaz de formar a sua própria comunidade coesa, que até certo ponto é um gueto.
Gultasab me disse que o irmão descobriu que a mesquita tradicional e administrada pela comunidade na Hardy Street não tinha nada a oferecer-lhe. As pessoas que a administravam não tinham a menor idéia de como se conectarem com a segunda geração da comunidade de imigrantes paquistaneses, disse Gultasab. Eles falavam e escreviam em urdu, uma língua oficial do Paquistão, e a única ocasião em que interagiam com os jovens muçulmanos era quando os ensinavam a recitar o Alcorão de cor e em árabe.
Os wahhabis faziam as coisas de maneira diferente. Eles davam sermões e imprimiam publicações em inglês. O urdu de Sirdique era ruim, e, portanto, as únicas coisas que ele era capaz de ler sobre o islamismo eram as publicações editadas em língua inglesa. Gultasab conta que a jornada de Sidique rumo ao wahhabismo, que fez com que ele se chocasse contra a abordagem muçulmana tradicional da sua família, foi reforçada pelo fato de que alguns dos seus amigos também estavam se convertendo.
Uma segunda fonte de atrito entre Sidique e a sua família foi a sua determinação de casar por amor. Durante os anos da sua conversão ao wahhabismo, Sidique se apaixonou pela sua futura mulher, Hasina Patel. Os dois se conheceram na Universidade Metropolitana de Leeds em 1997; Sidique fazia um curso de um ano para converter um diploma em comércio obtido em uma faculdade local em uma graduação plena, enquanto Hasina cursava um programa de três anos em sociologia. A família dela era da Índia, e ela era uma muçulmana deobandi - um movimento islâmico sul-asiático ligado ao wahhabismo, diretamente contrário às convicções tradicionalistas barelvi da família de Khan.
Em 1999, ao que parece Sidique começou a cogitar dar um salto do fundamentalismo wahhabista para uma forma de jihadismo ativamente compromissada com a violência. Naquela época, a sua vida se tornara altamente estreita: as mesquitas onde ele orava, os prédios nos quais ajudava a orientar os grupos de jovens paquistaneses, o seu escritório de supervisor de orientação à juventude, a livraria Iqra na qual dava palestras, a casa do irmão - todos os locais relevantes da sua vida situavam-se em um raio de 400 metros a partir do centro da comunidade paquistanesa de Beeston Hill.
Durante vários anos antes da sua conversão ao jihadismo violento, Sidique consolidou uma sólida reputação como orientador entre os jovens paquistaneses da região. Foi quando estudava na Universidade Metropolitana de Leeds que ele se apresentou pela primeira vez como voluntário para fazer trabalhos de orientação da juventude na comunidade. "Esses caras estavam fazendo um bom trabalho em relação às drogas, às questões raciais e à educação", afirma Maz Asghar, que à época era o gerente do projeto para a juventude em Beeston. "Eles tinham uma visão diferente sobre as coisas, já que eram ou nascidos aqui ou imigrantes que chegaram muito novos. Eles absorveram a cultura mais ampla do local", acrescenta.
Asghar me disse que o grupo compreendia que caso a comunidade quisesse sair da pobreza, ela precisava procurar alternativas aos trabalhos desqualificados tipicamente associados aos imigrantes paquistaneses - taxistas e funcionários de restaurantes. A orientação de jovens era parte disso.
Nick Prica, que mais tarde assumiu a função de Asghar, explica que Khan passava três horas por noite como "um trabalhador altruísta...saindo e falando com os adolescentes, e conquistando a confiança destes". Quando Khan assumiu a função de monitor de ensino - um emprego que lhe rendia US$ 33,7 mil por ano - na escola primária local racialmente mista, a Hillside Primary, em março de 2001, Prica disse que ele obteve uma invejável combinação de experiências e que "parecia uma torre de força no seio da comunidade".
Pouco se sabe a respeito da contagem regressiva final rumo ao 7 de julho. Não se sabe nem se todos os quatro homens-bomba se reuniram antes daquele dia. Khan e Shehzad Tanweer, um dos outros extremistas suicidas, fizeram uma longa viagem final ao Paquistão em novembro de 2004, e em junho de 2005 fizeram uma visita de reconhecimento a Londres, onde conheceram Jermaine Lindsay, o único homem-bomba que não era de Beeston. Segundo certas fontes, os contatos de Khan junto à Al Qaeda estavam esperando o resultado da eleição britânica de maio de 2005 para tomarem uma decisão final quanto ao atentado.
Ao que parece Khan foi capaz de desenvolver os seus planos praticamente sem ser perturbado. O ambiente paroquial de Beeston garantiu que os indivíduos recrutados por Khan estivessem sempre sob sua vigilância. Mas mesmo antes de Khan começar a falar diretamente a respeito dos males da política ocidental quanto ao Iraque e sobre receitas de explosivos, jovens recrutas - incluindo o próprio Khan - já estavam sendo modelados em Beeston e locais similares por uma aguda crise de identidade: a que valores e a quais culturas eles deveriam se vincular? Aqueles dos seus pais ou os dos amigos? Aos da comunidade ou aos do seu país?
Hassan Butt, um ex-recrutador da rede britânica jihadi (o termo que os violentos extremistas muçulmanos usam para se autodescrever), que esteve duas vezes com Sidique Khan, diz que o motivo pelo qual os movimentos islâmicos radicais no Reino Unido foram capazes de recrutar milhares de jovens muçulmanos é o fato de terem explorado este problema de identidade.
Butt disse-me que, como recrutador, a sua tarefa mais importante era descobrir com que coisas os seus potenciais recrutados se identificavam, e a seguir tirar proveito desses pontos. Por exemplo, se o potencial recruta se sentisse como sendo paquistanês, Butt se focalizava na dificuldade de ser ao mesmo tempo britânico e paquistanês. A religião - neste caso uma versão purificada e politizada do islamismo - era uma forma natural de transcender o deslocamento cultural. "Os islamitas surgem em cena e dão ao indivíduo uma identidade... este não precisa ser paquistanês ou britânico. Pode estar em qualquer lugar do mundo e esta identidade colará nele e lhe dará uma sensação de pertencer a uma estrutura".
Butt também explicou que as comunidades muitas vezes empurram inadvertidamente os jovens para os braços dos radicais. Atitudes quanto ao trabalho, a escola e a socialização desempenham um papel no processo de fazer com que os jovens se distanciem da geração dos seus pais. Mas um dos maiores fatores que contribuiu para o crescimento do radicalismo islâmico britânico foi o casamento.
O princípio mais importante do islamismo é o de que os muçulmanos não devem ser divididos por raça ou nacionalismo - que todos os muçulmanos fazem parte de uma única comunidade. Assim sendo, o radicalismo pode proporcionar uma rota muçulmana para que o indivíduo evite ser obrigado a se casar com a prima. Butt sabe disso porque foi algo que aconteceu com ele. Quando, em vez de se casar com a prima, Butt tentou casar-se com a moça de quem gostava, ele se viu apresentando os argumentos do seu recrutador islamita contra o seu próprio pai - de que o casamento compulsório fere o islamismo e que os casamentos forçados são uma importação cultural do hinduísmo. E quando as forças do tradicionalismo se recusaram a dar o consentimento, Butt, assim como vários dos seus amigos, acabou se tornando um pária na sua própria comunidade.
"Quando os laços com a sua família são cortados, a rede jihadi se torna a sua família. Ela se transforma na sua espinha dorsal e no seu apoio", afirma ele. Butt acrescentou que quando o indivíduo entra na organização é impossível sair porque ele não tem mais nenhum lugar para onde ir. A rede começa a operar como uma seita.
Quando conheci Butt, em meados de novembro de 2005, para que me passasse uma descrição detalhada de Sidique Khan, ele ainda era um crente fervoroso que apoiava integralmente as ações de Khan. Mas ele disse também que Khan foi "egoísta" porque, sendo um dos pensadores da rede jihadi, deveria ter ficado e ajudado a recrutar outros, em vez de optar pela "rota rápida". Para procurar mais pistas sobre o que fez com que Khan se precipitasse rumo a "rota rápida", decidi visitar Gultasab na sua casa e lhe contar tudo que ouvi de Butt a respeito das conexões jihadistas de Sidique.
Gultasab permaneceu silencioso enquanto eu contava a história, mas de vez em quanto fazia comentários que manifestavam o seu ceticismo. Quando a narrativa chegou ao ponto em que Khan rejeitou o seu casamento arranjado, algo que ouvi pela primeira vez de Butt, Gultasab tentou negar o fato (embora semanas depois ele tivesse, finalmente, confirmado o acontecido). Eu pressionei Gultasab falando sobre a importância de que ele revelasse o que aconteceu com o seu irmão. Afinal, Mohammad Sidique Khan era agora um ícone para os outros jihadis britânicos, de forma que se Gultasab desejasse impedir novos ataques, seria importante saber como o seu irmão se tornara um radical.
Gultasab concordou que era importante impedir mais atentados a bomba, mas disse que ainda era muito cedo para falar.
Durante as minhas visitas seguintes à sua casa, Gultasab continuou fechado, mesmo quando eu lhe fiz perguntas simples - por exemplo, como era o seu irmão quando pequeno? Eu freqüentemente o confrontei indagando por que ele se recusava a falar. Gultasab geralmente repetia que não queria se envolver com questões com as quais a polícia estava lidando.
Mas em uma ocasião, no princípio de junho de 2006, recebi uma resposta diferente. Gultasab me disse que ele próprio se tornara mais religioso no decorrer dos últimos três anos. Por algum motivo, eu traduzi a minha pergunta sobre se ele achava que o seu irmão fizera algo de "bom" ou "ruim" - ele disse várias vezes que a ação fora algo terrível - e, em vez disso, perguntei se achava que o 7 de julho fora "halal" (permitido) ou "haram" (proibido) segundo o islamismo. Somente quando uma expressão de intensa surpresa tomou conta da face de Gultasab eu percebi que deveria estar fazendo durante todas as outras ocasiões uma pergunta inteiramente diferente. Após uma breve pausa, ele respondeu. "Sem comentários".
Percebi que ali estava o exemplo perfeito da divisão entre duas visões de mundo - a ética secular e uma belicosa fé islâmica. Por quanto tempo Gultasab conseguiu funcionar com essas duas posições conflitantes lutando dentro de si? A moralidade cotidiana lhe dizia que o irmão cometeu um ato de terror a sangue frio, enquanto a sua própria teologia muçulmana lhe afirmava que não havia uma resposta clara e que talvez o irmão fosse um herói. Quantos milhares de jovens muçulmanos britânicos se debatem em um conflito similar?
Foi o clérigo familiar de Khan que acabou revelando o segredo por detrás do silêncio de Beeston. A família Khan e, ao que parece, pelo menos vinte outras, sabiam que Sidique era um radical potencialmente violento durante pelo menos seis anos antes do 7 de julho. De várias maneiras, a sua transição de um indiferente ocidentalizado para um adolescente muçulmano e, daí, para um jihadi inteiramente comprometido com a causa, seguiu um padrão convencional. As tentativas tradicionalistas típicas da família de detê-lo só fizeram piorar a situação.
Por exemplo, quando em 1999 ficou evidente que, ao contrário dos seus irmãos mais velhos, Sidique não iria jogar bola, casar com a prima e se tornar um barelvi, o seu pai, Tika Han, o enviou para falar com o antigo orientador espiritual da família. O clérigo, ou "pir", Sultan Fiaz ul-Hassan, me explicou que quando Khan foi enviado para conversar com ele, não se tratava mais do mesmo garoto que o orientador espiritual conhecera. Khan disse ao pir que a sua visão a respeito do islamismo mudara, e afirmou que desejava fazer um treinamento para a jihad no Afeganistão.
A seguir, em 2001, em uma última tentativa desesperada para fazer com que o filho caçula obedecesse aos seus desejos, Tika Khan decidiu se mudar para Nottingham como filho Hanif, a filha Nafiza e a sua segunda mulher (a primeira mulher de Tika, a mãe dos seus quatro filhos, havia morrido alguns anos antes). Tika esperava que Sidique, de 26 anos, seguisse com a família para Nottingham, distanciando-se dos seus amigos wahhabi e da namorada deobandi. Se a estratégia fracassasse - o que de fato aconteceu - então pelo menos Tika não teria mais que interagir com o filho. E depois que Sidique casou-se, em 22 de outubro de 2001, os vínculos entre pai e filho foram cortados. Não mais enraizado na sua família, a imersão de Sidique na rede de jihadis da Grã-Bretanha foi total.
Mas, tendo em vista o desejo amplamente conhecido de Sidique de treinar para a Jihad, por que ninguém agiu no sentido de impedí-lo? Shiraz Maher, um recrutador de Leeds para a Hizb ut-Tahrir, que agora deixou a organização, me disse que se sabia muito bem que havia jihadis em Beeston: "Mas o fato é que ninguém esperava que eles fossem fazer de fato alguma coisa".
Quando perguntei a Gultasab por que ele não tentou impedir o seu irmão mais novo de seguir a trilha da jihad, ele me deu uma resposta similar. Ninguém esperava que o rapaz se transformasse em um homem-bomba suicida. Por que Sidique se mataria um ano apenas após a sua mulher dar a luz a uma menina que ele aparentemente adorava?
Esta pergunta nunca foi de fato respondida, mas a maioria das pessoas em Beeston estavam apreciando o fato de esses jovens estarem se tornando mais religiosos. "Melhor ser um wahhabi do que um toxicômano", disse Gultasab. "As pessoas gostavam de ver um jovem administrando uma livraria porque eles eram exemplos para a geração mais nova - que não dava mais ouvidos aos idosos".
E os idosos acreditavam que os filhos retornariam às suas raízes. Conforme Gultasab me disse, quando os casamentos eram feitos sem o consentimento da família, as pessoas acreditavam que cedo ou tarde haveria reconciliação, conforme as coisas geralmente se passam entre pais e filhos. E por que Sidique, um modernizador da comunidade - e "o membro mais gentil da família" - acabou cometendo um ato tão bárbaro?
Khan pode ter se sentido indignado com a política externa ocidental, assim como vários ativistas contrários à guerra, mas este não foi o motivo que levou uma célula de jovens a se suicidar e a matar 52 passageiros do sistema de transporte urbano de Londres. No cerne dessa tragédia está um conflito entre a primeira geração de paquistaneses britânicos e as subseqüentes - com muitos jovens usando o islamismo como uma espécie de teologia da libertação a fim de garantir os seus direitos de escolher como viver. É um conflito entre tradição e individualismo, cultura e religião, tribalismo e universalismo, passividade e ação.
Quando a coisa é colocada desta forma, o problema do extremismo islâmico parece ser deprimentemente insolúvel. A primeira reação do governo após o 7 de julho foi ouvir uma ampla gama de opiniões muçulmanas, incluindo a do Conselho Muçulmano da Grã-Bretanha e a de instituições similares. O governo argumenta agora que o conselho muçulmano e algumas das suas filiadas são tanto parte do problema quanto solução, e as novas iniciativas para conter o radicalismo enfatizam a promoção dos valores britânicos no nível das bases sociais e o trabalho mais próximo junto aos poucos modernizadores liberais na comunidade muçulmana britânica. Mas talvez tudo o que podemos fazer agora seja permanecer vigilantes e esperar que a maré na batalha pela alma do islamismo vire a favor do Ocidente.
*Shiv Malik é um jornalista freelance. Ele está escrevendo um livro sobre o terrorismo britânico
[Prospect [09/06/2007] - Tradução: UOL]
Gultasab Khan, um motorista de táxi em Leeds, West Yorkshire, disse-me que a primeira vez que percebeu que o irmão se tornara um wahhabi foi quando ele começou a orar de maneira diferente - os wahhabis acrescentam gestos extras de mão entre as prostrações religiosas. Sidique participava das orações da sexta-feira desde muito novo, e os três irmãos faziam jejuns juntos durante o Ramadan. Mas foi durante um Ramadan específico, quando Sidique tinha quase vinte anos, que ele começou a manifestar um interesse maior pela religião. "Como jovens de uma certa idade fazem", disse Gultasab.
Mohammad Sidique Khan foi um dos homens-bomba que atacaram a rede de transporte urbano de Londres em 7 de julho de 2005, matando 52 passageiros. Tido como o líder do complô, ele tinha 30 anos quando morreu, era casado, tinha um filho e trabalhava como orientador de jovens e monitor de ensino na sua comunidade.
Sidique e dois outros membros do grupo responsável pelo ataque de 7 de julho vieram de Beeston, um dos subúrbios mais isolados e indistintos de Leeds. Em Beeston Hill, o centro arruinado de Beeston, os paquistaneses são 20% da população. Eles são uma minoria, mas uma minoria grande o suficiente para ter sido capaz de formar a sua própria comunidade coesa, que até certo ponto é um gueto.
Gultasab me disse que o irmão descobriu que a mesquita tradicional e administrada pela comunidade na Hardy Street não tinha nada a oferecer-lhe. As pessoas que a administravam não tinham a menor idéia de como se conectarem com a segunda geração da comunidade de imigrantes paquistaneses, disse Gultasab. Eles falavam e escreviam em urdu, uma língua oficial do Paquistão, e a única ocasião em que interagiam com os jovens muçulmanos era quando os ensinavam a recitar o Alcorão de cor e em árabe.
Os wahhabis faziam as coisas de maneira diferente. Eles davam sermões e imprimiam publicações em inglês. O urdu de Sirdique era ruim, e, portanto, as únicas coisas que ele era capaz de ler sobre o islamismo eram as publicações editadas em língua inglesa. Gultasab conta que a jornada de Sidique rumo ao wahhabismo, que fez com que ele se chocasse contra a abordagem muçulmana tradicional da sua família, foi reforçada pelo fato de que alguns dos seus amigos também estavam se convertendo.
Uma segunda fonte de atrito entre Sidique e a sua família foi a sua determinação de casar por amor. Durante os anos da sua conversão ao wahhabismo, Sidique se apaixonou pela sua futura mulher, Hasina Patel. Os dois se conheceram na Universidade Metropolitana de Leeds em 1997; Sidique fazia um curso de um ano para converter um diploma em comércio obtido em uma faculdade local em uma graduação plena, enquanto Hasina cursava um programa de três anos em sociologia. A família dela era da Índia, e ela era uma muçulmana deobandi - um movimento islâmico sul-asiático ligado ao wahhabismo, diretamente contrário às convicções tradicionalistas barelvi da família de Khan.
Em 1999, ao que parece Sidique começou a cogitar dar um salto do fundamentalismo wahhabista para uma forma de jihadismo ativamente compromissada com a violência. Naquela época, a sua vida se tornara altamente estreita: as mesquitas onde ele orava, os prédios nos quais ajudava a orientar os grupos de jovens paquistaneses, o seu escritório de supervisor de orientação à juventude, a livraria Iqra na qual dava palestras, a casa do irmão - todos os locais relevantes da sua vida situavam-se em um raio de 400 metros a partir do centro da comunidade paquistanesa de Beeston Hill.
Durante vários anos antes da sua conversão ao jihadismo violento, Sidique consolidou uma sólida reputação como orientador entre os jovens paquistaneses da região. Foi quando estudava na Universidade Metropolitana de Leeds que ele se apresentou pela primeira vez como voluntário para fazer trabalhos de orientação da juventude na comunidade. "Esses caras estavam fazendo um bom trabalho em relação às drogas, às questões raciais e à educação", afirma Maz Asghar, que à época era o gerente do projeto para a juventude em Beeston. "Eles tinham uma visão diferente sobre as coisas, já que eram ou nascidos aqui ou imigrantes que chegaram muito novos. Eles absorveram a cultura mais ampla do local", acrescenta.
Asghar me disse que o grupo compreendia que caso a comunidade quisesse sair da pobreza, ela precisava procurar alternativas aos trabalhos desqualificados tipicamente associados aos imigrantes paquistaneses - taxistas e funcionários de restaurantes. A orientação de jovens era parte disso.
Nick Prica, que mais tarde assumiu a função de Asghar, explica que Khan passava três horas por noite como "um trabalhador altruísta...saindo e falando com os adolescentes, e conquistando a confiança destes". Quando Khan assumiu a função de monitor de ensino - um emprego que lhe rendia US$ 33,7 mil por ano - na escola primária local racialmente mista, a Hillside Primary, em março de 2001, Prica disse que ele obteve uma invejável combinação de experiências e que "parecia uma torre de força no seio da comunidade".
Pouco se sabe a respeito da contagem regressiva final rumo ao 7 de julho. Não se sabe nem se todos os quatro homens-bomba se reuniram antes daquele dia. Khan e Shehzad Tanweer, um dos outros extremistas suicidas, fizeram uma longa viagem final ao Paquistão em novembro de 2004, e em junho de 2005 fizeram uma visita de reconhecimento a Londres, onde conheceram Jermaine Lindsay, o único homem-bomba que não era de Beeston. Segundo certas fontes, os contatos de Khan junto à Al Qaeda estavam esperando o resultado da eleição britânica de maio de 2005 para tomarem uma decisão final quanto ao atentado.
Ao que parece Khan foi capaz de desenvolver os seus planos praticamente sem ser perturbado. O ambiente paroquial de Beeston garantiu que os indivíduos recrutados por Khan estivessem sempre sob sua vigilância. Mas mesmo antes de Khan começar a falar diretamente a respeito dos males da política ocidental quanto ao Iraque e sobre receitas de explosivos, jovens recrutas - incluindo o próprio Khan - já estavam sendo modelados em Beeston e locais similares por uma aguda crise de identidade: a que valores e a quais culturas eles deveriam se vincular? Aqueles dos seus pais ou os dos amigos? Aos da comunidade ou aos do seu país?
Hassan Butt, um ex-recrutador da rede britânica jihadi (o termo que os violentos extremistas muçulmanos usam para se autodescrever), que esteve duas vezes com Sidique Khan, diz que o motivo pelo qual os movimentos islâmicos radicais no Reino Unido foram capazes de recrutar milhares de jovens muçulmanos é o fato de terem explorado este problema de identidade.
Butt disse-me que, como recrutador, a sua tarefa mais importante era descobrir com que coisas os seus potenciais recrutados se identificavam, e a seguir tirar proveito desses pontos. Por exemplo, se o potencial recruta se sentisse como sendo paquistanês, Butt se focalizava na dificuldade de ser ao mesmo tempo britânico e paquistanês. A religião - neste caso uma versão purificada e politizada do islamismo - era uma forma natural de transcender o deslocamento cultural. "Os islamitas surgem em cena e dão ao indivíduo uma identidade... este não precisa ser paquistanês ou britânico. Pode estar em qualquer lugar do mundo e esta identidade colará nele e lhe dará uma sensação de pertencer a uma estrutura".
Butt também explicou que as comunidades muitas vezes empurram inadvertidamente os jovens para os braços dos radicais. Atitudes quanto ao trabalho, a escola e a socialização desempenham um papel no processo de fazer com que os jovens se distanciem da geração dos seus pais. Mas um dos maiores fatores que contribuiu para o crescimento do radicalismo islâmico britânico foi o casamento.
O princípio mais importante do islamismo é o de que os muçulmanos não devem ser divididos por raça ou nacionalismo - que todos os muçulmanos fazem parte de uma única comunidade. Assim sendo, o radicalismo pode proporcionar uma rota muçulmana para que o indivíduo evite ser obrigado a se casar com a prima. Butt sabe disso porque foi algo que aconteceu com ele. Quando, em vez de se casar com a prima, Butt tentou casar-se com a moça de quem gostava, ele se viu apresentando os argumentos do seu recrutador islamita contra o seu próprio pai - de que o casamento compulsório fere o islamismo e que os casamentos forçados são uma importação cultural do hinduísmo. E quando as forças do tradicionalismo se recusaram a dar o consentimento, Butt, assim como vários dos seus amigos, acabou se tornando um pária na sua própria comunidade.
"Quando os laços com a sua família são cortados, a rede jihadi se torna a sua família. Ela se transforma na sua espinha dorsal e no seu apoio", afirma ele. Butt acrescentou que quando o indivíduo entra na organização é impossível sair porque ele não tem mais nenhum lugar para onde ir. A rede começa a operar como uma seita.
Quando conheci Butt, em meados de novembro de 2005, para que me passasse uma descrição detalhada de Sidique Khan, ele ainda era um crente fervoroso que apoiava integralmente as ações de Khan. Mas ele disse também que Khan foi "egoísta" porque, sendo um dos pensadores da rede jihadi, deveria ter ficado e ajudado a recrutar outros, em vez de optar pela "rota rápida". Para procurar mais pistas sobre o que fez com que Khan se precipitasse rumo a "rota rápida", decidi visitar Gultasab na sua casa e lhe contar tudo que ouvi de Butt a respeito das conexões jihadistas de Sidique.
Gultasab permaneceu silencioso enquanto eu contava a história, mas de vez em quanto fazia comentários que manifestavam o seu ceticismo. Quando a narrativa chegou ao ponto em que Khan rejeitou o seu casamento arranjado, algo que ouvi pela primeira vez de Butt, Gultasab tentou negar o fato (embora semanas depois ele tivesse, finalmente, confirmado o acontecido). Eu pressionei Gultasab falando sobre a importância de que ele revelasse o que aconteceu com o seu irmão. Afinal, Mohammad Sidique Khan era agora um ícone para os outros jihadis britânicos, de forma que se Gultasab desejasse impedir novos ataques, seria importante saber como o seu irmão se tornara um radical.
Gultasab concordou que era importante impedir mais atentados a bomba, mas disse que ainda era muito cedo para falar.
Durante as minhas visitas seguintes à sua casa, Gultasab continuou fechado, mesmo quando eu lhe fiz perguntas simples - por exemplo, como era o seu irmão quando pequeno? Eu freqüentemente o confrontei indagando por que ele se recusava a falar. Gultasab geralmente repetia que não queria se envolver com questões com as quais a polícia estava lidando.
Mas em uma ocasião, no princípio de junho de 2006, recebi uma resposta diferente. Gultasab me disse que ele próprio se tornara mais religioso no decorrer dos últimos três anos. Por algum motivo, eu traduzi a minha pergunta sobre se ele achava que o seu irmão fizera algo de "bom" ou "ruim" - ele disse várias vezes que a ação fora algo terrível - e, em vez disso, perguntei se achava que o 7 de julho fora "halal" (permitido) ou "haram" (proibido) segundo o islamismo. Somente quando uma expressão de intensa surpresa tomou conta da face de Gultasab eu percebi que deveria estar fazendo durante todas as outras ocasiões uma pergunta inteiramente diferente. Após uma breve pausa, ele respondeu. "Sem comentários".
Percebi que ali estava o exemplo perfeito da divisão entre duas visões de mundo - a ética secular e uma belicosa fé islâmica. Por quanto tempo Gultasab conseguiu funcionar com essas duas posições conflitantes lutando dentro de si? A moralidade cotidiana lhe dizia que o irmão cometeu um ato de terror a sangue frio, enquanto a sua própria teologia muçulmana lhe afirmava que não havia uma resposta clara e que talvez o irmão fosse um herói. Quantos milhares de jovens muçulmanos britânicos se debatem em um conflito similar?
Foi o clérigo familiar de Khan que acabou revelando o segredo por detrás do silêncio de Beeston. A família Khan e, ao que parece, pelo menos vinte outras, sabiam que Sidique era um radical potencialmente violento durante pelo menos seis anos antes do 7 de julho. De várias maneiras, a sua transição de um indiferente ocidentalizado para um adolescente muçulmano e, daí, para um jihadi inteiramente comprometido com a causa, seguiu um padrão convencional. As tentativas tradicionalistas típicas da família de detê-lo só fizeram piorar a situação.
Por exemplo, quando em 1999 ficou evidente que, ao contrário dos seus irmãos mais velhos, Sidique não iria jogar bola, casar com a prima e se tornar um barelvi, o seu pai, Tika Han, o enviou para falar com o antigo orientador espiritual da família. O clérigo, ou "pir", Sultan Fiaz ul-Hassan, me explicou que quando Khan foi enviado para conversar com ele, não se tratava mais do mesmo garoto que o orientador espiritual conhecera. Khan disse ao pir que a sua visão a respeito do islamismo mudara, e afirmou que desejava fazer um treinamento para a jihad no Afeganistão.
A seguir, em 2001, em uma última tentativa desesperada para fazer com que o filho caçula obedecesse aos seus desejos, Tika Khan decidiu se mudar para Nottingham como filho Hanif, a filha Nafiza e a sua segunda mulher (a primeira mulher de Tika, a mãe dos seus quatro filhos, havia morrido alguns anos antes). Tika esperava que Sidique, de 26 anos, seguisse com a família para Nottingham, distanciando-se dos seus amigos wahhabi e da namorada deobandi. Se a estratégia fracassasse - o que de fato aconteceu - então pelo menos Tika não teria mais que interagir com o filho. E depois que Sidique casou-se, em 22 de outubro de 2001, os vínculos entre pai e filho foram cortados. Não mais enraizado na sua família, a imersão de Sidique na rede de jihadis da Grã-Bretanha foi total.
Mas, tendo em vista o desejo amplamente conhecido de Sidique de treinar para a Jihad, por que ninguém agiu no sentido de impedí-lo? Shiraz Maher, um recrutador de Leeds para a Hizb ut-Tahrir, que agora deixou a organização, me disse que se sabia muito bem que havia jihadis em Beeston: "Mas o fato é que ninguém esperava que eles fossem fazer de fato alguma coisa".
Quando perguntei a Gultasab por que ele não tentou impedir o seu irmão mais novo de seguir a trilha da jihad, ele me deu uma resposta similar. Ninguém esperava que o rapaz se transformasse em um homem-bomba suicida. Por que Sidique se mataria um ano apenas após a sua mulher dar a luz a uma menina que ele aparentemente adorava?
Esta pergunta nunca foi de fato respondida, mas a maioria das pessoas em Beeston estavam apreciando o fato de esses jovens estarem se tornando mais religiosos. "Melhor ser um wahhabi do que um toxicômano", disse Gultasab. "As pessoas gostavam de ver um jovem administrando uma livraria porque eles eram exemplos para a geração mais nova - que não dava mais ouvidos aos idosos".
E os idosos acreditavam que os filhos retornariam às suas raízes. Conforme Gultasab me disse, quando os casamentos eram feitos sem o consentimento da família, as pessoas acreditavam que cedo ou tarde haveria reconciliação, conforme as coisas geralmente se passam entre pais e filhos. E por que Sidique, um modernizador da comunidade - e "o membro mais gentil da família" - acabou cometendo um ato tão bárbaro?
Khan pode ter se sentido indignado com a política externa ocidental, assim como vários ativistas contrários à guerra, mas este não foi o motivo que levou uma célula de jovens a se suicidar e a matar 52 passageiros do sistema de transporte urbano de Londres. No cerne dessa tragédia está um conflito entre a primeira geração de paquistaneses britânicos e as subseqüentes - com muitos jovens usando o islamismo como uma espécie de teologia da libertação a fim de garantir os seus direitos de escolher como viver. É um conflito entre tradição e individualismo, cultura e religião, tribalismo e universalismo, passividade e ação.
Quando a coisa é colocada desta forma, o problema do extremismo islâmico parece ser deprimentemente insolúvel. A primeira reação do governo após o 7 de julho foi ouvir uma ampla gama de opiniões muçulmanas, incluindo a do Conselho Muçulmano da Grã-Bretanha e a de instituições similares. O governo argumenta agora que o conselho muçulmano e algumas das suas filiadas são tanto parte do problema quanto solução, e as novas iniciativas para conter o radicalismo enfatizam a promoção dos valores britânicos no nível das bases sociais e o trabalho mais próximo junto aos poucos modernizadores liberais na comunidade muçulmana britânica. Mas talvez tudo o que podemos fazer agora seja permanecer vigilantes e esperar que a maré na batalha pela alma do islamismo vire a favor do Ocidente.
*Shiv Malik é um jornalista freelance. Ele está escrevendo um livro sobre o terrorismo britânico
[Prospect [09/06/2007] - Tradução: UOL]
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