Historiadora traça panorama da eugenia em todo o mundo e descreve a tentativa de criação de uma nova raça brasileira, no começo do século 20
Giovana Girardi Em 2228, os Estados Unidos se depararão com o problema racial mais forte de toda sua história -a eleição do seu primeiro presidente negro. Os brancos vão se rebelar e, ao final, esterilizar inteiramente a raça negra. O que parece o plano mirabolante de algum grupo neonazista é na verdade o roteiro surreal de um livro publicado nos idos da década de 1920 por Monteiro Lobato.
O pai do bonzinho sertanejo Jeca Tatu, que orientou crianças de todo o Brasil a evitar a contaminação por vermes, tinha propensões bem menos nobres - ou pelo menos assim podem ser consideradas quando vistas por olhos escaldados pelas crueldades da Alemanha nazista. Na época, o pensamento da elite intelectual era outro.
Lobato considerava seu livro "Choque" um "grito de guerra pró-eugenia" que serviria para espalhar noções de limpeza. "Precisamos vulgarizar essas idéias. A humanidade precisa de uma coisa só: poda. É como a vinha", escreveu.
Essa é uma das histórias contadas pela historiadora Pietra Diwan em seu livro "Raça Pura", que será lançado nesta semana. Especialista no assunto, Diwan estréia com a proposta de contar a história da eugenia e as relações entre os conceitos científicos e o poder.
Ela traça um panorama sobre como o assunto nasceu na Inglaterra do final do século 19, se fortaleceu nos Estados Unidos e se espalhou por toda a América no começo do século 20, até cair em descrédito com os abusos dos campos de concentração na 2ª Guerra.Quem pensa que a idéia de limpeza étnica saiu da cabeça perturbada de Hitler tem uma bela chance, nesse livro, de aprender que a história é bem mais complexa. Entender os princípios eugenistas ajuda a compreender inclusive os ideias de beleza e perfeição que temos até hoje, como sugere Diwan em seu prefácio.
Quando o médico inglês Francis Galton inicialmente propôs a idéia de eugenia, em meados do século 19, ele se inspirava nas teorias de seu primo Charles Darwin, que recém havia lançado a "Origem das Espécies". Ao propor a melhora da raça humana, ele o fez sob o ponto de vista biológico.
Desculpa naturalOs eugenistas sempre se valeram da teoria da seleção natural para embasar suas idéias: se na natureza, os mais fortes e mais aptos prevalecem, por que, entre os seres humanos, nos esforçamos para melhorar as condições de vida dos mais fracos e menos aptos? Muito mais natural -literalmente- seria não brigar contra seu destino inevitável.
Essa "aceitação", escreve Diwan, foi interpretada de pelo menos duas maneiras: eugenia positiva e negativa. Na primeira ocorria, digamos assim, uma atitude mais "light.Seus defensores estimulavam o casamento entre os "bem-dotados biologicamente", desenvolviam programas educacionais para a reprodução consciente de casais saudáveis e desencorajavam a união de casais com traços "inferiores". Nos Estados Unidos, por exemplo, era concorridíssimo o concurso "Fitter Families", no qual famílias eram julgadas de acordo com seu estado mental, emocional, físico e intelectual. As vencedoras recebiam a "medalha da boa herança", que trazia a inscrição: "Sim, eu tenho uma boa herança".
O problema foi o lado B dessa onda. A eugenia negativa postulava que a inferioridade é hereditária e a única maneira de livrar a espécie da degeneração seria pela da esterilização em massa (consentida ou não) e da segregação em guetos e sanatórios, conta a historiadora. Daí para os abusos foi um pulo.
Doutor Arnaldo
A metade final do livro conta como esse processo se desenvolveu no Brasil. A autora mostra, por exemplo, que nos quadros da Sociedade Eugênica de São Paulo estavam nomes importantes da medicina paulista da época, como Arnaldo Vieira de Carvalho (o dr. Arnaldo, que fundou a Faculdade de Medicina, hoje da USP) e Franco da Rocha (que fundou o Hospital Psiquiátrico do Juqueri).
Monteiro Lobato foi um dos ícones do movimento. Seu Jeca Tatu foi pensando originalmente como uma crítica ao sertanejo, descrito como "este funesto parasita da terra, seminômade, inadaptável à civilização". Jeca só passou de "culpado a vítima", como escreve Diwan, quando virou garoto-propaganda do biotônico, que curaria todos os pobres e desnutridos do país.
LIVRO - "Raça Pura" Pietra Diwan; ed. Contexto; 160 págs; R$ 29.
[Folha de São Paulo, 09/09/2007]
Postar um comentário