"O Folclore Negro do Brasil", de Arthur Ramos, ajudou a criar o mito do brasileiro tolerante
MARIA CLEMENTINA CUNHA
No início do século 20, os intelectuais estavam longe do tipo de especialização que conhecemos. O psiquiatra alagoano Arthur Ramos, formado pela Escola de Medicina da Bahia, acabou por tornar-se um dos patronos das ciências sociais, que, então, se instituíam no Brasil.
Nada a estranhar: nos anos 1930, a psiquiatria estava preocupada com os temas da eugenia e da higiene mental e se via impelida a refletir sobre a sociedade e a cultura.
Muitos de seus teóricos se inclinaram na direção do fascismo, mas havia exceções.
Arthur Ramos, que integrou o conselho editorial de uma das revistas do Partido Comunista Brasileiro, foi um desses progressistas que, preocupados com a identidade e o futuro do país, buscavam intervenção "científica" nos destinos da nação.
Publicado em 1935, "O Folclore Negro do Brasil" se insere em uma obra vasta, dividida entre a questão dos negros no Brasil e nas Américas e as pautas da velha psiquiatria "preventiva".
Debate internacional
Longe de constituírem campos distintos, as duas vertentes estavam perfeitamente integradas nas preocupações do autor.
Hoje, podemos sentir um certo cheiro de mofo ao abrir o volume, sobretudo por conta de velhos conceitos como "sobrevivências", "inconsciente coletivo", "sincretismo" ou "pureza primitiva".
Mas essas páginas faziam parte de um intenso debate internacional sobre a questão racial -em que sobressaíam as interpretações de Franz Boas sobre o "melting pot" [mistura] e a controvérsia entre [Melville J.] Herskovits e [E. Franklin] Frazier sobre a presença ou não de elementos culturais africanos no Novo Mundo.
Ramos aproximava-se de Herskovits, buscando traços étnicos "originais" nos negros brasileiros. Se hoje sua obra ajuda pouco a entender essas questões, ela permanece fundamental para pensar a história intelectual do país e a construção de alguns dos seus mais caros paradigmas.
Ela se insere no prolongado esforço de intelectuais brasileiros, de meados do século 19 à primeira metade do 20, que pretendiam encontrar uma identidade única e definir um projeto para a nação. A questão-chave girou sempre em torno do negro e de sua influência.
Autor prolífico e denso para os parâmetros de sua época, Ramos foi em grande parte ofuscado pela narrativa brilhante e colorida de Gilberto Freyre em seu "Casa-Grande e Senzala", de 1933. Mas sem dúvida seu trabalho ajudou a rever tanto o pessimismo racista como as esperanças de salvação pelo "branqueamento".
"Nós, como povo"
Enfrentou alguns dogmas estabelecidos, como o da superioridade dos sudaneses, valorizando os bantos pela capacidade de fundir diferenças culturais e contribuir, assim, para produzir uma cultura original e própria do país: o sincretismo era, para ele, o elemento-chave capaz de explicar a "nós, como povo", para usar uma expressão do próprio autor.
Para ele e outros intelectuais de seu tempo, o Brasil despontava como um promissor laboratório da mistura racial. Tratava-se de um país ainda sem "estabilidade sociológica", o que permitia o surgimento "de alguma coisa nova (...), brasileira" -nem africana, nem portuguesa, nem indígena, mas construída à base da convivência e da tolerância.
Por isso, afirmava sua esperança em um novo modelo, capaz de ultrapassar aquele mundo cindido pelas ideologias racistas.
A idéia de "democracia racial" e o exemplo brasileiro proporcionavam, a seu ver, uma "solução mais científica e mais humana" para os impasses de um tempo marcado pelo nazifascismo e pelas políticas segregacionistas nos EUA. Com tal perspectiva, Arthur Ramos ajudou a forjar o mito de um povo mestiço e tolerante em relação às diferenças.
Falsa imagem, atrás da qual o racismo pôde se esconder tanto tempo, sem dúvida.
Mas o que hoje é intolerável -pois só a hipocrisia política pode negar o racismo- nasceu paradoxalmente da tentativa bem-intencionada de enfrentar os problemas de seu tempo e de valorizar o que então era visto como sinal de degeneração e inviabilidade.
Dizem que de boas intenções o inferno está cheio. Nele, entretanto, homens como Arthur Ramos não têm chifres, caudas nem cheiro de enxofre.
MARIA CLEMENTINA PEREIRA CUNHA é professora aposentada do departamento de história e pesquisadora do Centro de Pesquisas em História Social da Cultura da Universidade Estadual de Campinas (SP). Publicou "Ecos da Folia - Uma História Social do Carnaval Carioca entre 1880 e 1920" (Companhia das Letras).
Folha de São Paulo, 03/06/2007
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