A condenação oficial da repressão durante a ditadura revolta o exército
Bernardo Gutiérrez, no Rio de Janeiro
Mal-estar, indignação e até raiva. O livro "Direito à Memória e à Verdade", uma contundente condenação oficial do governo brasileiro à ditadura, provocou irritação no exército. O livro, que foi apresentado pelo próprio presidente Lula em Salvador, foi recebido pelos militares como uma provocação. As forças armadas chegaram a acusar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva de ser partidarista e de ter financiado um documento elaborado por "criminosos políticos".
O governo Lula argumenta que o livro é fruto de 11 anos de trabalho da Secretaria de Direitos Humanos e da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, constituída em 1995 para elucidar as mortes e desaparecimentos ocorridos entre 1961 e 1988. "Direito à Memória e à Verdade", aplaudido por partidos de esquerda, pela sociedade civil e por diversas instituições e ONGs, inclui um minucioso estudo sobre 339 mortos e desaparecidos registrados pela comissão. Além disso, lembra os 136 nomes de vítimas que o governo Fernando Henrique Cardoso já reconheceu na lei 9.140 de 1995. O livro, segundo o próprio governo Lula, é o maior esforço desde a instauração da democracia para se restaurar a memória histórica.
O atual ministro da Defesa, Nelson Jobim, acompanhou Lula na apresentação do livro. No entanto, nenhum comandante do exército estava presente. O desencontro foi tal que o comandante-em-chefe do exército, general Enzo Martins, afirmou que não enviaria representante ao ato de lançamento do livro. Os militares afirmam que o texto é partidarista e que não se ajusta à realidade, entre outras coisas porque Paulo Vannuchi, secretário de Direitos Humanos da Presidência, foi militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN), a principal organização da luta armada contra o regime militar no final da década de 70.
Vannuchi defende que as famílias das pessoas torturadas que mais tarde se suicidaram também recebam indenizações. Os militares, por sua vez, acusam os autores do documento de ter um objetivo: "Aumentar ainda mais a indústria da indenização de criminosos políticos".
Delfim Netto, que ocupou vários ministérios durante a ditadura, afirmou que "há certas dúvidas de que seja verdade o que é publicado nele". Em troca, Frei Betto, conhecido opositor à ditadura e ex-aliado de Lula, afirmou no jornal "Folha de S.Paulo" que "a memória histórica brasileira sofreu tentativas de apagamento" e que o livro não é "um ato de vingança, mas de justiça".
Para Cecília Coimbra, presidente do grupo Tortura Nunca Mais, o texto "é apenas um pequeno passo para o esclarecimento do que ocorreu durante o regime militar". Sua organização luta há anos sem sucesso pela abertura total dos arquivos militares. Essa abertura provocou uma das grandes polêmicas do país e, apesar do clamor popular e internacional, as iniciativas nesse sentido se chocaram com os militares. O governo do Rio Grande do Sul foi o único que abriu seus arquivos e inclusive realizou uma exposição sobre a repressão política em Porto Alegre.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
[La Vanguardia, 31/08/2007]
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