Após 20 anos, vítimas do césio ainda enfrentam preconceitos

Moradores da área em Goiânia atingida por radiação dizem ser alvo de perguntas constrangedoras
Parte dos vizinhos do local onde a cápsula foi aberta recebe atendimento médico e pensão, mas maioria não foi reconhecida como vítima
Felipe Bächtoldda

Vítimas do acidente com o césio-137 em Goiânia, que completa 20 anos nesta semana, dizem que até hoje sofrem preconceito na cidade pelo envolvimento na tragédia.
Em 13 de setembro de 1987, catadores de sucata violaram a cápsula de material radioativo que era usada em aparelhos de um instituto de radiologia, na época abandonado, e contaminaram parentes e vizinhos. Quatro pessoas morreram nas semanas seguintes e milhares foram expostas à radiação.
Moradores da região onde a peça foi manuseada e policiais que trabalharam na operação dizem que não falam sobre o assunto para evitar olhares assustados e perguntas sobre riscos de contágio. Um policial militar que atuou no resgate diz que "quem fala que é vítima não arruma namorada".
O ex-motorista de ônibus Odesson Alves Ferreira, 52, que passou dois meses em um hospital na época do acidente, afirma que costuma ouvir perguntas como: "Se eu tocar em você, vou me contaminar? Você ainda emite radiação?". Ele é irmão do dono do ferro-velho que comprou a cápsula para vender como sucata.O contato com vítimas do acidente não oferece risco, segundo médicos. Mas moradores do bairro onde ocorreu a tragédia, o Setor Aeroporto, dizem que a região passou anos sendo evitada. Parte do comércio fechou as portas. Vizinhos tentaram vender os terrenos.
O ferro-velho da rua 26-A, considerado o epicentro da tragédia, foi destruído logo após o acidente. A área, que até há dois anos funcionava como um estacionamento, agora está vazia.
A Cnen (Comissão Nacional de Energia Nuclear) ainda monitora os focos de contaminação. Segundo o órgão, os terrenos atingidos pelo material emitem até 10% do máximo de radioatividade tolerável. Apesar disso, uma goiabeira que cresceu na área atingida foi derrubada há sete anos por dar frutos contaminados.Famílias que moram na vizinhança da rua 26-A vivem realidades distintas. Parte é reconhecida pelos governos federal e estadual como vítimas do acidente e recebe pensão e assistência médica, mas a maioria não obteve os benefícios.
A estudante Merielli Chapadense, 26, tem 19 parentes entre os pensionistas reconhecidos como vítimas vitalícias. Na época com seis anos, diz que seus brinquedos foram tomados por técnicos que consideraram contaminados os objetos da casa. Ela diz sofrer seqüelas como problemas de ansiedade.
Já a família da prima e vizinha de Merielli, Lorena da Silva, 23, não foi considerada vítima e não conta com acompanhamento médico. Moradora na rua onde a cápsula começou a ser desmontada, ela diz que familiares têm problemas de saúde. "Tentamos a Justiça, mas não conseguimos nada".
Cerca de 230 pessoas são beneficiadas com pensões, de acordo com o governo estadual.
No órgão criado pelo governo do Estado para atender as vítimas, a Superintendência Leide das Neves, há pelo menos 1.500 processos de pessoas pedindo o reconhecimento como vítimas. A entidade diz que tem dificuldade para analisar com agilidade os pedidos. Quem recebe pensões federal e estadual ganha R$ 880 por mês.A maioria dos bombeiros e policiais militares que participaram dos trabalhos de isolamento da área, onde ocorreu a tragédia em 1987, e de ajuda às vítimas possui seqüelas físicas, segundo a Associação de Militares Vítimas do Césio.
Uma sindicância que tramita na PM mostra que, de um grupo de 208 pessoas que trabalharam no local, 205 apresentam seqüelas - como alergias e problemas ósseos e estomacais. Oito policiais já morreram.
O secretário da associação, Santos Manoel de Almeida, diz que os policiais atuaram no local com a farda comum -sem equipamentos de proteção. Dos cerca de 600 PMs e bombeiros da operação, 120 foram reconhecidos como vítimas e recebem pensão do Estado.

[Folha de São Paulo, 09/09/2007]
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